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Coluna da Liliane Prata: Valeu a pena ter vindo

"Valeu ter batido pela segunda vez na porta daquele apartamento", escreve nossa editora Liliane Prata, em tempos de amores fugazes e nossos medos de sempre

Por Liliane Prata Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 9 dez 2016, 17h49 - Publicado em 9 dez 2016, 17h44

Valeu a pena ter vindo, ela pensou ali, deitada, era muito cedo, ela não sabia as horas, mas era muito cedo, ele ainda dormia, e ela não queria pensar, mas pensava, é claro, é tanta coisa para se pensar o tempo todo que ela acabou pescando esta constatação naquele lago quase vazio em que esteve imersa nas últimas horas: valeu a pena ter vindo. Já fazia alguns anos que ela havia decidido não repetir encontros com a mesma pessoa, ela que adorava decidir as coisas, mas ela repetiu aquela noite que agora era manhã com aquele homem que agora dormia e concluiu que tinha valido a pena estar pela segunda vez naquela cama.

Ela pensou então na origem daquela expressão, “valer a pena”, que chata ela era, agora pensando na origem das expressões onde era lugar apenas de sentir o desejo e de abrir mão ainda que temporariamente de suas decisões, mas era assim que ela era, e as coisas são o que são, por mais que se tente mudar aqui e ali. Valeu a pena, será que isso vinha da caneta, do tempo em que caneta tinha uma pena? Valer a pena era porque tinha sido bom assinar o contrato, a carta, o poema, derramar a tinta sempre arriscada sobre o papel indefeso? Ela não sabia, o celular estava longe, lá na sala, lá no mundo do Google com as respostas sobre as origens das expressões, o mesmo mundo das redes sociais, das mensagens e demandas inesgotáveis, da montanha de informação, das falhas e dos excessos de comunicação, o mundo que ela não queria acessar agora, ainda que fosse o mesmo mundo do aplicativo de encontros por meio do qual ela o tinha conhecido, ela que já tinha conhecido tantos eles, ele que já tinha conhecido tantas elas, mas de novo, ela não queria acessar aquele mundo agora, ela que estava só pensando: valeu a pena ter vindo.

Valeu a pena, ela decidiu, agora com mais certeza do que nunca, a única certeza daquele agora. Valeu a tinta sobre o papel, e mesmo que a expressão não tenha vindo daí, valeu. Valeu ter saído do banheiro de manhã, caminhar pingando do chuveiro para o quarto e se arrumar para sair de casa, dos seus confortos, dos seus medos mais enraizados e também suas preguiças mais bestas – valeu a pena ter se depilado, nem sempre vale. Valeu ter usado o tempo para ganhar tempo ali, na cama, ele ainda dormindo, o celular ainda longe, ainda. Valeu ter cancelado um primeiro encontro com aquele outro cara que parecia promissor, promessa breve de uma noite só. Valeu ter batido pela segunda vez na porta daquele apartamento onde ela estava agora, e fodam-se os receios, que ela não sabia do que era feita a vida, mas também sabia que a vida não era feita só de receios, decisões e desilusões, a vida comporta algumas manhãs delicadamente separadas dos depois de amanhã, o olhar capta doses de real que talvez nunca virem uma foto, ou que talvez virem, vá saber: o que ela queria mesmo era não se dobrar nem aos medos nem aos planos, era demais querer isso, era demais pedir um pouco de não saber?

Valeu soltar a experiência das rédeas do controle, valeu se segurar para não marcar mais um primeiro encontro pelo aplicativo, o mesmo aplicativo que continuava acenando com outros encontros, mas que agora estava longe, lá na sala, lá no outro mundo – era impressionante como o aplicativo aproximava as pessoas da cama, mas ao mesmo tempo habitava uma dimensão completamente distinta das pessoas sobre a cama, ainda mais agora, de manhã, os corpos descansando naquele macio todo, o amarelado ainda vindo suave lá de fora, tão diferente da luz forte das telas. Valeu ter parado de se questionar sobre tudo o que tinha lhe acontecido nos últimos tempos, valeu ter parado de definir o que lhe aconteceria nos próximos tempos, ela que estava cansada dos objetivos, ela que às vezes detestava o que os objetivos tinham feito dela. “Vive aí,”, uma amiga tinha lhe dito alguns dias antes, uma amiga que buscava a mesma trilha que ela, a trilha dos que tentavam (inutilmente?) fugir de todas as trilhas. Mas, naquele momento, ao menos naquele momento, ela estava longe das trilhas, e cada passo daquela fuga valeu, ela pensava agora. Valeu sustentar por alguns poucos instantes a falta de juízo e a amnésia de sua história amorosa/romântica/patética/sexual, valeu deixar no varal suas certezas antes que chovesse, ainda que o céu estivesse cinzento como sempre. Valeu estar ali, aceitando que não sabia o que seria depois dali, aceitando que não sabia quem ele era e mesmo quem ela era: valeu não fugir, não pedir, não atender pedidos, valeu aceitar que naquele instante era quase uma desconhecida para si mesma, ela que estava longe do celular e também do espelho.

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Ela voltou a dormir, entregue à luz amarelada, aos lençóis macios, à leveza do corpo sem roupa e do espírito sem pretensões.

Duas horas depois, quando ela abriu os olhos, ele continuava dormindo, mas ela agora era outra: a luz entrou forte pela janela, despertando todo o turbilhão dentro dela, e o futuro e o passado invadiram ferozes o cômodo. Ela se levantou, vestiu a calça jeans e a camiseta, pegou a bolsa na sala, abriu a porta, chamou o elevador, olhou o celular. Na tela, os dedos velozes, os olhos atentos, a correnteza das mensagens sem fim.

Liliane Prata é editora de CLAUDIA e escreve aqui no site semanalmente. Para falar com ela, envie um e-mail para liliane.prata@abril.com.br

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