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Maternidade e carreira: a complexa equação na vida das mulheres modernas

A chegada dos filhos segue afetando desproporcionalmente a carreira das mulheres. Entenda esses impactos — e como tentar contorná-los

Por Paola Carvalho
19 dez 2024, 16h00
Maternidade e carreira: a complexa equação na vida das mulheres modernas
Em pleno 2024, as mulheres ainda enfrentam dificuldades para consciliar suas carreiras e a complexidade do maternar. Mas como garantir que esses dois aspectos tão importantes na vida feminina sejam contemplados por igual? (Imagem gerada por IA/CLAUDIA)
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Daniele*, 41 anos, é formada em engenharia na Universidade Federal de Santa Catarina, e pós-graduada em Gestão Industrial pela Fundação Getúlio Vargas. Em 2008, junto com Ivan*, seu marido, saiu de seu emprego tradicional para tentar a vida de empreendedora.

Assim, criaram uma empresa de tecnologia que hoje conta com quase 80 funcionários, marca presença em mais de 30 países e atende cerca de 700 corporações. Hoje, ela é diretora financeira e de recursos humanos. Ele é o CEO.

Daniele e Ivan teriam trajetórias profissionais de sucesso semelhantes, não fosse por um imenso detalhe: o hiato de carreira que ela tirou em razão da maternidade, uma questão delicada, que até hoje a deixa emocionada.“Sempre achei que filhos se adaptavam à família e não o inverso”, disse.

A filha do casal nasceu em setembro de 2019, período pré-pandemia, quando Daniele passou a dedicar os seus dias exclusivamente à menina. Em dois meses, tentou voltar à empresa — afinal de contas, era a dona do negócio, sem direito a férias ou licença- maternidade, conforme ponderou. Como não queria deixar de amamentá-la, passou a levar a pequenina ao escritório.

“Eu queria que ela fizesse parte e que as mulheres me vissem amamentando durante o trabalho, que era possível conciliar as duas coisas. Hoje sei que não é bem assim”, afirma. Em março daquele ano, com tudo o que a Covid-19 provocou, ela e o marido passaram a trabalhar de casa junto com a bebê de seis meses.

“Ela escalava no meu computador, necessitava da minha atenção o tempo todo”. Foi então que Daniele percebeu que algo teria que mudar. “Falei: não dá, não tem como”, lembra.  Até a gravidez, Daniele era a responsável pelas áreas financeira, administrativa e operacional. Quando a criança chegou, teve de largar o trabalho e repassar as responsabilidades e tarefas para dois novos sócios e um funcionário.

“Não foi fácil, pois eu gosto da vida corporativa. Mas esse tempo para mim era necessário”. Ela era sócia, mas perdeu a remuneração de executiva. 

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O que é penalidade materna?

Quando um dos parceiros, na maioria das vezes a mulher, decide ficar à disposição para os filhos, cria-se uma disparidade salarial. É a hora em que homens e mulheres passam a ter trajetórias diferentes: mesmo que antes da chegada das crianças ambos tivessem carreiras semelhantes, é nesse momento que as mulheres passam a receber menos e ficam para trás, o que acaba gerando a famosa desigualdade salarial entre os gêneros.

É isso que os especialistas chamam de “penalidade materna”. Essa é uma das conclusões da professora de Harvard Claudia Goldin, a primeira mulher a receber sozinha, em 2023, o Nobel de economia, no livro Carreira e Família: Jornada de Gerações de Mulheres Rumo À Equidade (editora Portfolio-Penguin), traduzido e publicado recentemente no Brasil. 

Ou seja, no mundo todo mulheres “escolhem” retroceder no emprego, momentaneamente ou não, por uma série de razões depois do nascimento de um filho. A palavra “escolhem” está entre aspas porque muitas vezes não se trata de uma decisão para elas.

Frequentemente, profissionais do sexo feminino acabam demitidas quando se tornam mães por acreditarem que elas param de render como antes, ou por faltas no serviço em decorrência de imprevistos com os pequenos. De fato, no Brasil, uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas mostrou que 48% das mulheres com filhos de dois anos ou menos acabam afastadas do mercado de trabalho.

Maternidade e carreira: a complexa equação na vida das mulheres modernas
Ou seja, no mundo todo mulheres “escolhem” retroceder no emprego, momentaneamente ou não, por uma série de razões depois do nascimento de um filho (Imagem gerada por IA/CLAUDIA)
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A ideia de “escolha” também é errônea por outros fatores. Sobrecarregadas com a vida profissional, a doméstica, o trabalho de cuidado e sem rede de apoio, muitas mulheres acreditam que é mais fácil abrir mão do trabalho remunerado para focar nas crianças. Quem é que consegue conciliar tudo isso, afinal? 

“Muitas vezes a gente escuta, por exemplo, que as mulheres desistiram de trabalhar e preferiram ficar em casa. Que tipo de desistência se está falando? De alguém que trabalhou, participou do mercado de trabalho, mas que ao mesmo tempo tinha uma carga de trabalho de cuidado muito grande quando voltava para casa, que era responsabilizada caso acontecesse uma doença na família, uma criança que não ia bem na escola. E que, além de tudo, no mercado de trabalho era discriminada. Ela desistiu do mercado de trabalho ou foi expulsa do mercado de trabalho?”, questiona a economista Regina Madalozzo, autora do livro Iguais e Diferentes: Uma Jornada Pela Economia Feminista (editora Zahar), lançado neste ano. 

Impactos econômicos e sociais

Voltando ao caso de Daniele, depois de um ano e meio “parada” (mais aspas aqui), ela teve de recomeçar na própria empresa. “No meu afastamento, eles trocaram o sistema, mudaram processos e organogramas, participaram de imersões de qualificações, e senti que fiquei mesmo para trás”, conta.

Assim, a remuneração, que havia sido reduzida à metade em seu retorno, não foi equiparada à dos sócios — que por sua vez, no mesmo período, contaram com aumento salarial. 

Apenas em 2024, com a filha perto de fazer 5 anos, é que ela conseguiu a equiparação —  dentro da empresa que ela mesma fundou. “Por mais que os sócios tivessem uma visão mais humanizada, esse é um problema estrutural. Claro, o pai se preocupa muito comigo e com ela. Mas a nova configuração da família nada mudou na rotina dele, não interferiu em suas decisões”, diz Daniele.

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O incômodo virou estudo, que virou treinamento dentro da empresa, que virou o capítulo de um livro de gestão, que leva o título Como Empresas Vão Gerir Novas Gerações

Grande parte das mulheres com graduação segue uma carreira, mas suas remunerações e promoções, comparadas às dos homens, continuam a dar a impressão de que elas têm sido atropeladas, como mostra Daniele e alerta a professora de Harvard Claudia Goldin. As mulheres têm um problema sem nome único, que hoje atende  à soma de muitas expressões: discriminação sexual, viés de genero, barreira invisível, mommy track, leaning out (veja significados no fim da matéria).

Maternidade e carreira: a complexa equação na vida das mulheres modernas
“Por mais que os sócios tivessem uma visão mais humanizada, esse é um problema estrutural”, revela Daniele (Imagem gerada por IA/CLAUDIA)

Ainda que os nomes variem, os efeitos não deixam dúvidas em relação à sua gravidade. Os ministérios do Trabalho e Emprego e das Mulheres apresentaram, neste ano, as duas primeiras edições do Relatório Nacional de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios.

Os dados apontam que as mulheres ganham 20,7% menos do que os homens — e houve aumento desse distanciamento. Quanto aos cargos de direção e gerência, as mulheres recebem 27% menos do que os homens. Quando se trata de profissionais em nível superior, elas ganham 31,2% abaixo do que eles são remunerados.

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A diferença se acentua quando a mulher é negra: ela ganha metade (50,2%) do salário dos homens não negros, conforme a pesquisa. O levantamento contém um balanço das informações enviadas por cerca de 50 mil estabelecimentos com 100 ou mais empregados, que juntos somam aproximadamente 18 milhões de empregados. 

A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, no lançamento do relatório, que coincidiu com Dia Internacional da Igualdade Salarial, instituído em 2019 pela ONU, defendeu que é preciso mudar a mentalidade de toda a sociedade em relação aos papéis estabelecidos a homens e mulheres, estas, muitas vezes, dedicadas aos serviços domésticos e ao cuidado de outras pessoas.

“Ainda acham que o que as mulheres ganham é o complemento do salário dos homens. Não é. Nós precisamos convencer as empresas, os homens e todo o mundo que as mulheres, hoje, são aquelas que também mantêm suas famílias. O desafio é coá-las na centralidade do debate.” A ONU alertou que, no ritmo atual, serão necessários 300 anos para alcançar a igualdade de gênero no mundo.

De olho no futuro feminino

A nova realidade, “importante e promissora”, é que muitos casais gostariam de ter uma divisão mais igualitária do trabalho em seus casamentos, conforme a abordagem de Goldin. Segundo ela, os maridos se mostram menos dispostos a querer que as esposas renunciem a suas carreiras para se incubirem dos cuidados domésticos.

Entre os maridos com graduação, 67% responderam que o melhor casamento se dá quando marido e esposa têm emprego e ambos cuidam da casa e dos filhos. As mulheres com graduação gostariam de ter uma igualdade ainda maior em seus relacionamentos, e 80% declararam que o melhor casamento se dá quando ambos têm emprego e dividem as responsabilidades parentais. 

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Maternidade e carreira: a complexa equação na vida das mulheres modernas
“Estamos despertando coletivamente para a importância e o valor dos cuidados com a família, para a geração atual e as futuras”, revela a economista Claudia Goldin (Imagem gerada por IA/CLAUDIA)

“Agora, mais do que nunca, casais de todos os tipos estão se empenhando em equilibrar emprego e família, vida profissional e vida doméstica. Estamos despertando coletivamente para a importância e o valor dos cuidados com a família, para a geração atual e as futuras. Começamos a entender, de modo pleno, seu custo em termos de perda de renda, achatamento de carreiras e concessões entre casais (heterossexuais e homossexuais), além das demandas especialmente exigentes que recaem sobre mães e pais solo”, avalia Goldin.

Ela considera ser importante uma mudança profunda — assim como contar com o apoio dos homens. Criar as novas gerações, afinal, precisa ser uma tarefa coletiva.  

Dicionário materno

Conheça 7 expressões usadas pela vencedora do Nobel de Economia Claudia Goldin: 

Mommy track

Refere-se a uma carreira profissional que é moldada ou limitada pelas responsabilidades da maternidade;

Leaning out

Contrasta com o conceito de “leaning in”, popularizado pela COO do Facebook, Sheryl Sandberg, em seu livro Faça Acontecer (Portfolio-Penguin). Enquanto “leaning in” sugere que as mulheres devem se engajar em buscar oportunidades de ascensão no trabalho, “leaning out” tem a ver com o ato de recuar ou optar por  não se esforçar tanto no trabalho, muitas vezes em busca do equilíbrio entre a vida profissional e a pessoal. 

Hiato salarial

Embora seja uma expressão muito usada, o hiato salarial entre os gêneros não é uma estatística isolada, como em geral é apresentado. Pelo contrário, ele é dinâmico.

Amplia-se conforme aumenta a idade de homens e mulheres e conforme casam-se e têm filhos. Também apresenta diferenças consideráveis  de acordo com a ocupação, em especial entre pessoas formadas com graduação. 

Carreira

Envolve aprender, crescer, investir e colher resultados. Exige atenção integral para construir e avançar.  Se não, não é carreira, é um emprego.

Hiato de carreira

Períodos em que mulheres se afastam temporariamente do mercado de trabalho, comuns durante as fases de cuidado com a família. São períodos de afastamento que impactam a trajetória profissional, resultando em salários mais baixos e menores oportunidades de crescimento,  o que contribui para a desigualdade de gênero no mercado de trabalho.

Disparidade conjugal

Refere-se às desigualdades que surgem entre cônjuges em termos de remuneração, avanço na carreira e divisão de responsabilidades domésticas e familiares. Frequentemente acontecem após o casamento e se intensificam com a chegada dos filhos.

É quando mulheres precisam fazer escolhas, como jornadas mais curtas, trabalhos mais flexíveis (e frequentemente menos remunerados), enquanto seus parceiros tendem a manter jornadas de trabalho mais longas e em posições de maior remuneração  e responsabilidade, com possibilidade  de promoções e aumentos. 

Trabalho ganancioso

Quando um cônjuge (geralmente o homem) assume o trabalho melhor remunerado, que exige extrema dedicação e disponibilidade de horas, enquanto o outro (geralmente a mulher) aceita o trabalho mais flexível para estar mais disponível para cuidar da família e do lar.

Ao abrir mão de rendimentos e progressão da carreira em detrimento a essas “vantagens”,  a disparidade conjugal é reforçada.

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