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A jornalista Ana Claudia Paixão (@anaclaudia.paixao21) fala de filmes, séries e histórias de Hollywood
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A violência contra as mulheres na série “The New Look”

Série inclui rapidamente a história da atriz Arletty, perseguida no pós-guerra e humilhada publicamente por sua ligação com um oficial alemão

Por Ana Claudia Paixão
23 fev 2024, 07h54

A princípio, a série The New Look poderia contar a história da rivalidade entre Coco Chanel (Juliette Binoche) e Christian Dior (Ben Mendelsohn), mas, na verdade o foco é sobrevivência em tempos adversos. Desde o primeiro episódio, os estilistas são confrontados para explicar como sobreviveram à invasão alemã à França, onde aparentemente Chanel foi opositora ao fechar sua Maison, mas Dior nem tanto, porque seguiu trabalhando para Lucien Lelong (John Malkovich).

A verdade nunca é tão simples assim e vemos nos bastidores que foi o contrário: ele sustentava a irmã trabalhando para a Resistência e Chanel fez acordos com os nazistas para libertar seu sobrinho e tirar seus sócios judeus de sua marca. Esse envolvimento da designer com os Nazistas passou décadas como “apenas rumores” até que, em 2014, documentos confirmaram o fato.

A série insiste que tanto Chanel como Dior tomaram suas decisões movidos por amor, não ideologia, mas a História pode ser dura em seus julgamentos.

No 4º episódio, há um dos momentos mais tristes e conflitantes do drama: a perseguição e punição da maior estrela da época da guerra, a atriz Arletty (Joséphine de La Baumein), uma das vítimas mais famosas da “l’épuration sauvage” (limpeza selvagem), a perseguição das mulheres que, nas palavras dos franceses, eram acusadas de “colaboração horizontal”, ou seja, dormirem com o inimigo. Sem surpresa, Chanel tinha mais medo de seus compatriotas do que os nazistas.

Quem foi Arletty?

atriz francesa arletty
A verdadeira Arletty no set do filme “Les Enfants du Paradis”. (Pathé/Roger Forster/Sunset Boulevard/Corbis/Getty Images)

Nascida Léonie Marie Julie Bathiat, a atriz que ficou mundialmente conhecida apenas como Arletty, foi uma das maiores estrelas na Europa dos anos 1940, estrelando filmes de diretores franceses renomados, como Hotel Du Nord, de Marcel Carné, em 1939, e o mais famoso de todos, O Boulevard do Crime (Children of Paradise), de 1945.

Vinda de uma família da classe trabalhadora, Arletty começou sua carreira como modelo, passando para o teatro quando tinha apenas 21 anos.

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Cantava e dançava, e ficou nos palcos por 10 anos até estrear no cinema, em 1930. Era famosa, adorada e respeitada como atriz, sendo a musa do diretor Marcel Carné e na época da Guerra, uma das atrizes de maior salário na França. Toda sua carreira, no entanto, ficou manchada quando a Paz voltou à Europa.

Como vimos na série The New LookArletty foi presa em 1945, depois que foi denunciada como ‘colaboradora’ dos nazistas por ter vivido um romance com o oficial alemão Hans-Jürgen Soehring durante a ocupação de Paris.

Segundo biógrafos, ela teria se apaixonado de verdade por Soehring, . Ter dito com ironia que “Meu coração é francês, mas minha bunda é internacional” não ajudou seu caso quando os oprimidos recuperaram a liberdade.

Quem não a teria condenado moralmente? Em 1945, Arletty virou a Maria Antonieta da 2ª Guerra Mundial e, se existisse Guilhotina, provavelmente teria perdido a cabeça.

Humilhação, violência e prisão: exemplo, inveja e crueldade

A história de Arletty é apenas uma de milhares de mulheres que vivenciaram um terror semelhante, mas, por ser uma das mulheres mais famosas da França, foi ainda mais chocante.

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Não há provas – e não houve até a sua morte, em 1992 – de que a colaboração da atriz tenha sido mais do que uma paixão moralmente condenável.

Todos os fatos apontam que Soehring, que era 10 anos mais novo, também estava apaixonado e queria se casar com ela, que se recusou. O problema estava na impossibilidade de duas pessoas de lados opostos poderem se amar.

O ódio dos franceses ganhou um volume ainda maior porque veio proporcional ao sucesso dela. Se desconhecidas eram quase apedrejadas publicamente, o tratamento à Arletty foi ainda mais duro do que a média: além de presa, agredida, xingada, cuspida, ter os cabelos raspados, a suástica desenhada em sua cabeça e obrigada a desfilar seminua pelas ruas de Paris, ela foi julgada, considerada culpada de traição e presa por 18 meses. Se imagens de Cersei Lannister de Game of Thrones te vem à mente quando lê isso é porque foi algo semelhante.

Traição moral: mulheres sempre pagam mais caro do que os homens

Não é fácil tentar contextualizar o ressentimento de um povo agredido e dominado contra aqueles que, por sobrevivência ou forçados, tinham uma aparente facilidade com os opressores durante a guerra.

Oficialmente, foram mais de 20 mil casos do que foi batizado como “Colaboração Horizontal”, um termo passivo agressivo para acusar mulheres de prostituição. Acredita-se que o número real seja muito mais elevado porque não há registros ou documentos. Bastava apontar e acusar para a condenação acontecer. Fatos eram irrelevantes.

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Portanto, os primeiros anos pós-guerra viraram uma caça às bruxas semelhante as do século 17 e repetida em toda a Europa, não apenas na França. Infelizmente, entre “colaboradoras de fato” e vítimas inocentes, foram centenas.

Diante disso, a experiência documentada contra Arletty é considerada simbólica e triste. Ela realmente se relacionou com o inimigo, mas mesmo na época houve quem questionasse se justificaria agredi-la como fizeram. Ou mais, como Chanel pergunta na série: por que apenas as mulheres passaram por esse “processo”?

Como já se sabia e é ressaltado hoje, há muitas mulheres que foram prostituídas à força ou por desespero nos anos de guerra. No entanto, quando os alemães se retiraram, elas foram alvo de vingança pessoal de vizinhos, amigos ou desconhecidos, homens e mulheres, em um movimento catártico assustador.

Nem crianças escapavam: se nasceram dessa relação, eram consideradas fruto de uma “traição nacional”, sendo exiladas e declaradas bastardas pelo Estado, sem os direitos básicos de qualquer outro cidadão. Ainda hoje há inúmeros processos pedindo reparação.

Costume milenar que permite e encoraja a violência contra a mulher

A pauta não é incomum no cinema ou na TV, a cena de The New Look me lembrou o lindo A Filha de Ryan, de David Lean, onde há um destino parecido para a mocinha do filme, Rose (Sarah Miles).

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Na trama, a jovem irlandesa, infeliz no casamento, se apaixona por um oficial inglês, mas uma traição surpreendente coloca a cidade inteira contra ela.

Isso porque Rose, filha do popular e querido Ryan, foi criada por ele com todo luxo e educação, a deixando como uma Princesa no meio do proletariado.

As mulheres tinham inveja e ciúmes, e assim que podem imediatamente atacam Rose – completamente inocente de tudo – raspando sua cabeça, batendo e cuspindo nela, transformando sua permanência na cidade como algo impossível. (Há mais detalhes, inclusive sobre quem é o traidor, mas, se você ainda não viu o filme, recomendo fazê-lo imediatamente. Estou evitando o spoiler).

As cenas da punição coletiva de mulheres vêm de uma tradição ainda mais antiga, e que até têm citação na Bíblia. A proposta é a mesma: tirar agressivamente da mulher o que é visto como sua característica mais sedutora, os cabelos, além de liberar para todos a tratarem como lixo.

E pior: essa punição era válida e usada por vários países e culturas, a misoginia sempre foi universal. E se o pesadelo não fosse suficiente, historiadores apontam para a existência de acusadores (homens, claro) atacando as mulheres para desviar sua própria conduta duvidosa durante o conflito.

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Na França, que já tinha vivido os anos de Terror da Guilhotina séculos antes, houve entre os cidadãos aqueles que eram contra a “l’épuration sauvage” justamente porque percebiam que a maior parte das mulheres atacadas ou eram vítimas dos alemães, e agora dos franceses, ou que eram acusações equivocadas e sem base factual.

Em tempos onde passavam fome, a troca de sexo por comida não era incomum. Todos eram vítimas, mas no fim, a Dor gerou mais violência.

A palavra final de Arletty

The New Looknão mostra, mas Arletty cumpriu sua prisão e obviamente sua carreira sentiu uma queda, mas se manteve até sua morte, em 1992.

Na época, a maior parte dos obituários incluía elogios e omitia seu passado trágico na guerra. Quem citava as agressões, alegava que “ciúme disfarçado de ultraje moral”, alinhado com “inveja”, motivaram o ataque. Mas cartas de alguns leitores ainda ofendidos com ela comprovaram que a mágoa ainda era real quase 50 anos depois.

Se já não criticavam ter tido um romance com um oficial alemão, não tinham esquecido que ela vivia e se alimentava com luxo no Hotel Ritz enquanto seus compatriotas passavam fome nas ruas. Algo de que Chanel também é culpada, mas, ao fugir para Suíça, escapou de responder enquanto o trauma nacional era recente.

Em 2015, fizeram um filme sobre a vida de Arletty, com Laëticia Casta no papel da atriz. Em uma última entrevista à Paris Match, com 94 anos, Arletty disse que chegou a contemplar tirar a própria vida, mas que olhava para trás com perdão no coração.

“A vida nunca é perfeita. Ela está errada, às vezes”, disse. “Aconteceu. O dano está feito. Não tenho arrependimentos ou remorsos, o que me permite ainda sorrir”, comentou, para encerrar com uma mensagem positiva: “Passagens dolorosas trazem muito mais do que pensamos. Se a vida às vezes não vale muito, vale sempre mais que nada!”

Palavras sempre importantes.

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