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Diário De Uma Quarentener

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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.
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Nesta Páscoa, carrego muitas saudades. Hoje, minha mãe completaria 54 anos

Não acho que seja à toa que saudade seja um substantivo feminino, tamanha a força que três sílabas carregam

Por Juliana Borges
12 abr 2020, 19h32
 (Getty Images/Getty Images)
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Saudade. 

Um domingo de Páscoa diferente para muitos diante das atuais circunstâncias. Para os cristãos, a Páscoa representa uma festividade para celebrar a ressurreição de Cristo, carregando, portanto, o significado de renovação, de triunfo da vida. Entre os cristãos, por uma ampla gama de vertentes, a data é comemorada de diversas maneiras. De origem judaica, a palavra páscoa vem da palavra “pessach”, que significa “passagem”. Assim, páscoa para os judeus marca a passagem da escravidão do povo hebreu no Egito para a liberdade. Se quisermos associar a uma imagem, lembremos da travessia do Mar Vermelho, na qual milhões de judeus são liderados por Moisés rumo a terra prometida.

Para mim, o significado de páscoa é bem amplo. Mas, acho que se associa sempre a passagem, pelo movimento constante desses significados em diferentes momentos da minha vida. E daí, a ideia de falar, hoje, sobre saudade. Esse deve ser um dos escritos mais difíceis desse diário. Não porque tem algo de complexo e altamente sofisticado, mas porque muitas memórias e recordações foram acionadas.

No dicionário Michaelis, “saudade” é substantivo feminino, que denota sentimento de nostalgia e melancolia “associado à recordação de pessoa ou coisa ausente, distante ou extinta”. Também pode ser uma “cantiga entoada por marinheiros em alto-mar”. De todas as acepções, saudade me parece sempre associada à memória. Não acho que seja à toa que saudade seja um substantivo feminino, tamanha a força que três sílabas carregam. A saudade que sinto hoje está ligada tanto à melancolia, a uma grande tristeza e a um imenso desencanto por tudo que estamos passando; quanto à nostalgia, é um sentimento impulsionado por lembranças, pela vontade de regressar e reviver essas memórias. Mas, também, em outro sentido mais positivo da saudade, como aquilo de bom que guardo de tantas pessoas.

Esta Páscoa, em específico, carrega muitas saudades. Como a memória que tenho das novenas que eu ia com minha avó nesta época do ano. Eu não entendia muito bem aquilo, mas eu adorava o fato de ir com minha avó encontrar outras senhorinhas e crianças do bairro. Sempre após a novena, alguma senhorinha oferecia bolo, salgado, suco ou refrigerante. Mas ali, mesmo não seguindo mais o catolicismo, aprendi sobre comunhão, sobre o significado de misericórdia e compaixão. Eu fiquei realmente brava quando essa senhorinha de 82 anos, teimosamente, e contra todas as minhas bravatas, decidiu vir trazer o kit de almoço da sexta-feira santa: bacalhau e arroz branco. De máscara, trouxe chocolates e refrigerantes para as minhas irmãs. Como fazê-la entender que deve ficar em casa? Depois, fiquei imaginando o quanto deve ser difícil para uma senhora de 82 anos, depois de tantas sextas-feiras santas, pensar que a gente poderia ficar sem o peixe da data. Mas não há tempo para misericórdia diante da teimosia. A Páscoa também me trouxe a saudosa recordação de minha bisavó Damiana, de algumas lembranças que tenho de encontros familiares; do meu tio-avó Zeca, que me apoiava em seus pés e dançava comigo pela sala; da minha tia Neguinha, que me levava para a sua casa para passar períodos das férias e andávamos por todo o bairro do Jabaquara, em passeios com risadas, aprendizados e alguma roupinha ou item acessório para as minhas várias bonecas Barbie.

Muitas são as saudades carregadas em um feriado como o da páscoa – como a saudade de minha mãe. Hoje, ela completaria 54 anos, se estivesse aqui fisicamente. Porque viva, minha mãe está em todos os meus pensamentos cotidianos, no jeito e das coisas que rio, em como eu sou impulsiva, no meu sarcasmo diante do mundo, no meu amor pela leitura, no meu interesse por cinema e até mesmo na minha mania de trocar o dia pela noite. Minha tia-avó e tias sempre repetiam que meu jeito notívago era característica nata de “filhas da Claudia”. A saudade de minha mãe me projetou para possibilidades, caso ela aqui estivesse. Sei que ela me acompanharia na maratona de filmes sul-coreanos, enquanto degustaríamos um bom vinho chileno, seus preferidos. Como se em um comentário irônico de Claudia, um ano após sua partida, seu aniversário cai na mesma data da Páscoa. Não que ela comemorasse a páscoa católica. Minha mãe era de outra matriz cristã, o que de modo algum esvaziava o sentido importante do dia 14 de nisã e de como ele representa ressurgimento e renovação. Todas as expressões para a saudade passam pela memória que tenho de minha mãe, seja porque “morro de saudades”, seja porque vivo “rebequeando de saudade” dela.

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Então, em forma de carta de atualização dos acontecimentos para minha mãe, termino o diário de hoje:

Mãe, eu queria dizer que as coisas estão ótimas, mas não estão. O mundo passa por uma nova pandemia; o temido vulcão Anak Krakatoa, na Indonésia, está ativo; dias após o Congo decretar o fim da epidemia do ebola, novos casos surgiram; aquele que a gente não pronunciava o nome continua ocupando o Planalto, mas o Lula está livre. Eu e as meninas estamos bem, com as contas em dia, apesar do cenário econômico péssimo, graças a Deus e aos orixás. Eu acho que você iria adorar o filme sul-coreano “High Society” e que já teria organizado kits de sobrevivência para o apocalipse. Mas, calma, eu sou sua filha e estou garantindo isso, mesmo com a minha corriqueira hesitação diante de alguns acontecimentos, coisa que você reclamava tanto. O bolinho de chuva não fica igual ao seu e eu já modifiquei a receita várias vezes. Se puder enviá-la por sonho, eu agradeço, porque sentimos falta. Também tentei um bolo de fubá com coco, mas acho que eu poderia ter colocado mais fubá. Pode enviar também? Na saudade imensa, lembrei de um poema do Drummond, que você sabe que eu gosto muito, o “Para sempre”, em que ele pergunta “Por que deus permite que mães vão-se embora?”. Fiquei por meses martelando isso, até lembrar de você dizendo para não culpar Deus por desgraças no mundo. Porque, afinal, independente de como cada um enxerga, sente e vive Deus, ele é amor, afeto, alegria, renovação e passagem. Um beijo da sua Jujuba.

Acompanhe o “Diário De Uma Quarentener”:

01/04 – A rotina do isolamento de Juliana Borges no “Diário De Uma Quarentener”

02/04 – O manual de sobrevivência de uma quarentener

03/04 – Permita-se viver “o nada” na quarentena sem culpa

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06/04 – O que a gente come tem algo a ver com as pandemias?

07/04 – As periferias e as mobilizações na pandemia

08/04 – Um exemplo de despreparo em uma pandemia

09/04 – Como perder a noção do tempo sem esquecer a gravidade dos tempos

10/04 – Não é hora de afrouxarmos o distanciamento. Se você pode, fique em casa!

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