Crianças que querem ser adultas
Sua filha é muito vaidosa? Saiba que excesso de cuidado com a aparência pode impedir a criança de ter uma infância saudável
O excesso de cuidado com a aparência impede a maneira mais natural de aprender: brincar
Foto: Dreamstime
Sua filha vai à escola maquiada? Ela quer comemorar o próximo aniversário num salão de beleza? Posa na frente do espelho ensaiando para se tornar modelo? Você não está sozinha. Mas, quanto mais essa “mulherzinha” – que não passa de uma criança – ganha espaço, mais a infância parece ameaçada.
É só dar uma olhada nos shoppings para encontrar mães acompanhadas das filhas pequenas, vestidas e arrumadas seguindo o mesmo padrão de beleza: rostos maquiados, saias justas sobre leggings evidenciando o corpo, cabelos com chapinha, sandálias de saltinho. Em pleno século 21, já não há um abismo na questão do gosto e da moda entre as gerações como havia no passado. Entretanto, essa aproximação do mundo adulto e do infantil a que estamos assistindo não é novidade. Até o século 19, as crianças se vestiam como miniadultos. “A diferença é que isso implicava uma infância sem voz, sem lugar social e sem direitos como os que, aos poucos, vêm sendo conquistados”, explica Laís Fontenelle, psicóloga, de São Paulo. Uma coisa é a adesão indiscriminada aos padrões estéticos adultos; outra é o faz de conta do desejo natural de crescer e ser bonita. “É normal fingir ser a mãe, brincar de escritório, passar batom e subir em sapatos de salto”. O que não pode é querer ir para o colégio sempre maquiada, não entrar na turma porque não fez chapinha e usar tamancos em vez de correr e pular. O excesso de cuidado com a aparência impede a maneira mais natural de aprender: brincar. “Sujar as unhas de terra, correr e suar e entregar-se aos folguedos são atividades mais valiosas para o futuro da criança do que os inúmeros cursos de línguas ou outras especialidades que hoje lotam as agendas infantis”, afirma Laís.
Relações vulneráveis
Em um passado recente, a criança ainda não alfabetizada era mais protegida das informações do mundo adulto. “Hoje, já nasce inserida na cultura”, diz a psicóloga. De fato, basta ligar a televisão ou o computador para acessar esses conteúdos. Os pequenos brasileiros, por exemplo, passam em média 35 horas por semana assistindo tevê, de acordo com o Ibope. Bastam 30 segundos para que sofram a influência de uma marca. Apesar das mudanças culturais, eles continuam o mesmo ser em formação, vulnerável e sem autonomia para lidar com a sociedade de consumo. Em geral, amolam os adultos para que atendam aos seus desejos.
Erotização precoce
Qual a conotação do shortinho de lurex e da barriga de fora para uma garota de 5 anos? O que pode haver de mau em imitar os trejeitos da cantora pop e as poses das modelos? São questões inevitáveis quando se sabe que os estereótipos da sedução feminina aprendidos na infância influenciarão a sexualidade da mulher. Mas vamos pegar leve. É fácil cair no conservadorismo do passado, em que a repressão ao corpo era tremenda e o sexo assunto tabu. Para a criança, short agarrado não é igual a sedução. Mas será que ela dá conta de enfrentar uma sociedade que repete os estigmas? “A menina vive a dualidade: é ‘mulherzinha’, mas, biologicamente, emocionalmente e no campo das relações, ainda não tem competências para viver esse papel – não passa de uma criança”, lembra Maria Amália Forte Banzato, educadora e psicóloga social, de São Paulo.
Paquitas e modelos
Cada época produz um desejo de futuro para as meninas apoiado na beleza e na sensualidade. Nos anos 1960, aeromoças altas e elegantes (não podiam se casar nem ter filhos); nos anos 1980, foi a vez das paquitas, as assistentes de palco do programa de tevê infantil comandado pela apresentadora Xuxa Meneghel; e, desde os anos 1990, as modelos de passarela chegaram ao topo da equação: beleza, glamour e dinheiro. A partir de então, ser top mirim tornou-se atividade cada vez mais valorizada e incentivada por pais e familiares, apoiada na certeza de que “a criança faz o que gosta”. “Os pais podem causar danos ao filho ao tentar estimulá-lo a repetir exatamente o que eles são ou desejavam ser – sem dar espaço para a expressão autêntica do pequeno”, comenta Luiz Algarra, educador informal voltado para a aprendizagem em redes sociais. Crianças costumam mudar de ideia. “E sofrem se cobradas, mais tarde, pelo investimento afetivo e financeiro feito pelos pais – às vezes movido pelo desejo de preencher os próprios buracos afetivos”, diz. Nenhuma menina vai sentir necessidade de incorporar modelos prontos – sejam eles de princesa ou top model – se dentro do núcleo familiar o seu modo de ser for legítimo, valorizado. Isso significa que ela precisa ter a seguinte certeza: “Quem cuida de mim me vê e gosta do jeito que sou”.
A maquiagem pode entrar como parte da brincadeira entre as meninas, mas não deve ser levada a sério
Foto: Dreamstime
Que tipo de mãe você é?
Indulgente: “Minha filha é consumista e vaidosa. Acabo fazendo as vontades dela.” Reflita se seus valores não estão calcaçados mais no “ter” do que no “ser”.
Companheira: “Sempre vamos ao salão de beleza juntas e adoramos cuidar da aparência.” Se você estiver aprisionada aos padrões estéticos, essa dificuldade será projetada na sua filha.
Rendida: “Acabo me endividando para dar a ela o que as amigas têm…” Você precisa tanto ser valorizada por essa filha que se rende aos desejos dela. Atitude insustentável no futuro. O dinheiro não compra a vaga na empresa, o amor do namorado etc.
Resistente: “Não permito que vá a shoppings nem a festinhas em salão de cabeleireiro.” Tirar sua menina do contexto pode resultar em dificuldades de integração social. Procure brechas que não agridam seus princípios: ela pode ir à festa no salão, mas sabendo que não terá uma igual.
Habilidosa: “Minha menina gosta das mesmas coisas que as amigas, mas aprendeu que em casa é diferente! A maquiagem entra como parte da brincadeira entre elas. Não deve ser levada a sério.” Continue a demarcar fronteiras entre os seus valores familiares e os das amigas.