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Diário De Uma Quarentener

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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.

Eu sou um homem negro em um mundo branco

Nos EUA, quatro policiais lincharam George Floyd, que pediu por sua vida, enquanto um dos policiais jogava todo o peso no pescoço

Por Da Redação
Atualizado em 28 Maio 2020, 20h09 - Publicado em 28 Maio 2020, 20h08
 (Stephen Maturen/Getty Images)
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São Paulo, 28 de maio de 2020

O título do texto de hoje é a tradução do nome de uma música do Michael Kiwanuka, “I’m a black man in a white world”. Escute-a enquanto lê

Não é muito producente ficar dois dias longe de um diário. Se a ideia é documentar os pensamentos de todos os dias, eu sei que falho se deixo de fazê-lo mesmo que por breves dois dias. Mas eu imagino que, na dinâmica dos tempos atuais, você irá me perdoar. Primeiro, porque as pessoas caíram em uma espiral de uso desenfreado das ferramentas digitais, achando que todos os nossos dias precisam ser preenchidos por algum momento na frente do computador em algum chat do Zoom.

Uma brisa ostentação é dizer que você passou mais de 12 horas em reuniões online. Só que isso tem um preço, já que não há cérebro que aguente tudo isso. O meu já está prestes a sucumbir. E, para piorar tudo isso, ainda tem TPM, cólica e dor nas costas. Não contente, o mundo ainda impõe uma outra pressão: do racismo.

Teoricamente, estamos em um processo dificílimo para todos, no qual a preocupação e o compromisso com nossas vidas ante um novo vírus seja prioridade. E eu digo que isso é pura teoria sem nenhum medo. Há poucos dias, mataram um estudante, João Pedro, que poderia ser seu filho, dentro de casa. Um tiro de fuzil nas costas que causa efeitos terríveis no corpo até que leve à morte. Há dois dias, nos Estados Unidos, quatro policiais assassinaram, melhor dizendo lincharam, George Floyd. Por 5 minutos, ou um pouco mais, o que dá a dimensão do sofrimento e desespero àquele homem, Floyd pediu por sua vida, enquanto um dos policiais jogava todo o peso em seu joelho no pescoço. “I can’t breathe” (em português, eu não consigo respirar), ele disse. Até que desfalecesse e morresse, enquanto várias pessoas gritavam ao redor por sua vida e gritavam, sem qualquer compadecimento do policial assassino.

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Uma série de revoltas acontecem há dois dias em Minneapolis. Revoltas que fazem jus a um ensinamento de Malcolm X, de que a reação a uma morte deve ser proporcional ao ato violento que a ocasionou. Milhares estão nas ruas. O prefeito da cidade demitiu os quatro policiais, mas não se trata apenas disso. Aos gritos de “No justice, no peace!” (em português, Sem justiça, sem paz), manifestantes incendiaram o prédio da delegacia de polícia que os assassinos trabalhavam, cercaram a casa de um deles, que precisou de proteção policial. Mas quais foram os policiais que protegeram George Floyd? Vários artistas renomados se pronunciaram demandando justiça. Um assassinato foi filmado. Não há o que contestar. A partir da indignação ativa, foi pedido abertura de investigação pelo FBI e a presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, a democrata Nancy Pelosi, fez um pronunciamento como nunca vi uma pessoa em alto posto como o dela fazer aqui no Brasil – o que poderia, sem dúvida, ter sido feito sobre o caso de João Pedro – “O que vimos na tevê foi um assassinato e não foi autodefesa”.

Aqui no Brasil, as pessoas tentaram manchar a memória de um garoto de 14 anos, assassinado covardemente. Aqui, temos os autos de resistência, em que policiais alegam autodefesa em relatórios sobre mortes em comunidades, enquanto que seus laudos apontam que os jovens foram alvejados nas costas e na nuca. Aqui, você precisa levantar uma ficha de antecedentes criminais até a 3ª geração passada de um jovem para que alguma celebridade se levante com a indignação que Viola Davis se levantou, que Jay-Z e Beyoncé se levantam. Como se assassinatos brutais fossem permitidos. Em nosso país, um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos. Enquanto eu escrevi o texto de hoje, quantos foram assassinados? Quantos pediram por suas vidas? Quantos perguntaram, “por que o senhor atirou em mim?”, como perguntou Douglas Rodrigues, após ser alvejado por um policial. Quantos disseram “eu quero a minha mãe”, como o jovem Herinaldo Santana, de 11 anos, quando foi baleado por policiais, apenas porque descia um escadão correndo, provavelmente com medo dos tiros? Quantos pediram como Lucas Custódio, de 16 anos, “Não precisa me matar, senhor…” antes de ser morto em um matagal, na zona sul de São Paulo? Lucas Custódio jogava bola com os amigos quando foi levado, melhor seria sequestrado, por policiais.

Mas não adianta apenas que pessoas brancas, ou lidas como brancas, ou que vivem como brancas, fiquem chocadas. Como bem disse a escritora e ativista Rachel Elizabeth Cargle, estamos cansados de ouvir “Estou chocada!”, ou “eu não acredito nisso”, quando pessoas negras relatam o racismo cotidiano que vivem e quando casos como esses ganham um pouco de repercussão – já que infelizmente, naturalizamos essa violência. Ela diz: “É ofensivo que nossa dor é tão distante dos seus radares, que mencioná-la choque vocês. É doloroso saber que as notícias que me mantém acordada a noite não chegaram nem perto de ser um tópico de conversa em seu mundo. (…)”. Quando eu te disser do flagrante abuso, racismo e trauma acontecendo com uma mulher negra e suas famílias, eu preciso ouvir: “eu encontrei uma organização que ajuda nesses casos e fiz uma doação”, “eu levei essa discussão para os meus colegas de trabalho e familiares para que falemos sobre o que está acontecendo”, “eu pesquisei mais sobre isso e eu aprendi mais sobre o histórico de racismo que temos em nosso país”. E ela termina dizendo: “seu espanto não é solidariedade. Suas ações são a única coisa que posso aceitar nesse momento. (…) complacência não é bem-vinda”.

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Empatia não pode ser apenas choque, solidariedade em palavras, muito menos pena. A empatia deve redundar em exercício ativo de transformação diante da violência policial a qual a população negra é submetida todos os dias. É demandar que nossa mídia hegemônica fale de George Floyd, mas também fale com o devido respeito sobre João Pedro, sobre Lucas Custódio, sobre Douglas Rodrigues, sobre Herinaldo Santana. Um jovem negro assassinado a cada 23 minutos não pode ser naturalizado, não pode passar “em branco”. Se compreendemos a indignação estadunidense, precisamos olhar para o nosso quintal e nos perguntar porque não nos indignamos.

Nas fotos das manifestações que acontecem em Minneapolis, pessoas brancas que fazem a luta antirracista formaram um cordão humano entre policiais e outros manifestantes negros, para protegê-los, porque sabem que a violência terá um limite com as suas presenças. Só o seu choque, só o seu apoio em mensagens de WhatsApp, é muito pouco. Não queremos mais ser pessoas negras vivendo em um mundo branco. E, se você se indigna tanto quanto eu adoeço ao ler sobre essas notícias todos os dias, precisará fazer um pouco mais do que vem fazendo até agora.

Acompanhe o “Diário De Uma Quarentener

Todas as mulheres podem (e devem) assumir postura antirracista

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