Existe pornô feminista? Entenda o debate
Com mais produções de mulheres, filmes adultos têm tido mais cuidado com ética e imagem. Isso basta para o feminismo abraçar o pornô? Ouvimos todos os lados
Sobre o sofá coberto com uma manta de crochê, que poderia pertencer a qualquer sala de estar brasileira, um homem beija as coxas grossas de uma mulher. Negra, gorda, gostosa. Eles se despem lentamente, e o homem avança com a língua entre as pernas dela. Depois de alguns minutos de sexo oral, enquanto a mulher suspira e movimenta os quadris no ritmo da boca do companheiro, uma das diretoras corta a cena, se aproxima e pergunta para ela: “Como você quer gozar?”. Esse episódio ocorreu durante a gravação da primeira temporada de Sobrepostas, série do Canal Brasil focada na sexualidade e no prazer femininos, cuja primeira temporada estreou em 2021. Além de entrevistas conduzidas pela cantora Ana Cañas, o programa traz cenas explícitas com histórias reais de mulheres em suas experimentações sexuais. Todas interpretadas com pessoas de gêneros e corpos diversos, muitos sex toys, fetiches, risadas e orgasmos.
Questionadas se Sobrepostas é uma obra erótica ou pornográfica, as diretoras Lívia Cheibub e Martina Sönksen devolvem a pergunta: “É uma cena de sexo explícito que categoriza um filme como pornográfico?”. É a mesma provocação que perpassa As Filhas do Fogo, filme da argentina Albertina Carri, que o define como um “pornô lésbico feminista” e que fez história ao estrear nas salas de cinema comerciais do Brasil em 2019. O road movie acompanha diversas mulheres numa jornada de Ushuaia a Buenos Aires, enquanto experimentam diversas formas de transar, masturbar, gozar. Tudo com closes em genitais, mas também belos enquadramentos que, por vezes, remetem a obras renascentistas. “Quais são os limites entre pornografia, cinema e arte?”, questiona Albertina.
Uma pornografia considerada feminista surgiu na década de 1980, tendo como uma das pioneiras e principais expoentes a atriz, roteirista e diretora Candida Royalle, cujos filmes apresentavam personagens femininas donas de suas narrativas e ângulos que priorizavam o ponto de vista das mulheres. Nos anos 1990, veio o movimento post porn, no qual tanto Albertina quanto Lívia e Martina se baseiam, que propõe um contraponto à ideologia patriarcal da pornografia mainstream –invariavelmente heterossexual e com narrativas que desumanizam e violentam corpos femininos. “É algo plural, é quase uma pornografia emancipatória, que, além questionar todas as regras e estereótipos sobre sexualidade e identidades de gênero, é um laboratório de experimentações que vem sendo feito por pessoas queer, não bináries, feministas”, diz Lívia.
Isso faz, necessariamente, com que essas obras sejam feministas? A questão, que não é nova, tem ganhado força desde 2020, quando, durante a pandemia de Covid-19, o consumo de pornografia aumentou 40% no Brasil, de acordo com levantamento do Pornhub (no mundo todo, esse crescimento foi de 18%). Para a socióloga britânica Neil Gail Dines, que pesquisa há mais de 25 anos essa indústria, não há ponderação: “Não existe pornografia feminista. É mais uma ferramenta do capitalismo explorando os corpos das mulheres, comercializando seu direito à intimidade e ao sexo”.
A própria Albertina Carri admite que “a pornografia não objetifica apenas mulheres, mas também os homens, que se convertem apenas num pênis”. A argentina se interessa, no entanto, em desconstruir esse gênero. “Através das imagens, se organiza e se constrói um mundo. Eu quero falar do gozo feminino desse outro lugar”, afirma ela.
O tema é tão complexo que sequer Erika Lust, diretora sueca considerada uma espécie de guru do “pornô feminista” não se entende nessa expressão. “A maior parte dessa indústria ainda é feita por e para homens, por isso me sinto mais confortável em dizer que sou uma feminista que faz pornô.” Ela, que construiu um verdadeiro império no ramo (é dona das produtoras e distribuidoras XConfessions, Lust Cinema, Else Cinema e The Store by Erika Lust), conta sempre com outras mulheres e pessoas LGBTQIA+ na frente e atrás das câmeras. “Dessa forma, toda a filmagem torna-se um processo feminista, pois compartilhamos os mesmos valores”, comenta Erika.
Para Vanessa Danieli, que há seis anos deixou de trabalhar como atriz pornô e hoje é produtora de conteúdo digital, não é bem assim. Ela nunca trabalhou com as diretoras entrevistadas por CLAUDIA, mas sua experiência com equipes femininas não a fez se sentir menos violentada. “Tinha a sensação de um pouco de segurança, por ter uma mulher dirigindo, mas ainda sentia meu corpo sendo explorado por terceiros. Não acredito em pornô feminista, pois não existe equidade de gênero na pornografia”, diz. Vanessa considera que os argumentos sobre a defesa do prazer feminino e a importância de exibi-lo nas telas e o uso de expressões como “pornô ético” não passam de “palavras mais bonitas e educadas” para tornar as produções mais palatáveis e vendáveis num mundo que debate cada vez mais os direitos de mulheres e outras minorias. “É uma lógica da exploração de corpos para ganhar dinheiro.”
Erika Lust conta com uma coordenadora de intimidade nas filmagens para garantir que os artistas discutam suas necessidades e limites antes, durante e depois das gravações. “A pornografia produzida eticamente conta histórias de personagens que são tratados de forma justa e que podem explorar e expressar plenamente suas identidades e sexualidade. Queremos que nossos artistas existam na frente da câmera sem serem reduzidos à sua aparência, características físicas ou cor da pele”, diz ela.
Esse tipo de pornografia geralmente está disponível atrás de um paywall, afinal, custa dinheiro garantir a qualidade cinematográfica e pagar de forma justa todos os envolvidos na produção. “Quando você paga pelo pornô, dá valor às pessoas que o fazem. Assim como em qualquer indústria, temos o poder, como consumidores, de causar impacto na forma como as coisas são produzidas e distribuídas”, afirma a diretora sueca.
É esse custo que dificulta o acesso de mais mulheres a conteúdos pornográficos feitos de forma mais consciente e não violenta. Ainda assim, Léa Menezes de Santana, pesquisadora do Núcleo em Cultura, Gêneros e Sexualidades da UFBA, com mestrado em pornô para mulheres, ressalta a importância dessas obras audiovisuais. “Entendo o discurso antipornografia, porque o sexo também é monetizado. Numa estrutura tão machista, o mundo por e para mulheres só está começando a existir agora. O feminismo tem esse trabalho de mudar o que é possível, romper com a cultura que privilegia o olhar masculino. E a sexualidade também é um espaço de trânsito nesse sentido”, defende. Para ela, não existem ferramentas ruins para mudar esse panorama, depende de como são utilizadas. Lívia e Martina concordam: “A sexualidade feminina e LGBTQIAP+ ainda são tabus em 2022! Nosso desejo e prazer não podem ser considerados algo impuro. Precisamos de mais linguagens para sair dessa armação perigosa. E a pornografia é uma delas”.