Infâncias registradas
Na apresentação de escola da filha, nossa editora e colunista Liliane Prata se perguntou se deveria registrar o momento ou não
Apresentação de fim de ano da minha filha. Eu e meu marido nos acomodamos nas cadeiras do auditório da escola para ver a dança da nossa pequena, que está com quatro anos e meio. Enquanto não começa, ele fica mexendo no celular e eu cochilo com a cabeça no seu ombro. De repente, alguém me cutuca e me entrega um papelzinho.
– A gente quer a filmagem em DVD ou blu-ray? – pergunto para ele, despertando e lendo o papel.
– Hum?
– Vão filmar a apresentação – digo, me levantando. – Tô indo lá pagar, tá? Mas em DVD ou blu-ray?
– A gente filma no celular, Lili.
– Mas a gente está sentado aqui atrás… E se eles vão filmar…
– Mas a gente quer essa filmagem?
A pergunta me soa estranha. Minha filha está prestes a subir no palco, de vestido de bolinhas e laço na cabeça, e certamente vai fazer uma coreografia cheia de rodopios e sorrisos – é claro que a gente quer essa filmagem.
Alguém avisa no microfone que a apresentação vai começar em cinco minutos.
– Bom, vou comprar em DVD – digo, saindo.
Em frente ao guichê da empresa contratada para a filmagem, dois pais preenchem a fichinha. Enquanto aguardo a minha vez, me pego pensando: a gente quer essa filmagem?
Desde que nasceu, minha filha, assim como os primos, vizinhos e coleguinhas dela, já foi filmada centenas de vezes. Tenho vídeo dela cantando no café da manhã, nadando na piscina, dando “tchau” para o mar logo que aprendeu falar, batendo palminhas quando foi à praia pela primeira vez. Tenho vídeos dela trocando presentes no amigo secreto da antiga escola, soprando velinhas com os colegas, cantando Nirvana no carro, correndo pela garagem do prédio, brincando com os cachorros da minha cunhada. A infância hoje é assim, não é mesmo? Pelo menos, a infância de quem tem um smartphone – eu, você e todos os nossos conhecidos, certo? Uma infância devidamente registrada, da mesma forma que nossas visitas a museus e nossas viagens, (mais ou menos) como fazíamos antigamente, mas também como nossos sorvetes coloridos, os livros que estamos lendo e nossos pés na grama – afinal, tudo isso fica ótimo no Facebook e no Instagram.
Lembro de uma apresentação que fiz na escola, quando tinha seis anos. Vestida de She-Ra, corri pelo pátio inteiro antes de entrar no auditório. Minha avó e meus primos tinham ido me assistir, além dos meus pais e do meu irmão. Minha mãe tirou duas fotos naquele dia: uma com toda a minha família e uma só minha. Nessa última, posei sorrindo de orelha a orelha, orgulhosa do meu cinto e meus braceletes amarelos e da minha capa vermelha. Minha meia-calça branca estava imunda nos joelhos – o detalhe que mais gosto naquela fotografia. Minha apresentação não foi filmada nem pelos meus pais nem por uma empresa terceirizada, e eu acho que gostaria muito de poder revê-la agora, adulta – sou do tipo que lê os diários antigos e vê álbuns velhos com frequência.
Mas o que eu faria hoje com centenas de vídeos antigos meus?
E o que minha mãe teria feito com eles? Durante o registro deles, o que ela fazia – ou deixava de fazer? E, se soubesse que aquele evento seria filmado por alguém… De que maneira isso a impactaria?
Um pouco hesitante, desisto da fila e faço o caminho de volta pensando no porquê daquela filmagem específica. Adoro ver os vídeos da minha filha e espero que ela goste, quando for maior – ela já gosta de ver seus vídeos de quando era menor. Mas não preciso filmar todas as apresentações da escola, preciso? Mais: sou capaz de ver uma apresentação da escola, experenciar aquilo, consciente de que, assim como os quatro anos e meio da minha filha, aquele momento vai acabar ali, precisamente ali, independentemente de ter sido registrado por mim, por outra pessoa ou por ninguém?
Sento ao lado do meu marido.
– Desisti – eu digo.
– Mas vai filmar com o seu celular, né? – ele pergunta. À nossa frente, dezenas de pais já estão com seus aparelhos posicionados.
– Dessa vez não. Acho que hoje vou tirar uma folga da câmera.
Deito a cabeça no ombro dele e minha filha entra no palco. E, diferentemente da última vez, em que eu estava preocupada com minha bateria, vou às lágrimas assim que ela bota a mãozinha na cintura, procura por nós dois na plateia e abre o maior sorriso do mundo quando nossos olhos se encontram.
Liliane Prata é editora de CLAUDIA e escreve esta coluna aqqui no site toda quarta-feira. Para falar com ela, clique aqui.