Reescrevendo Karl Lagerfeld: mais uma versão do Kaiser da Moda
Série da Star+ revela mais uma versão por trás do Ícone da Moda, numa ótica inesperadamente positiva
Há muitas versões sobre quem era Karl Lagerfeld, ele mesmo apresentou várias e contraditórias enquanto esteve vivo. Após a sua morte, uma nova tendência passou a ser costurar novamente a sua narrativa. No auge, o autodenominado Kaiser (Imperador) da Moda não era uma figura que estivesse associada a sorrisos ou simpatia, que sempre escondida atrás do leque ou dos óculos escuros. No entanto, Becoming Karl Lagerfeld, a nova série da Star+, quer nos fazer compensar essa imagem.
Antes de entrar na série em si é importante ter em mente que o “verdadeiro” Kaiser deu inúmeras declarações polêmicas sobre peso, mulheres, imigrantes, vítimas de agressão sexual e até casamento gay.
Daniel Brühl, que navega pelo Universo Marvel, Hollywood e filmes de arte com a mesma elegância, desenvoltura e talento, é maravilhoso e, sim, nos traz um Karl Lagerfeld taciturno, reativo e ambicioso, que vive à sombra o genial Yves Saint- Laurent (Arnaud Valois) e se corrói por isso.
Para quem não está familiarizado com o mundo da moda ou é jovem demais, pode ser que só associe Lagerfeld à gestão de mais de três décadas na Chanel, mas não veremos nada disso. Aqui, vamos entender como os 11 anos anteriores à Chanel foram essenciais para sua transformação pessoal e profissional.
Uma adaptação do livro Kaiser Karl, de Raphaëlle Bacqué, lançado após a morte de Lagerfeld, em 2019, Becoming Karl Lagerfeld, tenta revelar a verdade entre tantas mentiras sobre o costureiro que começou a trabalhar em Paris, em 1954, sem treinamento formal.
Lagerfeld entrou para a equipe de Pierre Balmain depois de vencer o prestigiado Prêmio Woolmark na categoria de casacos e, ao longo dos anos, ganhou fama de “mercenário” por entregar coleções para diversas Casas de Prêt-à-porter sem exclusividade.
No início da série, Karl Lagerfeld trabalha com Chloé, e sua fundadora, Gaby Aghion (Agnès Jaoui), foi a primeira a identificar e apostar em seu talento, numa parceria que começou em 1966 e foi até o início dos anos 1980.
Gaby é uma das figuras femininas mais significativas na vida do alemão, que tem uma amizade e confiança extrema com sua mãe, Elisabeth (Liza Krauser), a maior confidente e incentivadora. As duas são, de alguma forma, o escudo de Karl em meio a uma Paris em festa e “moralmente decadente”, onde ele ainda era um designer de prêt-à-porter de pouca fama.
Usando uma fórmula de alfinetadas de rivais na costura que vimos em Cristóbal (sobre Cristóbal Balenciaga, que tinha problemas com Christian Dior e que também está disponível na Star+), ou The New Look, da Apple TV Plus, que colocou Coco Chanel contra Dior , ou até mesmo Halston, da Netflix, que mostrou o americano brigando com o mercado financeiro, Becoming Karl Lagerfeld é sobre como Lagerfeld e Saint Laurent eram quase opostos – Saint Laurent como prodígio sonhador e lendário, enquanto Lagerfeld é concedidor sem termo ou estética própria – mas eles se apaixonaram pelo mesmo homem, com consequências trágicas para a moda e para ambos.
Ao evitar ficar na passarela e escolher as brigas motivadas pelo ego, esse triângulo amoroso tóxico coloca o jovem Jacques de Bascher (Théodore Pellerin), um dândi ambicioso e sedutor, no vértice do drama. E se Lagerfeld era complexo, Bascher facilmente era mal visto.
No filme Yves Saint Laurent, de 2014, Jacques é o grande antagonista, enquanto o parceiro e empresário de Saint Laurent, Pierre Bergé (na série interpretado por Alex Lutz), é uma figura mais carinhosa.
Em Becoming Karl Lagerfeld, Bergé é o antagonista, algo que já demonstra o quanto a proposta da série é reescrever o legado do costureiro alemão. Bergé é mostrado como um homem até agressivo, provavelmente enciumado pelo quanto Saint Laurent fica obcecado com Bascher.
Por muitos anos, Bergé alimentou o mito de que Lagerfeld teria plantado o dândi na vida do rival apenas para destruí-lo. Como a Quadrilha de Carlos Drummond de Andrade, funciona assim: Yves que amava Jacques que amava Karl que não amava ninguém.
O ator canadense Théodore Pellerin, que também teve destaque na série Franklin (da Apple TV+), traz uma empatia inesperada à vida inconsequente de Jacques, numa proposta infinitamente mais simpática do que as que marcaram a biografia dele até então.
Apesar das características negativas de Lagerfeld serem amenizadas (ele até aparece devorando doces e usando espartilho para caracterizar sua luta contra a balança), a série sugere sim que ele manipulava as pessoas ao seu redor, num jogo bem nocivo e abusivo.
Jacques de Bascher, que morreu aos 38 anos em decorrência da AIDS, no final dos anos 1980, foi parceiro de Karl Lagerfeld por quase duas décadas, e sempre é apontado como o catalisador para o declínio de Saint Laurent no mundo das drogas.
Há mais de uma biografia sobre ele, mas apenas a de 2017, com depoimentos de Lagerfeld, foi aprovado por Kaiser e parte desta narrativa está em Becoming Karl Lagerfeld.
É frustrante que a série tenha acabado no susto, no 6º episódio, justamente quando vimos Lagerfeld na Chanel, mas ali ele já estava transformado. Outra vantagem de Becoming Karl Largefeld é a de passear pela vida noturna gay parisiense, com os restaurantes e baladas clássicas, algumas delas fechadas e outras ainda funcionando
. Além disso, reencontramos Paloma Picasso (Jeanne Damas), filha do pintor espanhol e, na época, a musa tanto de Lagerfeld como de Saint Laurent.
A figurinista Pascaline Chavanne teve acesso ao arquivo da Chloé para recriar o icônico desfile de 1973, que simbolizou a diferença da compreensão de Lagerfeld pelo pop, criando o polo oposto à sofisticação burguesa da clientela de Saint Laurent, que só consumia alta costura. No final das contas, foram refeitos mais de três mil figurinos, que nos ajudam a viajar no tempo (sim, a trilha sonora também é espetacular).
Considerando que Becoming Karl Lagerfeld é pelo menos a quarta série sobre o universo Fashion nos últimos 4 anos, e com a ressalva de estar omitindo as partes menos legais de seu protagonista, vale lembrar o que Daniel Brühl, que conheceu Karl Lagerfeld, disse em uma entrevista: “Ele inventou muitas versões diferentes de sua vida, o que eu achei cativante. Gosto de pessoas que são impostoras”.
A série nos alimenta mais uma versão dessa ficção.