Por que não grito com a minha filha
Para nossa editora e colunista Liliane Prata, não podemos nos queixar de que as crianças estão nervosas e mal-educadas se os descontrolados somos nós
Sempre me corta um pouco o coração ver adultos gritando com crianças.
Eu sei, eu sei, os pequenos nem sempre são fáceis e sujam o sofá de chocolate, e às vezes correm quando não é para correr, e às vezes gritam quando não é para gritar, e choram no parquinho dizendo que não querem ir embora, e nem sempre vão tomar banho/jantar/se arrumar para a escola na hora em que precisam fazer isso. Mas me corta o coração. Eles lá, tão pequenos, tão novos no mundo, com outras urgências: pular as linhas da calçada enquanto tudo o que a gente quer é chegar no horário, tampar as canetinhas devagarzinho, reparando nas cores, às vezes dublando a voz de cada uma delas, enquanto tudo o que a gente quer é ver logo os brinquedos no lugar porque, afinal, já está tarde, precisamos acordar cedo amanhã e a louça suja ainda está na pia…
Ao amá-los e educá-los, a gente acaba também por podá-los, ajustando-os ao mundo e suas regras, seus números, datas, horários e tarefas. O dia não corre solto, como eles certamente gostariam. O dia é todo fracionado em vários pedacinhos de compromissos, e eles que nos acompanhem: o tempo urge. E é aí que muitos de nós perdem a paciência.
Outro dia, uma amiga comentou comigo que observa com frequência pais entrando em verdadeiro pé de guerra com os filhos pequenos, perdendo a paciência porque o iogurte caiu no chão, porque a van escolar chegou e eles não escovaram os dentes ou simplesmente porque estão preocupados com o trabalho. Ela me confessou que, vira e mexe, sua própria casa exalava em cada cômodo essa falta de paciência misturada com gritaria e correria, e ela, que queria tanto ter um filho, olhava para si e não gostava do que via: falando alto, às vezes se descontrolado e batendo boca com o filho de dois anos. “Ele me tira do sério”, ela disse. “Já vi amigas sendo chamadas de boba pelo filho de dois, três anos, e aí devolvem, nervosíssimas: ‘Você é que é um bobão!!!’. Acho uma cena tão horrível de se ver e não queria fazer isso, mas às vezes meu filho me deixa muito p. da vida”.
É uma cena horrível, mesmo.
Quando eu estava grávida, às vezes ficava pensando: agora quero tanto minha filhinha aqui comigo, mas será que quando ela crescer, usar uniforme, fizer tarefa de casa e essas coisas todas… Eu vou perder a paciência com ela? Quando eu precisar prender em minhas mãos essa coisa vasta e transbordante chamada maternidade, calando por alguns instantes tudo o que ter um filho significa para mim e resumindo a nossa relação a ordens, de um lado, e à obediência, de outro, eu vou sair berrando com a minha filha? Vou brigar com ela, vou me estressar, vou chegar ao ponto de pegar seus delicados bracinhos de criança e gritar: “ANDA LOGO?”, como tantas vezes já presenciei no clube, no parquinho?
Tenho minhas falhas como mãe, mas, entre meus acertos, contabilizo o de pautar o dia a dia com minha filha com equilíbrio e serenidade, e não com estresse, brigas e gritaria. Me orgulho ao constatar que nossas manhãs, sempre com muitos afazeres e sem empregada, geralmente são bem serenas. Aprendi, entre outras estratégias, que fazer com antecedência tudo o que envolve minha filha, arrumá-la para a escola, sair para a peça de teatro infantil e tudo mais, é ótimo para evitar o estresse. Para meus compromissos sozinha, costumo fazer tudo em cima da hora, mas quando ela está envolvida, evito ao máximo. Se levamos 15 minutos para chegar ao evento da escola, saio 30 minutos antes, e aí dá tempo de ela ir imitando sapo no caminho, girar antes de entrar no carro etc. Por que faço isso?
Porque, como eu disse, me corta o coração ver adulto gritando com criança.
Me corta o coração o adulto se esquecer completamente de que, quando era criança, ele via o tempo de maneira diferente, e muitas vezes era difícil tentar se ajustar à quantidade de demandas dos pais, dos professores, do mundo. As crianças fazem as coisas com um ritmo todo próprio, brincando, fantasiando. Elas experimentam, testam, provocam, fazem de outro jeito para ver como é. Em vez de forçá-las a enxergar o mundo com as nossas lentes, é bonito tomar as lentes delas emprestadas. Entender o mundinho delas. E ser mais amoroso e respeitoso com o idioma local.
Acho que perder a paciência é um hábito visto com muita naturalidade, quando deveríamos nos esforçar ao máximo para não tirar os olhos dela. Percamos as chaves, as horas, os compromissos, mas não percamos tão facilmente a nossa paciência, como se ela não fosse algo extremamente precioso, como se pudesse ser perdida a qualquer momento sem maiores consequências.
Corrigir, ser firme, dizer “não” são posturas necessárias. Às vezes, fico brava com a minha Valentina: não sou uma monja. Mas são momentos raros e pontuais, e faço questão de não elevar a minha voz neles, apesar do tom de bronca. Acho que é perfeitamente possível educar sem ser grosseira ou se descontrolar.
Já escrevi aqui como acho bonito quando conseguimos tratar bem não apenas o vizinho ou o colega da pós, mas as pessoas que convivem conosco sob o mesmo teto. Quando a pessoa é criança, então, acho que toda a boa vontade vale a pena. Não se trata de respirar fundo para não berrar com filho quando ele tira o tênis que você acabou de calçar nele.Trata-se, isso sim, de dar o melhor de si para cultivar uma paciência verdadeira, mais perene e profunda, de modo que você simplesmente não sinta vontade de berrar quando ele tira o tênis. Na minha opinião, o que dizem no avião vale dentro de casa: colocar primeiro a máscara de oxigênio na gente, e depois na criança. Não é preciso comprar manuais e manuais de educação: se estamos com a cabeça boa, vamos cumprir bem nosso papel de pais e mães. Se estamos tranquilos, não explodiremos com elas. E, por outro lado, não podemos nos queixar de que as crianças estão nervosas e mal educadas se os descontrolados somos nós, não é mesmo?
Liliane Prata é editora de CLAUDIA e escreve esta coluna toda quarta-feira. para falar com ela, clique aqui!