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Pra quando você acordar: o emocionante relato da mulher que escreve em um blog para o irmão em coma

Itamar está dormindo há 10 anos. Para lidar melhor com a situação, Bettina Bopp começou a escrever semanalmente para o seu irmão - e foi assim que ela conseguiu, finalmente, organizar seu caos

Por Fernanda Morelli
Atualizado em 22 out 2016, 20h43 - Publicado em 29 set 2015, 08h04
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“Desde que meu irmão entrou em coma, nunca perdi a esperança de ele acordar – embora, agora, 10 anos depois, seja um pouco mais difícil acreditar em um milagre. Itamar sofreu uma parada cardíaca quando ele tinha 41 anos e, durante 40 minutos, os médicos ficaram tentando reanimá-lo. Ele precisava escolher entre ir ou ficar. E ele decidiu ficar, apesar do que estava prestes a passar aqui. Desde então, ele está dormindo.

Você fugiu do quê? Por quê? O que estava tão pesado pra você e por que eu não pude te ajudar? Onde eu estava? Onde você estava? Eram tantas perguntas!

Passei por todas as fases: tive muita raiva, revolta, tristeza, perdi as esperanças, recuperei e perdi de novo. No começo, os médicos tinham um bom prognóstico porque o Ita nunca precisou de aparelho para respirar (existirem casos de pessoas que sofrem uma parada cardíaca de 15 minutos e nunca voltaram de um coma e outros que ficaram entre a vida e a morte durante uma hora e acordaram no mesmo dia, sem nenhuma sequela). A única coisa que ele precisa, hoje em dia, é de sonda para se alimentar. Ele respira sozinho, abre e fecha os olhos, às vezes demonstra algum gesto, se mexe, chora e até fala, embora nem sempre possamos entender.

Hoje o Ita vive em casa, com a minha mãe, sempre acompanhado de um enfermeiro. Nesses anos em coma, ele nunca melhorou. Mas também não piorou. Apesar da minha mãe sempre conversar com ele, ele não interage diretamente com a gente. Às vezes ele se emociona (lágrimas chegam a escorrer sobre o seu rosto). Às vezes ele sorri, mas não sabemos até que ponto essas emoções são, de fato, conscientes.

Itamar Bopp
Blog Pra Quando Você Acordar ()

O mais difícil, para nós, é que ele tem reações, o que torna qualquer desligamento mais difícil – e alimenta as esperanças. Às vezes, ele está com os olhos abertos e de repente fecha, como se tivesse resolvido dormir. Quando ele escuta um barulho, seja do cachorro latindo ou da porta batendo, ele pula na cama, com um movimento claro de quem se assustou. Há alguns meses ele trocou de enfermeiro e eu fui até o quarto dar uma olhada nele. Quando entrei, ele estava de costas para a porta, mas, com o barulho, virou-se em minha direção e começou a chorar.

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Eu sempre fui muito ligada ao Ita e quis estar no controle de tudo que acontecia com ele. Por isso, era comigo que os médicos conversavam e davam as notícias sobre sua saúde. No começo, os médicos diziam que ele tinha uma interação comigo, por menor que fosse. “O tônus muscular dele muda quando ele ouve a sua voz”, diziam eles. E, de fato, quando eu seguro a mão dele a musculatura dele retrai, sinto que alguma coisa acontece. Parece que ele olha para mim com um olhar de quem quer dizer alguma coisa. Às vezes ele olha profundamente, às vezes não. Apesar de ser bom saber que existe, de alguma forma, uma interação, isso tudo me deixava muito mal, porque se ele estava precisando de mim e queria dizer alguma coisa, eu não podia entender. E não podia ajudar. É desesperador.

Passei muito tempo da minha vida presa a essa situação. Com um nó na garganta e um sentimento de culpa, por estar “vivendo” e ele não. Por ter um trabalho, por conviver com a nossa família, por estar perto dos meus filhos, por sair, por passear com as amigas, viajar, por conseguir sorrir. Como eu poderia levar uma vida normal, sabendo que meu irmão estava ali, preso àquele sono profundo, sem saber se ele estava bem, se estava tranquilo, mesmo que naquela situação?

Foi quando encontrei, no blog, a possibilidade de me afastar sem culpa. Abri mão do contato tão próximo com ele, me libertei um pouco da situação de irmã do paciente em coma, e comecei a escrever, para quando ele acordar. Conto tudo para ele: as novidades da família, a situação do Brasil, sobre os amigos que me encontram e perguntam por ele, sobre como tanta coisa mudou desde que ele dormiu. Às vezes apenas jogo conversa fora. Às vezes desabafo minha dor.

O blog me permitiu viver sem culpa. Consigo, hoje, encarar diferente, como se ele não estivesse ali. O que vejo na cama é apenas o corpo dele. Como não posso conversar com ele no quarto, converso com ele pelo blog. Sei que assim meu alcance é maior. Não apenas porque sei que eu dia, quando ele acordar, ele possa ler. Mas também porque o Ita se tornou mais presente para mim. Reencontrei amigos dele que me trazem boas lembranças e me contam novas histórias, inclusive coisas da vida dele que eu nunca soube – e a sensação é extremamente diferente de quando o vejo, na cama, e fico com a sensação de não ser mais o meu irmão ali.

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O blog me trouxe algo que, a princípio, eu não esperava, mas que foi transformador: uma corrente de energia positiva das pessoas que me acompanham e me escrevem, seja porque estão passando por algo parecido ou simplesmente porque me desejam o bem – minhas publicações são lidas em mais de 100 países. O que no começo era algo íntimo, apenas para mim mesma, familiares e amigos próximos, começou a fazer parte da vida de pessoas desconhecidas. E, para minha sorte, pessoas incríveis.

Ter encontrado uma maneira de colocar isso para fora, de organizar minhas ideias, me trouxe paz, me permitiu viver novamente. Hoje tenho a sensação de que o Ita está fora do quarto. Quando uma pessoa morre, sua alma vai embora. A alma dele está aqui, em algum lugar. Eu precisei amar esse novo Itamar que eu desconhecia.

Ainda choro muito quando lembro que aquele Itamar que eu tanto amei não está mais aqui. Antes, queria que ele voltasse, porque, afinal, isso seria o melhor para mim. Mas quem disse que seria o melhor para ele? Hoje já consigo pensar que eu quero que ele volte se isso for o melhor para ele – e se ele quiser. Enquanto isso eu escrevo, para quando ele acordar.”

                                                                                                                                                           Bettina Bopp, autora do blog Pra quando você acordar

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Itamar com os sobrinhos Bruna, Maria e Lucca
Blog Pra Quando Você Acordar ()

 

 “Todos os dias, indo ou voltando do hospital, eu ouvia Quanto tempo será que demora um mês. E achava que era isso. Você acordaria em no máximo um mês e seria tudo como antes – daqui a um mês, quando você voltar, a lua vai tá cheia e no mesmo lugar. Já esperei mais ou menos umas 120 luas cheias e nada de você voltar.”

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“Você não vai acreditar, mas se acordar hoje, você já não sabe mais soletrar autorretrato – que agora se escreve assim, junto. Isso porque, desde 2009, existe uma nova ortografia”.

“Escolho a leveza do peso. Escolho significados. Você é meu irmão com um coração enorme e agora tão frágil que tenho medo de não existir. Você dorme um sono profundo. Talvez fale, mas não tenho um ouvido treinado pra escutar. Você tem luz e, embora sutilmente, espalha sementes por ai. Aprendi com você e por você a defender com fúria nosso ninho. E esperar. Porque não é a todo o momento que se tem um beija-flor nas mãos.”

“Sabia que às vezes me esforço pra não sentir dó de você? Quero pensar que não é porque você vive as coisas diferentes da gente que vive pior do que a gente. Como eu posso julgar? Eu desconheço. O cérebro esconde muitos mistérios. E acho que o que desejo pra você seja uma infinidade de sinestesias durante seu sono profundo. Desejo seu cérebro-meio-música-do-Djavan, interpretando todas as sensações em simultâneo. Assim, que o som da voz da mãe no seu quarto tenha diferentes sabores, que o barulho das brincadeiras das crianças no quintal traga colorido para os seus dias e que as risadas na sala aos domingos encham de melodia seu espaço.E desejo acreditar que o que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós”.

– Trechos do blog Pra Quando Você Acordar

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