No cinema, o rigor do ballet é sinônimo de terror
Filmes de terror como "Abigail" e "Cisne Negro" reforçam o conceito contemporâneo de neurose no mundo da dança, o "bloody tutu"
Há vários clichês em torno da figura da bailarina, mas se fossemos seguir o cinema, o universo da dança seria um cenário de crime endeusado nos palcos. Em abril, o filme de terror Abigail chegou aos cinemas e, de alguma forma, mais uma vez resgatou a imagem etérea de uma dançarina como uma fachada falsa, no caso, a de uma vampira assassina. Calma, Abigail não é um filme de ballet, mas não deixa de usar a música de Tchaikovsky para O Lago dos Cisnes e a eterna dualidade dos papéis principais da obra – Odette e Odile – para reforçar a narrativa do medo. Pois é, no cinema (incluindo o Europeu, não é privilégio de Hollywood), o rigor do ballet é sinônimo de dor e morte. Com violência.
O sorriso que esconde a dor
Os clichês não surgem à toa, em geral têm imagens para se apoiarem como “fatos”. Aqui, suspeito que podemos apontar para a origem do reforço da dor na dança. Há alguns anos, a imagem do pé de bailarina ganhou contextos lendários com uma foto que ninguém sabe de quem é a autoria e que mostra um pé com a sapatilha de ponta, e o outro, descalço, ferido e com sangue. A imagem que reflete o que é a dança: a arte e a beleza omitindo dor física, que jamais é vista no palco.
Para completar a trama, junte-se a essa imagem outros elementos desafiadores para saúde mental de bailarinos: a brevidade de uma carreira que depende do físico e juventude, mais ainda, do tipo físico – que precisa estar leve (ou seja, sob controle excessivo do peso) -, lidar com lesões (leves ou sérias, afinal, os joelhos e os pés são usados em posições não naturais e há os saltos), assim como a necessidade de ter uma alma artística que inclua interpretação e musicalidade, sem esquecer de uma concentração precisa para manter as contagens.
Não ajuda que a imagem dos professores e coreógrafos também foram marcadas por rigidez, agressividade e arrogância. Realmente, parece que, nos bastidores, a vida no ballet é um filme de terror.
Esse drama é irresistível para imaginação, e a literatura, as artes plásticas, o teatro e o cinema ajudaram a eternizar a imagem dessa figura etérea e sofrida. Em parte, isso ainda acontece porque o mundo até hoje é fascinado pela habilidade desenvolvida de se dançar nas pontas dos pés, isso desde 1831, quando Marie Taglioni, “provou” que bailarinas eram sílfides ao introduzir a sapatilha reforçada com gesso. O mundo nunca mais foi o mesmo.
Rivalidade nos bastidores: um clássico do ballet
Se perguntar, todos os bailarinos negarão o clichê de bailarinas rivais brigando por uma chance de ser a principal da temporada, mas se olharmos para a história, ela existiu. Parte da cultura patriarcal? Sem dúvida, mas é inegável que as histórias de inimizade são mais famosas do que as de sororidade, embora ela tenha o mesmo peso no universo da dança.
Não foi invenção que Fanny Elssler disputava público e papéis com Marie Taglioni. Tampouco foi mentira que os amigos e fãs escolhiam se Anna Pavlova era melhor que Tamara Kasarvina.
A adorada Lynn Seymour nunca alcançou a popularidade de Margot Fonteyn, aliás, várias incríveis bailarinas ficaram sob sua sombra, mas foi Lynn que “perdeu” seu papel principal para uma Fonteyn mais famosa, mesmo depois de ter feito um aborto para seguir dançando.
A minha favorita foi o dia em que Mathilde Kschessinska deixou entrar galinhas de verdade no palco para atrapalhar o solo de Olga Preobrajenska em uma apresentação de La Fille Mal Gardée, porque a considerava competição.
Com essas histórias verdadeiras, as “lendas” de colocar vidro dentro da sapatilha para tirar as “ameaças” do caminho estava apenas uma pirueta à frente. Como o cinema poderia resistir ao clichê?
Como a hierarquia impacta na lenda da rivalidade?
Desde sempre uma bailarina tem características definidas em quase todos os filmes que ganha destaque: é disciplinada, é perfeccionista, é competitiva, é insegura, é ambiciosa e também sente a pressão de ter que escolher entre sua carreira e o amor.
Sim, são muitas horas de treino e ensaio em comparação ao que se tem de retorno. Em uma grande companhia, se há duas montagens ao ano (na Europa e nos EUA há mais), é de se comemorar, mas a temporada não ultrapassa duas semanas, com máximo de cinco noites.
Ou seja, seus anos de treinamento têm raras oportunidades de serem colocados em prática, ciúme e inveja nos bastidores são absolutamente inevitáveis. Junte-se a essa conta, o ego. Dançar os clássicos é um sonho constante, voltar a dançá-los também.
E, dentro disso, há uma dinâmica de “hierarquia”. O coreografo escolhe sua bailarina para a noite de estreia e essa definição é onde está o maior prestígio de qualquer profissional da dança. Isso é a base do drama de Cisne Negro, por exemplo, desenvolvido com cores de horror quando acompanhamos o impacto que o fato tem na saúde mental de Nina Sayers (Natalie Portman), que tem pânico do talento de sua substituta (Mila Kunis).
Portanto, ao longo do tempo, a bailarina sonha e se empenha para liderar uma temporada, seja em clássicos ou, ainda melhor, em uma produção inédita. Qualquer outra que possa tirar isso dela, naturalmente, é rival.
A dança clássica há séculos tem “menos balés novos”, e quando dizemos isso temos que diferenciar o “full lenght” do “sinfônico”. O último, imortalizado pela genialidade de George Balanchine, é uma coreografia em cima da música, destacando o movimento.
O “full lenght” são obras com enredo dramático, que inclui na produção a habilidade de interpretação do elenco. Esses são mais raros hoje em dia. Na Rússia, Yuri Grigorovich criou alguns balés completos espetaculares, mas isso até os anos 1980, depois parou.
Na Europa há mais coreógrafos criando ainda hoje, mas os mais famosos que ficaram na memória e conseguiram criar algo ainda relevante são dos anos 1970: Kenneth McMillan e John Cranko. Sei que profissionais vão argumentar comigo que ainda há balés sendo criados, Alexei Ramtansky é um dos ativos, mas o impacto histórico não bate um Romeu e Julieta ou Manon, de McMillan, ou Megera Domada e Onegin, de Cranko.
A neurose em destaque na lente de Hollywood
Com tantos aspectos da Dança, a neurose é a vertente mais comum que o Cinema elegeu para definir uma bailarina. De Luzes da Ribalta a Cisne Negro, entrou em um estúdio sabemos que a bailarina tem obrigatoriamente uma alma atormentada.
A mais icônica delas talvez seja Victoria Paige (Moira Shearer), no melhor filme jamais feito sobre uma companhia de balé e os bastidores da dança. Victoria é uma talentosa jovem que ascende ao estrelato em uma companhia de prestígio, ganha notoriedade e finalmente tem um balé criado para ela, Os Sapatinhos Vermelhos.
Ou seja, junta o treinamento, a ambição, a descoberta, o prestígio e, finalmente, o estrelato. Porém, ela se apaixona, e na dança há alguns desafios: maternidade não é bem vista, ou não era, sendo uma escolha que quase todas viriam a ter que fazer – carreira ou feminilidade.
O filme de 1948 nos leva a acompanhar o processo de deterioração mental de Vicky, que diante da impossibilidade de ter as duas coisas, escolhe a morte. Tudo sobre o filme faz dele uma das maiores obras já criadas para as telas, não há como recomendar mais.
Depois dele, há outros sucessos, mas o melhor ainda é o filme de 1977, Momento de Decisão (The Turning Point), inspirado em uma história real e que, embora ressalte o drama da brevidade da carreira de uma bailarina (e o peso de suas escolhas), mostra a competitividade mais próxima da realidade (não há gestos violentos ou baixaria, mas inveja e ciúmes) e inspira o amor pela dança através da ingenuidade e honestidade de Emilia (Leslie Browne).
O tema do Cisne nos filmes de Terror
Por razões meio obvias, os dois principais ballets da carreira de uma artista – O Lago dos Cisnes e Giselle – reforçam a base dos clichês negativos da dança. A dualidade de Odette e Odile, e a loucura da camponesa traída, estão no coração do maior sucesso recente de um filme sobre dança: Cisne Negro, de 2010.
Natalie Portman ganhou o Oscar de Melhor Atriz e o filme está sendo adaptado para um musical na Broadway. Mas o que o longa efetivamente fez foi solidificar para sempre o “tema do Lago dos Cisnes” como um de terror.
Como é possível, diante de uma das melodias mais famosas de todos os tempos, emocionante e romântica? Simples, Hollywood a usou para Drácula. Quando Bela Lugosi imortalizou a imagem do vampiro, foi ao som de Tchaikovsky e, desde então, a alma sombria e trágica da composição entrou para o imaginário popular como um tema de dor, solidão e medo.
Abigail também usa a música por isso. No caso da obra de 1931, a escolha pela música clássica foi simples: uma forma de reduzir os custos de produção e não pagar por um tema original. Sim, vampiro até nisso, sugando do ballet sua principal fonte.
Como mudar a narrativa do “tutu sangrento”?
Num excelente artigo publicado no New York Times, a jornalista Margaret Fuhrer ressaltou o tema, justamente questionando a conexão de uma arte etérea como a dança clássica com o gênero de terror. “Durante décadas, o cinema e a televisão extraíram o drama da ideia da bailarina cuja elegância no palco esconde uma escuridão terrível”, ela escreve.
“Às vezes, esse drama está ancorado nas verdades da vida do balé: a busca pela perfeição impossível, o sacrifício corporal exigido por uma arte física. Mas, às vezes, essas histórias se apoiam nos clichês mais amplos, usando o balé como uma bela tela para respingar sangue”, completa.
Eu diria que o pânico da dor e do sangue tem maior impacto do que falar dos riscos de distúrbios alimentares (ilustrados em Cisne Negro e Center Stage, mas ignorados em Sapatinhos Vermelhos ou Momento de Decisão), ou saúde mental.
O problema é que, como Margaret também ressalta, hoje a imagem mais popular é a da “bailarina perigosa’, uma sociopata desequilibrada e violenta (o que gera o clichê batizado como “tutu sangrento”, na referência da roupa que a bailarina usa no palco), o que está longe da realidade, é repetitivo e previsível e não ajuda a endereçar os temas mais sensíveis do universo do ballet.
Como ela mesma diz, “A bailarina perigosa – tal como imaginada na tela e depois no imaginário popular – é obcecada, atormentada e provavelmente acabará prejudicando a si mesma ou a outras pessoas.” Reparem: imaginário popular. Já está estabelecido.
E a fala de Terry Gillet, uma das criadoras de Abigail, que na matéria descreve bailarinas como pessoas “dedicadas, obstinadas e poderosas”, mas que “sabem como esconder tudo isso”, como o espelho de profissionais dissimuladas de alguma maneira, reforça a ideia.
Segundo o NYT, Abigail se espelha muito em Cisne Negro para construir a vampira do título, dizendo que a dualidade da “transformação” do cisne branco em preto, que não é a história de O Lago dos Cisnes, mas a história de terror criada por Darren Aronofsky, não necessariamente está perto do que acontece nos bastidores.
É o que a escritora Adrienne McLean comenta, que o cinema hoje reforça a ideia errada de que “o balé vai fazer você perder a cabeça” e que bailarinas são potencialmente “malucas’”. Isso não é legal, nem na ficção.
Se um dia o drama da escolha de Vicky Paige era a referência, hoje mães que ouvem suas filhas sonharem em ser bailarinas temem o efeito “cisne negro”, iconizado por Nina Sayers. Claro que como Abigail é uma vampira – literalmente – o filme é uma “piada” que usou a imagem como base. Em especial a “da bailarina de aparência inocente coberta de sangue”. Justamente a que a foto da sapatilha, inadvertidamente, inspirou.
Será que não há outra história para contar? Afinal, dados de pesquisa citados no New York Times dizem que, nos Estados Unidos, menos de 2% da população sequer viu um ballet na vida, ou seja, associar bailarinas à psicopatas e vampiros não parece colaborar para popularizar a dança, mas sim alimentar mais distorções e maus exemplos. Meu coração sente por isso.