Caça às bruxas: Uma história mal contada da saúde e direitos das mulheres
Seja na idade média ou em 2022, a dominação passa pela destruição das bruxas. Ou seja, de todas nós.
Por muito tempo me perguntei por que as bruxas eram as vilãs das histórias enquanto os bruxos eram os magos, mulheres diabólicas versus um mentor sábio e admirável. Todo mundo preferiria encontrar em uma floresta Alvo Dumbledore do que a madrasta da branca de neve. Hoje eu sei o motivo: o problema da história é que ela não é contada pelas mulheres.
A caça às bruxas foi a principal ferramenta da destruição dos direitos das mulheres e criou uma cultura de misoginia e violência de gênero nunca vista antes na humanidade e que perdura até os dias de hoje.
Compreender o que de fato motivou a perseguição de aproximadamente 8 milhões de mulheres durante quase 4 séculos está intrinsecamente ligado à compreender porque direitos e saúde das mulheres continuam sendo negligenciados no século XXI e como as estruturas de poder impedem seu avanço.
Nenhum evento histórico da magnitude da caça às bruxas começa de um dia para o outro, os fatores da luta travada contra as bruxas foram sistêmicos e plurais e tiveram início muito antes da primeira fogueira. Mas todos eles tiveram um aspecto em comum: o ódio às mulheres surgiu da ameaça que elas representavam.
A idade média não foi a idade das trevas tomada por demônios e superstições, ela foi o momento de reestruturação política, social e econômica do mundo. Foi a transição mais importante dos meios de sobrevivência, trabalho e reorganização familiar.
ÚTERO DE OBRA
50 anos antes do primeiro julgamento de bruxaria, 1/3 da população europeia tinha sido dizimada pela peste negra, isso deu início a uma crise demográfica que resultou em mão de obra escassa e cara. Com a morte dos servos, os senhores feudais foram obrigados a melhorar as condições de trabalho e a remuneração. Era urgente para a sobrevivência da economia dominar uma fábrica que só as mulheres tinham, a fábrica de fazer mão de obra, o útero.
Outra consequência da peste foi a fragilização do poder da igreja pois a fé não curava a doença, mas muitas curandeiras aliviavam as dores e melhoravam o quadro dos doentes.
Ser as detetoras do poder médico e reprodutivo dava muito poder às mulheres. Não é a toa que os maiores crimes de bruxaria do Malleus Malleficarium, livro que ensinava como identificar uma bruxa e que rodou na Europa mais do que a própria bíblia, descrevia o manejo de ervas e práticas contraceptivas.
Destruir o controle que as mulheres tinham sobre saberes medicinais e função reprodutiva foi o pilar da inquisição e não por acaso coincidiu com o inicio da medicina moderna, com o surgimento das primeiras faculdades de saúde que eram proibidas para mulheres.
A primeira estratégia da caça às bruxas foi demonizar qualquer tipo de prática contraceptiva e sexo que não fosse para reprodução porque as mulheres viviam uma espécie de greve reprodutiva para evitar a pobreza e a fome das suas famílias. Além da pouca população que morria de doenças e guerras, as mulheres haviam parado de engravidar.
BRUXAS OU MÉDICAS?
Parto, aborto, infanticídio e manipulação de ervas, tudo estava relacionado à esfera da saúde e prova como a caça as bruxas não foi resultado de uma histeria coletiva e sim um projeto bastante sólido para transformar drasticamente a hierarquia de poder da sociedade. O fato é que não seria possível mudar os meios de exploração da terra, do trabalho e da riqueza, mantendo as mulheres no topo. A reestruturação que levou ao que conhecemos hoje precisava transformar o corpo das mulheres em um território de exploração e interesse, desprovido de direitos e eminentemente perigoso.
Havia uma prática comum desde o início dos tempos em que mulheres acompanhavam o parto de outras mulheres oferecendo seus conhecimentos e apoio umas às outras, o que foi proibido na época junto com o controle das parteiras que passaram a ser vigiadas por um carrasco que acompanhava os partos com o objetivo de impedir qualquer bruxaria. Na prática, isso significava que não era permitido que nenhum bebê morresse, seja naturalmente ou em uma possível escolha da vida da mãe. Além de garantir que a fábrica de população europeia voltava a pleno desenvolvimento, eles passaram a aprender o que as parteiras faziam e foi assim que se deu a entrada dos homens na sala de parto.
A eliminação das mulheres da prática da medicina foi o que possibilitou a maior aliança entre a igreja e a classe média, sem essa parceria a caça às bruxas não teria tido sucesso. De um lado mulheres não poderiam ter a capacidade da cura, que era visto como algo sobrenatural, herdado de gerações anteriores já que tudo que elas sabiam não tinham aprendido em uma instituição. Isso conflitava com o que a igreja pregava no qual somente a fé e Deus teriam a capacidade de curar. Do outro lado, havia a burguesia que estava criando um novo sistema médico caro e quase inacessível para a maioria da população. Por mais que médicos estivessem sendo reconhecidos como principal detentores do conhecimento cientifico, eram as curandeiras que a população buscava. Era preciso eliminar a concorrência se quisessem progredir e foi assim que muitos doutores se tornaram funcionários da santa inquisição.
DOMESTICADAS
As mulheres não passaram pela idade média mansas, muito pelo contrário. Desde o feudalismo eram elas que lideravam as revoltas por comida. Bercé descreve em seu trabalho os “Motins de mulheres”: elas pegavam em foices e articulavam muitos protestos. Foram elas que mais resistiram aos cercamentos e desapossamentos das terras, porque elas foram as mais afetadas por isso, a reestruturação da economia acabando com o uso comum da terra usado pelas aldeias e substituindo a agricultura de sobrevivência para a monetária empobreceu as mulheres principalmente as solteiras e viúvas.
A imagem da bruxa como a velha de cabelos brancos morando isolada perambulando com um animal de estimação é justamente a maioria das mulheres que tinham sido marginalizadas no processo de cercamentos, mas que resistiam.
Prova de que a histeria coletiva foi uma construção social intrinsecamente ligada à dominação de terras é o descreve Sillvia Federici em Calibã e a Bruxa: “onde não houve privatização da terra não existem registros de caça às bruxas”.
Elas se recusavam a ensinar seus conhecimentos medicinais aos homens enquanto eram proibidas de entrar na faculdade de medicina, se recusavam em transformar seu útero em uma fábrica de bebes que depois passariam fome e se recusaram a ter seus direitos usurpados.
Desde muito cedo os homens perceberam que não era possível convencer as mulheres a serem domesticadas. Mas era preciso que elas parassem de fazer barulho. Transformar o corpo e a terra em ferramentas de exploração para a manutenção do poder econômico precisaria de uma estratégia maior do que só batalhas com sangue. Foi preciso criar uma crença coletiva tão bem enraizada que mudasse drasticamente a forma como todo o planeta enxergava o maior obstáculo, as mulheres. Inclusive entre elas mesmas e as próximas gerações.
A CAÇA ÀS BRUXAS ERA UM NEGÓCIO
A caça às bruxas foi uma resposta à rebelião das mulheres. Uma bruxa era a princípio toda mulher que mantinha insubordinação social e política contra a igreja e contra a burguesia emergente que estava mudando o sistema econômico e as relações de trabalho, mas isso abria margem para que os crimes fossem interpretados como o que de fato eram, uma insatisfação da população. Foi fundamental criar uma dominação pelo medo através de um fenômeno que conhecemos bem na atualidade: a Fake News.
Inventar uma figura diabólica com poderes sobrenaturais fugia da explicação racional para perseguir as mulheres e fazia ainda com que toda a sociedade civil servisse aos propósitos da inquisição. Foi através de uma onda de invenções mentirosas que as pessoas foram controladas e as revoltas contra as mulheres se tornaram cada vez maiores.
Mas a caça às bruxas saiu melhor do que eles esperavam, além de resolver todos os embates já discorridos aqui, os julgamentos de bruxas criaram empregos para os homens e movimentou muito dinheiro na nova economia que se consolidava. Médicos, advogados, juízes, inquisidores, carrascos…
O livro Patriarcado e acumulação de capital em escala mundial: mulheres na divisão sexual do trabalho, de Maria Mies, conta como houve um verdadeiro aproveitamento da caça às bruxas para enriquecer de príncipes falidos à monges e campesinos. Os julgamentos eram prolongados para que os custos aumentassem, advogados cobravam uma taxa de compensação por lidarem com o diabo, a família da bruxa era obrigada a pagar os custos do processo, com a condenação a propriedade das bruxas era confiscada pelo estado, havia recompensas para denuncias de bruxaria e com isso as delações cresciam exponencialmente. Também havia uma espécie de fiança, razão pela qual observa-se que mulheres ricas julgadas por bruxaria conseguiam absolvição, e até o fornecimento de lenha para as fogueiras contribuiu para movimentar o comércio superaquecido da perseguição e tortura de bruxas.
Há uma passagem no livro de Maria Mies que cita como um lorde pediu permissão para começar a perseguição em sua cidade pois precisava de dinheiro para restauração de uma ponte.
O LEGADO QUE AINDA QUEIMA
Para financiar guerras, expedições de colonização e construir o novo estado absolutista foi preciso queimar muitas bruxas. A dominação da mente das pessoas é capaz de mudar profundamente uma cultura, a caça às bruxas criou consequências inimagináveis para as mulheres e talvez irrecuperáveis até hoje.
O escarnecimento das mulheres em praça pública insensibilizou os homens na prática da violência contra elas, a descriminalização do estupro de bruxas desencadeou a cultura do estupro, das salas de tortura que se tornaram verdadeiros laboratórios onde se estudava o corpo feminino, nasceu a medicina que sem nos olhar nos olhos introduz rispidamente um espéculo na nossa vagina. A usurpação das profissões das bruxas levou as mulheres ao confinamento do trabalho doméstico.
As poucas que sobreviveram ensinaram suas filhas a serem obedientes e a desconfiarem umas das outras. O elo de conhecimento passado de geração em geração foi rompido e com isso não sabem como funciona seu ciclo menstrual e reprodutivo.
Se pouco avançamos em saúde das mulheres e se políticas ainda hoje promovem o retrocesso de direitos, o estopim está na mão de quem acendeu a primeira fogueira.
Nesse Dia das Bruxas desejo que comecemos a contar as nossas histórias para sermos cada dia mais donas do nosso nariz grande e pontudo como pintam as lendas, metendo-o onde não fomos chamadas, porque seja na idade média ou em 2022, a dominação passa pela destruição das bruxas. Ou seja, de todas nós.