Como os filhos de Claudia Silva Ferreira celebram o dia das mães sem ela
O marido e os oito filhos da mulher arrastada pela polícia até a morte em um subúrbio do Rio de Janeiro tentam reaprender a viver sem ela e não desistem de celebrar a data.
Na falta de Claudia, seu marido e os oitos filhos seguem unidos
Foto: Reprodução/Ana Rovati
“Eu não sinto revolta. Tenho seis filhos homens e duas meninas: se ficar revoltado, vou dar a eles o direito de ficar também e de querer vingança. E, aí, ninguém sabe onde é que isso pode dar, né?”, diz Alexandre Lima, exatos 30 dias após o enterro de sua mulher, Claudia Silva Ferreira, assassinada aos 38 anos quando se dirigia à vendinha, na favela da Congonha, subúrbio do Rio de Janeiro, para comprar pão para as crianças.
Em uma troca de tiros entre policiais e bandidos, uma bala atingiu outro alvo, o tórax dessa carioca que, logo depois, foi jogada no porta-malas da viatura e acabou arrastada por 350 metros. “O que sinto é apenas uma saudade eterna. Era ela quem comandava a casa e a nossa vida, decidia tudo”, conta o marido. “Mas tenho as crianças para criar, vou em frente. Cacau era a pessoa mais otimista e alegre que eu já conheci. Nós vamos continuar sendo como ela.”
A visita da reportagem à família coincidiu também com o aniversário de 42 anos de Alexandre. Se Claudia estivesse viva, ele não passaria a data assim, com duas garrafas de cerveja na geladeira e um bolo de padaria sobre a mesa improvisada, em plena terça-feira. “A festa seria no sábado. Minha mulher faria uma feijoada maravilhosa, como só ela sabia fazer, e chamaria os amigos, os parentes”, diz, enquanto o olhar percorre a sala para saber o que as crianças estão fazendo.
O falatório é constante, elas não param quietas, correm, se jogam no sofá, sobem umas no colo das outras, se abraçam, e por aí segue a bagunça. “São todos obedientes, mas tenho que ficar atento.” Na casa de cinco cômodos, moram os quatro filhos do casal: Thaís, 18, Uéverton, 16, e os gêmeos Pâmela e Pablo, 10. Há também quatro sobrinhos adotados. Ângelo Gabriel, 14, Samuel Kaíque, 11, Alexandre, 9, e Caio, 5, são filhos da irmã de Claudia, resgatados em situação de risco pelo casal, há alguns anos.
Claudia tinha certeza de que dariam um jeito de sustentar todos eles e não se importava com a confusão na casa. “Pelo contrário, Cacau até se divertia, enquanto eu ficava preocupado, dando ordens, contornando”, recorda. “Ela dizia que eu ia ter um troço por esquentar a cabeça à toa.”
Durante o dia, a filha mais velha segura a onda, na falta da mãe, com a ajuda das vizinhas. À noite, vai para o colégio. “Estou tentando fazer comida no almoço e deixar uma parte para a janta, mas está difícil porque não sei cozinhar muita coisa”, explica, séria e ao mesmo tempo doce. Quando Claudia morreu, uma corajosa Thaís deu entrevistas, foi a programas de TV mostrar a indignação da família com o que chama de “o ocorrido”. Jamais usa as palavras “tragédia” ou “covardia”, empregadas por vizinhos. A garota confrontou as versões dos policiais que tentavam se esquivar da responsabilidade no assassinato. Nesta noite, é ela quem conduz a comemoração simples do aniversário do pai. Acende as velas, apaga a luz, puxa o Parabéns. A criançada pula ao redor.
“Não sei como vai ser o primeiro Dia das Mães sem a Cacau”, diz Alexandre. “De onde estiver, ela pode estar certa de que continuo sendo o pai presente que sempre fui. Meus filhos sabem que nunca vão ficar abandonados. Largo tudo para cuidar deles, como ela faria se o ocorrido tivesse sido comigo”, afirma. No dia 20 de setembro, completariam 20 anos de casados. Ela, nascida no morro da Congonha, e ele, na Cidade de Deus, se conheceram na Tijuca, quando Claudia trabalhava como vendedora de balas no semáforo.
Caçula dos três filhos de dona Sebastiana e seu Alcides, ela “foi à vida”, como conta o irmão mais velho, Júlio Cesar, para ajudar a manter a família depois que o chefe da casa sofreu um acidente. “Ela sempre batalhou muito”, elogia Júlio. O último emprego de Claudia foi o de auxiliar de serviços gerais; Alexandre era vigia noturno. Juntos, recebiam 1,6 mil reais por mês. “Dava para pagar as contas. Tinha que dar”, diz ele.
A casa própria, o casal comprou em 1999. Claudia planejou várias reformas, executou algumas. O chão é de cimento; o piso de cerâmica cobre só a varanda. No lugar de portas, há lençóis pendurados. “O sonho dela era arrumar direitinho, colocar piso. Vou me empenhar nisso”, garante. A conversa é interrompida pelos gêmeos, Pâmela e Pablo, esbaforidos, que pulam no pescoço do pai, numa cena de amor explícito. Ele saiu do emprego para cuidar dos filhos e tem passado muito tempo na rua resolvendo questões burocráticas.
Com a ajuda da Defensoria Pública, dará entrada a pedidos de indenização, pensão, Bolsa Família etc. Já obteve a guarda provisória dos sobrinhos. Quando estava de folga, a mãezona levava os menores para brincar na pracinha em frente de casa. Sentava no escadão para ficar de olho nas crianças. Um vizinho, para homenageá-la, pendurou no poste uma placa: “Praça da Cacau”. O lugar, entrada e saída do morro, é corredor de passagem de traficantes.
Embora fosse inevitável a convivência com bandidos da região, Claudia não gostava de vê-los perto dos filhos. Temia, ainda, que a PM confundisse seus meninos com marginais e atirasse neles. Ou mesmo que, num confronto, uma bala os atingisse. Com preocupação semelhante, Alexandre não dá moleza aos garotos. Quando Uéverton e Gabriel ameaçam dar uma volta lá fora, já à noite, o pai brinca: “Rolê? Tá bom. Só se for aqui, dentro de casa”.
Enquanto prova um pedaço do seu bolo, deixa escapar, baixinho, que às vezes se sente perdido. “Quando estou sozinho, me pego sem saber o que fazer, para onde ir, sabe? Cacau era o meu amor, uma mulher muito forte. A gente tem que reaprender a viver.”