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O que o Afeganistão do passado pode ensinar ao Brasil de hoje

Os homens e, principalmente, as mulheres que viveram no Afeganistão nos anos 1960 jamais poderiam supor o que ele se tornaria hoje. Que nos sirva de exemplo!

Por Ludmila Vilar (colunista)
Atualizado em 21 jan 2020, 20h38 - Publicado em 10 jul 2015, 11h03
William Podlich (/)
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O jornalismo me levou a vários países, nunca ao Afeganistão. O Afeganistão, de certa maneira, me levou ao jornalismo. Naquela época da faculdade eu havia entrado em outro curso, mas decidi ao fim do primeiro ano que queria a comunicação.

Uma das questões dissertativas da prova para ingressar no jornalismo era essa: “Cite e comente um evento que na sua opinião tenha sido mal coberto pela imprensa”. Bingo.

Fazia poucos dias, aquela ‘tripa’ (no jargão jornalístico usamos essa palavra para nos referir a uma coluna da página) não saia da minha cabeça. E foi sobre ela que eu falei no teste – e muito provavelmente graças a ela fui aprovada.

Numa das maiores revistas do país, o espaço dedicado à ascensão do Talibã no Afeganistão foi uma tripa. Uma tripinha de nada. Naquela época, as informações circulavam entre jornais, revistas e a TV e meio que se esvaiam no dia seguinte. Viu, viu, não viu, não viu. E parecia que ninguém tinha visto o tamanho da barbaridade.

Um bando de homens armados, radicais religiosos, impondo costumes medievais num país de posição estratégica: o meio do mundo (também conhecido como Oriente Médio).

As maiores vítimas eram, claro, mulheres e crianças. Entre outras coisas, elas foram proibidas de estudar e trabalhar, ouvir música e até rir alto. Nem precisa ir longe para entender o efeito disso sobre a sociedade afegã: pobreza extrema, violência desenfreada, analfabetismo quase generalizado.

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Quem viveu sabe no que deu à ascensão ao poder do Talibã. Berço da Al-Qaeda, a rede terrorista por trás do atentado às Torres Gêmeas, em 2003 o país foi invadido pelas forças ocidentais, principalmente americanas.

Até aquela tripa, eu basicamente não sabia nada sobre o Afeganistão. A partir dela, eu passei a assistir todos os filmes que podia sobre o país ou com atores de lá – o mais recente foi Pedra da Paciência, de Atiq Rahimi, que concorreu ao Oscar em 2013 como melhor filme estrangeiro.

Li livros cujos enredos se passavam sociedade afegã. Atualmente ando pra cima e pra baixo com Uma Pequena Casa de Chá em Cabul (Leya Editora), de Deborah Rodriguez.

Autora também do best seller O Salão de Beleza de Cabul: o Mundo Secreto das Mulheres Afegãs (o próximo da minha lista), Deborah chegou ao país em maio de 2002 e ajudou a fundar a Escola de Beleza de Cabul. Lá ensinava às afegãs ofícios ligados à vaidade feminina, mesmo estando num lugar devastado.

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Acho que essa minha pequena obsessão por saber mais sobre o Afeganistão vem sobretudo da curiosidade que move qualquer jornalista. Mas também é uma tentativa de humanizar um mundo que é tão, mas tão diferente, que parece outro planeta. Uma tentativa de achar o que temos em comum com as mulheres que estão por baixo das burcas. Quem são elas?

Dia desses uma grande amiga compartilhou em seu perfil no Facebook fotos que mostravam o país nas décadas de 1960 e 1970. Elas foram tiradas por um professor americano e estão divulgadas na internet há algum tempo. São chocantes.

William Podlich
William Podlich ()

Naquela época viam-se moças de saia e blusa sem mangas andando por Cabul. Os jovens se reuniam para beber chá e cantar no meio da rua. As vias eram limpas, embora já se veja alguma pobreza. Olhando as imagens, simplesmente ninguém jamais poderia supor o que seria o Afeganistão do século 21.

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Essas fotos são a prova de que todo retrocesso é possível. Penso nisso quando ouço ou vejo alguns disparates que acontecem em nosso país atualmente. Parece que o Brasil onde nasci foi tomado por um ódio que se explicita sem pudor, como se tivesse direito de agredir quem e o quê quer que seja.

William Podlich
William Podlich ()

Na verdade parece que o Brasil de hoje já não é o país onde cresci, por mais que eu já tenha crescido nele cheio de problemas – sim, eles sempre estiveram aqui, não foram revelados apenas depois da invenção da internet. Ainda assim, tem algo estranho, algo pior quando se trata de moral. E não estou falando de políticos, estou falando da gente. Nós, as pessoas comuns.

Quem são esses cidadãos que se dão ao direito de expressar seu racismo humilhando duas mulheres negras nas redes (me refiro ao caso de Cristiane Damasceno, ocorrido em maio, e o de Maria Julia Coutinho, da Rede Globo, recentemente)? Quem são os cidadãos que apedrejam quem eles acham que não merece viver (caso do menino Rafael Damasceno, de 14 anos)?

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Quem são esses cidadãos que se dão ao direito de amarrar um homem no poste e linchá-lo até a morte, como aconteceu no Maranhão? O que acontecerá se mais e mais pessoas decidirem fazer justiça com as próprias mãos, como nesse caso? Quem as protegerá quando outro justiceiro decidir que é a vez delas?

Mais do que tudo, as fotografias da sociedade afegã nos dão um claro recado: a liberdade é um valor conquistado, que deve ser zelado dia-a-dia, e a bárbarie é uma ameaça que está sempre à espreita. Nunca estamos seguros o suficiente a ponto de ser impossível perder uma e mergulhar de cabeça na outra.

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