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Nem todo mundo é negro no Brasil – e não há problema nisso

O que Daniela Mercury diz sobre "ser negra de pele branca" não é sobre apropriação cultural - é sobre racismo. Não é empático se dizer negro quando convém.

Por Stephanie Ribeiro
Atualizado em 20 jan 2020, 19h10 - Publicado em 3 mar 2017, 19h01
As cantoras Daniela Mercury e Anitta no Carnaval 2017 (Reprodução/Instagram)
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É fato que esse começo de ano foi marcado por discussões raciais sobre o tema de Apropriação Cultural. Infelizmente, muitas pessoas estão agindo sem conhecimento e entendendo a apropriação cultural num viés muito deturpado e empobrecido – ou seja, menos como uma crítica estrutural e muito (ou tão somente) como uma crítica pessoal.

É por essa personificação que muitos respondem de forma agressiva ao fato, ou entendem que qualquer crítica feita por negros ativistas é “apropriação”. Quando as notícias sobre Daniela Mercury e sua fantasia no carnaval – e a estética adotada pela também cantora Anitta durante a festa – vieram à tona, o que lemos na mídia foi que se tratava de apropriação cultural.

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Dia do empoderamento negro! Minha homenagem também a Elza Soares!!! Desfile lindo!!! Amanhã tô no Campo Grande, às 13h30! #carnavaldesalvador #empoderada #rainhadocarnaval #rainhadoaxe #empoderamentonegro

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Porém, não estamos discutindo apropriação: afinal, o problema não é Daniela Mercury (e tantas outras) serem cantoras de axé. Estamos debatendo o chamado “blackface” (em tradução livre, “cara negra”) e como as pessoas não necessariamente precisam “se vestir” de “negro” para homenagear uma pessoa negra. Daniela, ao usar maquiagem de tom mais escuro e peruca que remetia a cabelos crespos, se fantasiou de mulher negra para homenagear Elza Soares.

Podemos homenagear cantoras negras e outros negros cantando suas músicas ou até usando um figurino que a pessoa já usou. Porém, cabelos crespos e pele escura não são parte do nosso figurino – somos nós. Nossa estética. Nossa beleza. A questão do Carnaval é exatamente essa: as pessoas usam perucas e pinturas que remetem aos negros, como se ser negro fosse um objeto/fantasia.

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É hojeeeee… e eu mal consegui dormir de ansiedade…. já garanti essa foto antes de comer o mundo de tanto nervoso com esse trio que vai lacrar hoje 21:30h no Barra – Ondina

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A questão que une Daniela e sua fantasia e Anitta e sua nova estética é que ambas, quando questionadas sobre “Apropriação Cultural”, responderam usando a mestiçagem como desculpa. Anitta disse que no Brasil ninguém é branco, já Daniela disse:

Eu sou preta de pele branca, porque a cultura da minha cidade é afro-brasileira e é isso que eu amo. Eu sou Michael Jackson ao contrário, adoro ser negra, minha música é negra, meu empoderamento é negro.

Daniela Mercury

Só que isso não é verdade. Ser negro não é um sentimento, muito menos uma vontade. Ninguém acorda querendo e se sentindo negro e passa a ser. Precisamos hoje entender que raça, não no quesito biológico, mas no quesito social, ainda impacta indivíduos negros.

Então é possível homenagear, gostar e conviver com pessoas negras sem querer ou achar que isso te faz negro. Já que a identidade racial tem uma materialidade absurda, que determina locais sociais, possibilidades, rendas, territórios e etc, não é empático se dizer negro quando vos convêm – ainda mais depois de saber que negros ganham até 80% menos que brancos com a mesma qualificação.

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É fato que toda a política de mestiçagem pensada para embranquecer a população brasileira criou uma confusão racial gigante. Muita gente não age de má-fé ao acreditar realmente que o “somos todos mestiços” é a melhor resposta ao questionarmos racismo. De fato somos mestiços – frutos de uma interação racial ora genuína, ora forçada. No entanto, a mestiçagem não acabou com a população negra como era seu objetivo e muito menos os que ainda carregam a tonalidade e traços entendidos como de negros deixaram de sofrer racismo e serem colocados em um lugar de subalternidade.

E, aliás, tendo dificuldades reais de mobilidade social por conta disso, inclusive quanto mais escura for sua pele. É isso que entendemos como colorismo, quando a pigmentação da cor quanto mais escura determina menores possibilidades de inclusão e acesso para um indivíduo. Oracy Nogueira em seu livro “Preconceito de Marca” conclui que sujeitos negros que possuem relações familiares com brancos (ou seja, de pele mais clara) têm uma possibilidade de mobilidade maior do que sujeitos negros de pele escura:

Verifica-se que o contingente de pardos se torna cada vez mais rarefeito, a medida que se vai da classe menos favorecida para a média e a alta, enquanto os pretos se concentram quase exclusivamente na primeira das classes mencionadas (classes baixas), com uma tênue representação na camada média.

Oracy Nogueira

Sendo assim, é fato que até entre negros existe uma disparidade nos lugares que ocupamos. E isso é medido não conforme mais próximos estamos de negros e, sim, quanto mais os brancos nos percebem próximos a eles visualmente. Oracy também escreveu sobre isso, já na década de 50:

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Na vida social, os caracteres negróides, em geral, implicam preterição de seu portador, quando em competição em igualdade de outras condições com indivíduos brancos ou de aparência menos negróide.

Oracy Nogueira

E por que eu estou falando isso?

Porque com brancos não é diferente. Esses traços da mestiçagem, que determina locais distintos para negros, também influencia na leitura feita em relação a sujeitos brancos. Muitas pessoas não entendem que branco também é uma definição e, mesmo que lidas como brancas pela sociedade toda, buscam nos traços mestiços a tentativa de se colocar como negro.

E a dificuldade de muitos é entender que a própria branquitude não é homogênea – e mesmo os que são tidos como brancos mestiços continuam sendo lidos como brancos. A pesquisadora e doutora Lia Schucman em sua tese de doutorado Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana coletou em uma das suas entrevistas o seguinte depoimento ao perguntar se existe e era possível determinar uma escala de brancos:

“Consigo. Tem branco que a pele é branca, o cabelo é escuro e crespo. Tem o branco que tem o cabelo escuro, mas liso, olho claro. Tem um branco que tem cabelo castanho claro, mas crespo. Acho que o cabelo crespo tá sempre pior, o cabelo liso é o sonho de consumo.”

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É fato que muitas pessoas erram inclusive na definição do que é cabelo crespo – e sempre que um cabelo não é liso, já entendem ele como crespo. Não conseguindo falar de ondulados, cacheados e entender que brancos, mesmo os que não passaram por miscigenação, tem esse tipo de estética.

O que acontece é que o branco brasileiro categoriza a si mesmo no seguinte padrão: quanto mais longe está do que considera negro, mais branco se considera. A questão é que NÃO necessariamente essas pessoas são negras. Primeiro, não existe só branco ou negro; segundo, ter traços mestiços sendo negro ou branco, não te transforma diretamente no outro grupo étnico. Voltando para os depoimentos que Schucman reconheceu, temos:

“(…) tem aquele branco meio sujinho né? Um branco brasileiro que, às vezes, até tem olho mais claro, mas é meio encardido. Uma cor meio suja, diferente do branco de verdade… O branco ralé é o mestiço, é o sarará, é aquele que tem a pele branca e o cabelo bem pixaim.”

O que entendemos é que os brancos pautam um padrão europeu como cerne do que é ser “branco puro” e todo branco que carrega um ou mais traços da mestiçagem se entende como branco não puro, encardido e até sarará. A mestiçagem, portanto, é mais complexa do que imaginamos. Então eu realmente imagino que Anitta e Mercury podem ser mestiças, assim como muitos são no Brasil. Porém, antes de dizer que não existem “brancos” ou que é “negra de pele branca”, devemos nos aprofundar pelas tantas pesquisas que tratam de mestiçagem, branquitude, negritude e racismo.

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Alguns negros não podem, de certa forma, “flertar” com a branquitude. E negros diferentes de alguns mestiços lidos como brancos não podem usar todos os privilégios que ser identificado como branco traz no Brasil. Estamos falando de ganhos financeiros, como a pesquisa que citei no começo aponta. Ganhos que, no que diz respeito a Daniela Mercury e Anitta, são o da visibilidade e de se tornar a referência tanto no axé quanto no funk, que são ritmos que nascem em espaços negros.

Eu, mesmo não sendo uma negra de pele escura, tenho uma tonalidade de pele somada a traços que não fazem as pessoas me lerem de uma forma diferente do que sou: negra. E por mais que me chamem de morena e mulata, esses adjetivos, em especial o segundo, só comprovam que sou e sempre fui lida como negra, por mais terríveis que esses termos sejam.

Realmente falta muita empatia, além de conhecimento, das pessoas que usam a desculpa da mestiçagem, mesmo sendo lidas como brancas, como blindagem para o próprio racismo e desconhecimento para a questão racial.

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