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Por que a estampa dessa blusa diz muito sobre o racismo no Brasil

A marca carioca 'Maria Filó' reproduziu o trabalho do pintor Debret em uma das peças da coleção - e ela retrata bem o papel objetificado e desumanizado que o negro (e a mulher negra) tem na sociedade brasileira ainda hoje.

Por Stephanie Ribeiro
Atualizado em 15 abr 2024, 08h34 - Publicado em 14 out 2016, 15h10
Reprodução/Facebook/@Tâmara Isaac (/)
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Quando me deparei com a estampa da Maria Filó, pensei: se fossem judeus em uniformes listrados presos em campos de concentração, isso seria uma estampa?

Acredito que, após a Zara ter feito em 2014 pijamas inspirados nesses uniformes, eu não duvido que sim. Porém, no caso do Holocausto, vejo uma noção histórica e um sentimento de vergonha sobre esse fato bem maior do que sobre a escravidão – ainda que ambos os momentos tenham apenas crueldade, dor, sofrimento, mortes e perseguição. Contudo, as narrativas artísticas sobre a Escravidão tendem a ser muito romantizadas. Vejo isso em novelas e me ofendo muito.

A realidade do negro escravizado era cruel: seus corpos vieram amontoados em navios, os mortos e doentes eram jogados ao mar; as famílias eram separadas, os sujeitos negros eram vendidos, espancados, estuprados, agredidos e perseguidos; os objetos de tortura eram tenebrosos – máscaras de ferro, gargalheiras. O nome pelourinho me dá arrepios, assim como o fato do meu avô me mostrar o pedaço de um chicote quando eu era criança e dizer que o pai tinha guardado para que eles não esquecessem.

Eu não consigo esquecer, mas parece que muitas pessoas esquecem de como a Escravidão foi e é uma realidade vergonhosa para o Brasil.

Somos o país que mais importou escravos: cerca do total de 20% de todas as pessoas raptadas da África para serem vendidas, o que resulta em um número estimado de cinco milhões de pessoas. Em 1888, quando a abolição finalmente tornou-se uma realidade, havia mais negros do que brancos no Brasil. E a arte não foi alheia a essa narrativa de um país onde a presença negra se fazia notável, necessária e explorada.

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Em 1639, Frans Post trazia o negro em sua pintura como mero objeto que fazia parte da paisagem e não como sujeito. Na mesma época, Albert Eckhout foi demarcando o lugar da mulher negra como exótica no imaginário, ao pintar Mulher Africana (Negra). Além desse primeiro status social da exótica sensual, a mulher negra sempre foi vista como apta para ocupar apenas mais dois lugares: o segundo é o lugar da mulher negra como provedora, a “ama de leite”, retratada por Lucílio de Albuquerque no tão conhecido Mãe Preta, de 1912. E o terceiro, é o da mulher negra como mão de obra trabalhadora, vista na obra de Armando Vianna, Limpando Metais, de 1923.

A marca carioca Maria Filó diz ter se baseado em Debret, um dos pintores que retratou o nosso país no século XIX. O negro na pintura de Debret faz parte da paisagem e do contexto e não é sujeito ativo e principal dela. Afinal, a sua função era retratar o cotidiano nacional para brancos europeus. Em nenhum momento ele pintou negros como forma de questionar aquele sistema escravagista cruel – muito pelo contrário, sempre naturalizando toda essa realidade e o espaço que negros ocupavam, as funções que lhes eram designadas e, principalmente, seu lugar como objeto de estudos e de trabalho.

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Por isso, é vergonhoso dizer que se quer homenagear negros, evidenciando a arte que nos coloca como objeto e naturaliza um período histórico de extrema violência. O local simbólico social definido para nós, negros, foi desenhado, literalmente, por pessoas brancas para que não houvesse nenhum tipo de ascensão ou questionamento por parte delas.

Foi o olhar do outro, que se colocava como sujeito, que definiu o que não é digno de ser sujeito. E que atribuiu o negro a esse lugar do exótico, animalesco, selvagem e explorado.

Quando pensamos na mulher negra, não podemos esquecer que, além de negra, ela é mulher – e que, além de mulher, é negra. Nesse duplo estigma se fortalece o retrato de um corpo marginalizado e ao mesmo tempo sexualizado. Nossas funções foram e são ainda tratadas como naquela época.

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O desenho e a curiosidade só não são maior do que a repulsa que todo corpo negro causa na sociedade racista. Portanto, antes de tudo, são corpos indesejados. O corpo negro não só não pertence ao sujeito negro, como é visto como feio, seu cabelo é ruim e suas sanidades mentais são sempre colocadas em cheque. Todo o imaginário que retira a subjetividade dos nossos corpos, em especial da mulher negra, se mantém ainda presente em pleno século XXI.

Logo, aquela “blusinha” demarca, além de tudo, que nós não somos vistos como criadores – já que tantos artistas e designers negros criaram estampas para grandes marcas? E também não somos vistas nem como consumidoras a serem agradadas, tendo em vista que nossas bisavós, tataravós estão ali marcadas como meras servas de um sistema racista, com puro ódio, genocídio, trabalho escravo e maus tratos que marcou nossas famílias, nosso passado e ainda marca nosso dia a dia.

Precisamos de empatia e conhecimento histórico para enfrentar o racismo, urgentemente. Seja na arte, na moda ou na vida. E nossas vidas importam.

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