Lembra do Woody Allen que não gostava de falar da vida pessoal?
O diretor lançou sua autobiografia onde se defende das acusações de abuso sexual falando mal de Mia Farrow
Na calada, em tempos de quarentena, e antes que houvesse mais pressão contra, o diretor Woody Allen lançou sua autobiografia essa semana nos Estados Unidos. O livro A Propos of Nothing (traduzindo seria algo como ‘Sem motivo’) chegou a ser anunciado – e suspenso – quando seus filhos com a atriz Mia Farrow foram a público protestar.
Hoje é inimaginável o quanto Allen odiava expor sua vida pessoal. Sim, ele usava muitos elementos em seus roteiros, mas sempre foi avesso à entrevistas, autógrafos e basicamente uma vida de fama. A persona neurótica e romântica que construiu ao longo de uma respeitada filmografia, não é nem perto o Woody Allen de hoje.
Na longa batalha de quem está mentindo ou não que dura três décadas, os argumentos e acusações não mudaram, mas os tempos, sim. Ficou pior para o diretor.
União profissional e pessoal com Mia Farrow
Solteirão convicto, abertamente contra constituir uma família, foi muito surpreendente ainda nos anos 1980 quando Woody Allen e Mia Farrow, uma católica devota, se juntaram. Ela já era uma estrela, filha de atriz e diretor famosos, e vinha com 5 filhos (dois meninos gêmeos e três adotivos, incluindo Soon-Yi). Juntos fizeram Zelig, o brilhante A Rosa Púrpura do Cairo e muitos títulos elogiados pela crítica. Em seu livro, Allen repete que jamais viveu na mesma casa com ela ou que ele sequer tenha dormido no apartamento de Farrow enquanto estiveram juntos. Foram 13 anos. Quando conheceu Soon-Yi, ela tinha apenas 10 anos de idade.
O livro foi feito para atacar Farrow e não poupa farpas. Em um trecho ele diz que ela gosta “da reputação de santa e de publicidade, mas não suporta cuidar das crianças e nem olhar para elas”, diz. Também afirma que Farrow batia em Soon -Yi e relembra que o casamento com o segundo marido, o maestro André Previn, nasceu de um romance extra-conjugal no qual a atriz traiu a melhor amiga, que era casada com ele. No livro Allen fala mal da família da ex, inclusive insinua que famoso diretor de cinema John Farrow molestou os filhos. Não esquece de abordar também a questão da sugestão de que o filho dos dois – Satchel (hoje Ronan) – pudesse ser de Frank Sinatra. Ronan, oficialmente, é o único filho biológico de Allen. “Eu acho que ele é meu, mas nunca vou saber ao certo”, diz o diretor.
“Quando Satchel [Ronan] nasceu, as coisas tomaram um rumo sinistro”, Allen conta no livro. “Ela [Farrow] o colocou no seu quarto, na sua cama e insistia em amamentá-lo no peito. Ela me dizia que queria fazê-lo por anos e que estudos antropológicos mostrariam resultados positivos quando amamentação vai além da idade aceita em Upper West Side. Anos depois, duas mulheres profissionais e sensíveis que trabalharam na casa de Mia, Sandy Boluch (babá) e Judy Hollister (governanta), descreveram vários incidentes. Sandy diz que viu Mia dormindo nua com Satchel (Ronan) várias vezes até ele ter 11 anos de idade. Não sei o que antropólogos dizem sobre isso”, ele bate.
Mais do que se defender de não ter seduzido a enteada, Allen mantém que é inocente das acusações de abuso sexual da filha adotiva, Dylan. Ele e Soon-Yi insistem que ela foi e ainda é manipulada pela mãe. Na justiça não houve conclusão e Allen não foi preso, tampouco completamente inocentado. A batalha pela custódia da filha e de limpar seu nome é o grosso da biografia, alegando sem rodeios que Mia Farrow armou a acusação por despeito e por vingança. “Nunca encostei um dedo em Dylan, nunca fiz nada que pudesse ser confundido como abuso, foi uma fabricação do início ao fim”, ele insiste. A filha, hoje adulta, já se pronunciou mais de uma vez mantendo as acusações.
Vida com Soon Yi, quase 30 anos depois do escândalo
O romance entre o diretor e a filha da mulher com quem se relacionava há 13 anos começou quando Mia Farrow pediu que Allen desse mais atenção à Soon-Yi. Ela a levou para assistir jogos de basquete. Ali nasceu o romance, apesar da diferença de idade de 35 anos entre eles. “No início do nosso relacionamento, quando o desejo reinava soberano, não conseguíamos tirar as mãos de cima do outro”, ele descreve.
Sobre a reação de Mia Farrow ao descobrir as fotos da filha nua, ele é condescendente.
“Claro que entendo o choque dela, sua indignação, sua raiva, tudo. Era a reação correta”, ele diz. “Me pergunto: “caso soubesse o que aconteceria, lamentaria ter ficado com Soon-Yii?” Eu sempre respondo que faria tudo de novo, sem pestanejar”, declara.
Por Soon-Yi, Allen quebrou sua convicção de vida e se casou, em 1997. “Por que? Nada de razões românticas, apenas uma questão financeira”, ele diz no livro. “Eu adoro Soon-Yi e como sou muito mais velho posso morrer a qualquer momento. Queria deixá-la legalmente protegida caso isso acontecesse, que ela herdasse tudo que fosse meu sem problemas”, explica.
Claro, que como excelente roteirista como é, Allen alivia sua frieza. “Apesar da praticidade ser a razão do casamento, foi muito romântico”, lembra.
O livro, naturalmente é dedicado a esposa.
Triste opção para um diretor tão respeitado por ser avesso à explicações
O período da vida ‘escandalosa’ de Allen é hoje maior do que o de seus sucessos. Nos anos 1970 e 1980, ele tinha a adoração de críticos e público, suas excentricidades só alimentavam sua fama. Quando a notícia de seu relacionamento com a filha de Mia Farrow explodiu, foi um choque. Em vários de seus filmes, Allen namorava meninas muito novas, em retrospectiva seu relacionamento com Mariel Hemingway em Manhattan dá calafrios, mas nem na ficção ele flertou com o drama de se apaixonar pela enteada.
Hoje, 30 anos depois, a união dos dois segue inalterada. Houve tempo para que Mia Farrow superasse o trauma? Difícil julgar. Hoje vemos que em seus roteiros Woody Allen frequentemente criticava Farrow em seus filmes. Não é fácil separar a arte da realidade. No entanto, pelos trechos divulgados do livro, Allen perdeu a sutileza, a classe, até o humor e está agressivo. Acusar Mia Farrow de maus tratos e hipocrisia não justifica nada. E dizer que sua filha, que foi ao New York Times reforçar a acusação de abuso sexual, não sabe diferenciar ilusão de realidade, também é, minimamente, complicado.
Em tempos de cancelamentos eu ainda resisti muito a entregar filmes que adorei ao esquecimento. Verdade, a qualidade dele como diretor caiu (nem sempre se aplica a máxima de que ‘mesmo um Woody Allen ruim era um bom filme’), mas Match Point foi uma das melhores coisas que ele fez desde que passou a viver se defendendo. Infelizmente parece que, quanto mais ele fala, pior ele fica para ele mesmo. E não é porque sua história seja menor, é porque soa sem empatia pela dor dos outros. Essa autobiografia não traz nada de novo, não revela nenhuma surpresa e se de fato Woody Allen decidiu responder na mesma moeda, quem perde, é o cinema.