Mulher negra com cabelo pintado de loiro é apropriação cultural?
Para entender a apropriação cultural é preciso entender a violência sofrida por não-brancos ao longo da história
Recentemente escrevi, aqui no MdeMulher, um artigo falando sobre o blackface praticado por Daniela Mercury e Anitta durante o Carnaval. Falei sobre branquitude, mestiçagem, e recebi muitos comentários a respeito do texto. Muita gente entendeu que o uso de peruca crespa em fantasias de carnaval por pessoas não-negras, que tentam se passar por negras usando blackface não seria um problema, já que mulheres negras como Rihanna e Beyoncé usam cabelos lisos e loiros.
Essa afirmação é uma falsa simetria – que muitas vezes pode ser uma forma de racismo inconsciente. Quando entendemos o blackface como apenas o ato de pintar o rosto/corpo de preto para representar alguém negro, estamos errados. A prática é isso e mais do que isso. No século 19, nos EUA, atores brancos não apenas pintavam o rosto, mas também redesenhavam os lábios para reafirmar a ideia de que “negros são beiçudos”. Os papeis eram cômicos e beirando o ridículo, sempre com uma visão racista sobre os traços estéticos de alguns sujeitos negros.
Não só essas figuras ocupavam os palcos, como impediam que pessoas negras de fato pudessem ter esse espaço. Tratava-se de uma prática tão comum, que tornou-se um gênero do teatro norte-americano na época. Blackface é ridicularização e exclusão de negros – não existe outro significado para essa prática.
Até hoje, infelizmente, o blackface é usado como alternativa para interpretar uma pessoa negra sem precisar dar visibilidade para alguém realmente negro. Ou é usado em festas como uma “fantasia engraçada”. No Brasil, uma das personagens mais simbólicas desse tipo de racismo é a chamada “Nega Maluca”.
Na TV, é comum o uso e naturalização dessa manifestação racista. Marco Nanini usou blackface na novela “Eta Mundo Bom”, em 2016. O autor Walcyr Carrasco disse que esse seria mais um dos disfarces usados pelo personagem Pancrácio. Mas ninguém “se disfarça” de branco. O branco é a norma, o correto. O negro é o exótico, diferente, fora do comum.
Na Europa do século 19, pessoas negras eram exibidas em espetáculos. Ficou famoso o caso da “Vênus de Hotentote” Saartjie Baartman, do povo khoisan, mais antiga etnia humana, estabelecida na parte meridional da África. Ela foi escravizada e exposta, primeiro em Londres, depois em Paris. Presa a uma corrente, ela caminhava de quatro durante os espetáculos.
Depois de morta, Saartijie foi dissecada, e tanto o esqueleto quanto o molde do corpo dela foram expostos publicamente no Museu do Homem de Paris até 1985. A ciência a usava como exemplo para mostrar o quanto o corpo da mulher negra era anormal, usando como modelo de normalidade o corpo masculino europeu.
Até a década de 1930, na Alemanha, homens e mulheres negros ainda eram expostos em zoológicos humanos. Algumas das pessoas expostas ainda estão vivas e podem contar em primeira pessoa o que viveram. Theodor Wonja escreveu sobre isso no livro “Ser alemão e negro”:
“Eles tentavam me cheirar para verificar se eu era real e falavam comigo em um alemão básico ou se comunicavam por meio de sinais”.
Partimos de uma premissa desumanizadora em relação aos corpos e sujeitos. Blackface nunca pode ser visto como homenagem. E há, sim, equivalentes ao blackface em outros grupos. Se fala de “redface” quando se trata de povos originários (indígenas), de “yellowface” para interpretações racistas e apagamento de asiáticos, “brownface” quando o racismo na representação se refere a estereótipos de latinos, sul asiáticos e povos do Oriente Médio.
Existe uma gama de exemplos dessas representações racistas conhecidos: No Brasil, o redface foi feito por Cláudio Heinrich em “Uga Uga”, ao interpretar o índio Tatuapu, e pela atriz Deborah Secco na minissérie “Caramuru”, ambas produções da Rede Globo.
No que diz respeito a yellowface, o uso de técnicas para puxar os olhos de um um ator ocidental e o reforço do comportamento do que seria de um asiático foram as premissas que deram vida ao Mr Yunioshi, feito por Mickey Rooney em “Bonequinha de Luxo”.
Para finalizar os exemplos, quando falamos de brownface devemos lembrar da novela “Caminho das Índias”, que romantizou a realidade e fez o brasileiro acreditar no indiano que tem o rosto do ator Caio Blat. Na realidade, a Índia é um dos países que está lutando contra uma onda de embranquecimento de parte da população por meio de cremes e outras técnicas estéticas.
A novela “Caminho das Índias” e também “Sol Nascente” e principalmente minisséries como José do Egito usam e abusam do que conhecemos como “whitewashing” quando a narrativa e personagens não brancos se tornam brancos nas representações: Gandhi vira branco, os Egípcios se tornam brancos, Jesus é representado como branco de olhos azuis e Tom Cruise pode interpretar um samurai.
O resultado disso? Apagamento histórico e racismo. Não é só uma representação. O significado para cada blackface, yellowface ou whitewashing é o da manutenção da opressão e invisibilização desses povos sendo mantida.
Depois da colonização e do fetiche com olhar exótico, vem a negação, o entendimento de que tudo que pertence aos não-brancos é inferior e feio. É nesse processo que nossa estética e das outras identidades étnicas aqui citadas vão sendo colocada como fora da curva.
É por isso que alguns asiáticos tentam clarear a pele ou fazem cirurgias nos olhos. Assim como alguns negros entendem o alisamento de cabelos não como uma escolha, mas como uma necessidade de se encaixar na estética tida como branca. No fundo, as pessoas que não são brancas sofrem imposições – e isso é muito diferente da apropriação cultural.
Apropriação cultural é um fenômeno estrutural e sistêmico. Não pode ser entendido ou problematizado sob um ponto de vista particular, individual. No entanto, as consequências desse processo são sempre em nível coletivo, na estrutura: favorecimento do processo de marginalização desses grupos ou povos socialmente invisibilizados e oprimidos inconscientemente.
Em alguns casos, a apropriação cultural vai além do desrespeito às culturas alheias, invisibilizadas diante da imposição da cultura europeia e norte-americana, e se torna lucrativa. Isabel Marant, uma estilista francesa, usou na coleção verão 2015 um bordado feito pela comunidade mexicana Sant-Maria Tlahuitoltepec, da província de Oaxaca. Esse bordado é feito há 600 anos, e é um símbolo da identidade dessa comunidade.
A marca de Isabel Marant se apropriou do bordado, produzindo-o em larga escala, e passou a vender a peça que identificava como “tribal” pelo equivalente a R$ 1 mil. A peça original, feita pelas mulheres da comunidade, custava aproximadamente R$ 65. Os lucros adquiridos pela estilista e sua marca nem chegaram perto da comunidade.
É evidente que nem todas pessoas que compraram tais peças sabiam disso. Porém, indiretamente, favoreceram a negligência e roubo da cultura de um povo já invisibilizado, vítima de um processo terrível de colonização. Para esse povo, assim como em todas as comunidades originárias latino-americanas, a manutenção da sua identidade é mais do que estética: é uma forma de resistência.
Ao falar de apropriação cultural, estamos questionando um ramo da “árvore do racismo estrutural”, que atinge diversos povos criticados, perseguidos e massacrados por sua identidade não branca. Por trás de muitas culturas que foram sendo apropriadas ao longo dos séculos, existe uma história de imperialismo, colonialismo e genocídios.
Muita gente que desconhece todos esses fatos acredita que as reações dos grupos não brancos é radical e agressiva. Mas comparadas à violência estrutural enfrentada há séculos, quão radicais e agressivas são essas respostas?
Quando criticamos os estereótipos na representação dos negros e a apropriação cultural, estamos falando de racismo. De braços dessa estrutura que podem não matar – como mataram o imperialismo, guerras civis e genocídio. Mas que fortalecem a subordinação desses indivíduos que são sempre o outro, o erro, a não norma.
Pintar o cabelo crespo de loiro ou alisar não é apropriação cultural: é, na maioria das vezes, a tentativa de se encaixar na norma de una estética que é imposta para todas, porém só se baseia num pequeno e seleto grupo. Loiros naturais são uma pequeníssima parte da população adulta brasileira. E ser loiro – ao contrário de ser negro – não é uma identidade étnica: é apenas uma característica física.