Você não é mulher!
É cada coisa que se ouve em briga de casal... Nossa colunista Marcela Leal lembra que as críticas mais importantes estão é na nossa autoavaliação, mesmo
Mariana e Paulo tinham um relacionamento de mexer mingau: estável, mas de mexer mingau. Mexer mingau significa que tudo ia razoavelmente bem, mas sem grandes emoções, sem arroubos de paixão, um relacionamento burocrático. Ela chamava Paulo de “amor”, mas, quando falava, aquilo não encaixava direito na imagem que via. Ele também a chamava de amor, dizia: “Te amo, amor.” Paulo aprendeu que, depois de algum tempo, era assim que os casais deviam chamar um ao outro, inclusive durante uma crise de ódio: “Vai à merda, amor!” “Te odeio, amor!” ou “Você está sendo muito cretina, amor!”. Afinal, quem não sabe o que é amor, não sente contradição quando usa a palavra fora de propósito.
Paulo foi um cara incrível para Mariana durante os três primeiros meses de paixão, como todos e todas são, afinal, estão todos olhando para as suas próprias idealizações projetadas no outro. Passados os três meses de alucinações românticas, Mariana viu o Paulo de verdade, o Paulo que ainda não conhecia, e se perguntou: “Quem é esse que está dividindo apartamento comigo? O que foi que eu fiz? Onde eu fui amarrar a minha égua? What the fuck is going on?”.
As pessoas que desejam se relacionar no formato “casal” deviam vir com uma carta de recomendação dos últimos parceiros. Imagine o tempo que não economizaríamos? Tipo: “João é legal, mas mão de vaca!” “Felipe é depressivo, mas é carinhoso.” “Rogério é bipolar. Fuja para as colinas!” Seria tão mais fácil não entrar numa roubada, não é?
Depois de um tempo, Paulo desistiu do sexo. Não porque não gostasse de Mariana, mas porque não gostava de si mesmo, portanto não queria intimidade física com ninguém. Um abraço mais apertado de um amigo já o deixava desconfortável. Mariana fazia questão de deixar claro que sexo era sim importante pra ela, e, no máximo, o que ouvia dele era um: “Tá bom! Pode ser mais tarde?”. E, às vezes, até transavam mais tarde, burocraticamente. Mariana se habituou a não transar, tentou inclusive se convencer de que não precisava de sexo para ser feliz com o marido, afinal, ele era gente boa em tudo, menos nisso. Ela pensava: “Para que arriscar começar tudo de novo com outra pessoa? Deixa assim mesmo.”.
Um dia, Mariana, aos trinta e três anos, se olhou no espelho e, em vez de ver seu rosto, viu o de sua tia avó. Mariana era jovem e viva, muito viva. E estava morrendo ou, no mínimo, se transformando em sua tia avó, que, para ela, era a mesma coisa que a morte. Ela sabia que era pela falta de sexo e de intimidade com o marido que se sentia assim. Não dava mais para continuar do mesmo jeito, então chamou Paulo para uma conversa definitiva: “Por que você não quer mais transar comigo?” E ele, na lata, respondeu a primeira mentira que lhe veio à mente e que pudesse mascarar seu medo de afeto: “Não quero transar com você porque você não é mulher!”.
Paulo argumentou que Mariana não sentava como mulher, que tinha uma postura estranha, que gostava de fazer xixi de porta aberta, que andava pela casa nua cantando, e que isso não era feminino e não era uma postura de mulher: era um comportamento broxante. Mariana olhou pra Paulo, viu o seu tio avô (que já tinha morrido, assim como Paulo) e teve uma crise de riso. Essa foi sua única resposta, uma crise de riso em gratidão ao Universo por não ser a mulher que Paulo idealizava, ou fingia que idealizava, afinal, sabia que o marido não estava realmente preparado para conviver com alguém como ela. Segundo Paulo, uma mulher é definida por uma série de conceitos e clichês que cabem numa lista de dez tópicos. Tudo que acontece fora dessa lista não é mulher. Ou melhor, é ameaçador. Paulo não estava pronto para viver com a essência, apenas com a forma. A forma é dominável e previsível, a essência é livre e, para alguns, assustadora.
Mariana e Paulo se separaram. Mariana está se tornando a cada dia menos mulher, segundo a avaliação de Paulo. Mariana está se tornando a cada dia mais feliz, segundo a sua própria avaliação.
Marcela Leal é humorista e escreve esta coluna quinzenalmente aqui no nosso site. Para falar com ela, cliquei aqui!