WOW Rio: festival reúne mulheres do mundo todo
Shows, oficinas, espetáculos e mesas de debate contaram com participação de mulheres inspiradoras nos dias 27 a 29 de outubro
Nos dias 27, 28 e 29 de outubro, a Praça Mauá, no Centro do Rio de Janeiro, e o seu entorno foram transformados em um grande palco ocupado por mulheres, das mais diversas nacionalidades, origens e etnias. Com uma programação totalmente gratuita, o Festival WOW (Women of the World, Mulheres do Mundo, em inglês) reuniu nomes inseridos na política, nas artes, no ativismo, entre outros setores, para conversar sobre temas do universo feminino.
O evento também contou com diversas atrações culturais, incluindo oficinas, espetáculos e shows de artistas requisitadas, como Alcione, Marina Sena, Majur e MC Carol.
Ao ocupar a região, que inclui dois museus importantes da cidade, o Museu do Amanhã e o Museu de Arte do Rio, a segunda edição presencial do festival deu foco principalmente às mulheres de periferias e seus desafios.
“Um dos objetivos do WOW Rio é apontar como essas mulheres vivem em desigualdade em relação a outras regiões mais abastadas, onde está concentrada grande parte dos equipamentos de cultura. Por isso, é estratégico estar numa região central da cidade, numa praça que já foi o maior porto de escravizados do Brasil e hoje foi ressignificada”, explica a organizadora Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré, instituição que luta há mais de duas décadas pelos direitos dos mais de 140 mil moradores do Complexo da Maré, na Zona Norte.
Distribuída entre espaços culturais, a programação foi organizada em quatro eixos: “Mulheres nas artes e na cultura”, “Negócios delas”, “Ativistas em rede” e “Mulheres em diálogo”. O último se trata do coração do festival, que concentrou debates sobre temas como saúde, direitos reprodutivos, amor e afeto, alimentos e terra, sexualidade, poder e política, entre outros.
Ao todo, cerca de 300 mulheres de 16 países participaram das mesas e palestras repletas de trocas e vivências plurais. Dois dos encontros também contaram com a participação da fundadora do festival internacional, a diretora artística britânica Jude Kelly.
Criado na Inglaterra, tendo como marco fundador o centenário do Dia Internacional da Mulher em 2010, o WOW já foi realizado em países da Europa, Oceania, Ásia e África, em articulação com lideranças locais. O festival aportou pela primeira vez em solo carioca em 2018, retornando neste momento pós-pandemia da Covid-19, com a proposta de ocorrer a cada dois anos.
“Queremos que o WOW seja um lugar que promova conexões e ideias para além daqui. Desde 2018, vimos projetos que nasceram devido ao encontro de mulheres no festival. Esperamos que este ano todas essas conversas e conhecimentos trocados gerem novos projetos transformadores”, conclui Eliana Sousa.
Por um cenário político diverso
Invertendo a lógica de grande parte dos espaços elitizados, o festival deu voz a mulheres pretas, periféricas, indígenas, quilombolas, estudantes e profissionais de diferentes idades – provando que as mulheres podem e devem ocupar os mais diversos setores. Na mesa “Mulheres em espaços de poder e decisão”, no dia 27, foi debatida a importância de mulheres se inserirem no poder público para exigir seus direitos.
“Quando as mulheres chegam no mundo político, ele se transforma. Há um mito de que mulheres não gostam de política, mas, na verdade, nós não fomos educadas para ocupar esse espaço”, defendeu Ana Maria Santos Rocha, atual assessora do Ministério de Mulheres e ex-presidente do PCdoB.
Participante também da mesa, a secretária estadual das mulheres no Espírito Santo, Jacqueline Moraes, contou sobre seus desafios para entrar nesse campo, sendo uma mulher criada numa região periférica do estado e que trabalhava como vendedora ambulante. Foi aos 26 anos, quando estudantes chegaram até ela para fazer um trabalho sobre a marginalização dos camelôs, que ela se sentiu motivada a retomar os estudos e a se envolver nesse universo.
“Eu fui a primeira mulher, negra, periférica, a ser eleita vice-governadora do estado. Nas quatro vezes em que eu assumi o governo, me perguntaram se eu estava preparada. Isso me marcou muito”, relembrou Jacqueline, que hoje incentiva o envolvimento feminino nos partidos políticos e nos papéis de liderança. “As mulheres não fazem pior ou melhor que os homens, elas fazem diferente”, ressaltou Jacqueline.
A mesa foi mediada por Joyce Trindade, de 26 anos, atual secretária de Políticas e Promoção da Mulher no município do Rio. À CLAUDIA, a profissional de gestão pública reforçou a importância da representatividade na política para incentivar o envolvimento das novas gerações.
“Ser mulher e estar em um cargo de liderança é ter consciência que você representa boa parte da sociedade e pode abrir caminhos para outras mulheres. É mostrar que é possível sonhar e alcançar lugares que por muito tempo nos foram negados”, afirma a secretária.
“Apesar dos desafios, o que me motiva é saber que trabalho diariamente em prol de mais de 3,6 milhões de mulheres para fortalecer suas potências”, conclui a carioca de Cosmos, Zona Oeste do Rio, há dois anos à frente da secretaria.
Diferentes perspectivas sobre amor e sexualidade
Os tabus e os conceitos pré-definidos na sociedade sobre amor, afetos e sexualidades também foram colocados à prova ao longo dos debates do festival. Na última mesa do dia 27, mediada pela assistente social Obirin Odara, a renomada escritora Conceição Evaristo e a compositora e intérprete Anelis Assumpção debateram sobre “Escrever o amor e o afeto”, trazendo novas perspectivas sobre o ato de amar.
A conversa começou em torno dos versos bíblicos que defendem que “o amor tudo perdoa, tudo suporta”. “Eu acho que esse discurso do amor foi um discurso de catequese, que apaziguou os povos africanos quanto a sua própria colonização”, defendeu Evaristo, comentando também sobre a perigosa adoção desse discurso pelas mulheres.
“Essa narrativa foi usada para dominar, criar uma ilusão”, concluiu. A paulistana Anelis também comentou sobre o conceito de “amor sustentável”, cantado por ela numa canção com mesmo nome, onde brinca com palavras como ‘bioagradável’.
“É uma escolha amar e também uma escolha desamar. A gente precisa aceitar que, como natureza, nos transformamos. Desamar é um fato”, afirmou a cantora, que também abordou temas como o luto e a busca por suas origens ao longo do bate-papo.
A relação de mulheres com a própria sexualidade também foi um dos temas principais das rodas de conversa. Existe um limite de idade quando se fala sobre sexo? Para as participantes da mesa “Sexualidade e prazer na velhice”, que ocorreu na tarde do dia 28, não há limitação alguma quando o assunto é sentir prazer.
“Eu tive os melhores orgarmos depois dos meus 60, 65 anos, porque eu me descobri de uma forma que eu não conhecia antes. E como se conhecer sem experimentar?”, questionou a escritora e pesquisadora Sonia Hirsch, de 75 anos, que defende a busca das mulheres por outras formas de se relacionar.
“No mundo judaico-cristão, quando a mulher para de ovular, é defendido que ela deve ocupar somente o espaço de cuidadora”, explica a doutora em filosofia Helena Theodoro, que, aos 80 anos, assume com orgulho sua vida sexual ativa. “Se um idoso casa com uma jovem, acham uma maravilha. Eu me casei com um homem 20 anos mais jovem e fui muito julgada. Mas estamos agora há 28 anos juntos e ainda curtindo a intimidade”, afirma a intelectual.
O debate também foi enriquecido com os discursos da socióloga Edmeire Exaltação e da artista e psicanalista Numa Ciro, mães e avós que encaram com naturalidade a sexualidade e o fato de hoje se relacionarem com mulheres.
Presente e futuro para todos
Ao longo do WOW Rio, uma das preocupações dos debates foi de levantar problemas de grupos muitas vezes invisibilizados na sociedade. Na mesa “Gênero e justiça ambiental”, no dia 29, mediada pela ativista Kamila Camilo, a conversa se voltou principalmente aos povos indígenas e quilombolas, e seus territórios tantas vezes violados.
“Talvez a gente não saiba o que é justiça, mas injustiça climática nós sabemos bem”, afirmou a advogada Marina Marçal, citando como exemplo a maior letalidade da Covid-19 na Amazônia, onde povos locais têm a saúde respiratória afetada em razão das inúmeras queimadas.
A quilombola Selma Dealdina, que compõe a coordenação nacional da CONAQ, também alertou sobre a crueldade das mortes que envolvem mulheres ativistas nesse meio. Selma relembrou o caso de Maria Bernadete Pacífico, liderança quilombola de 72 anos que foi executada em casa, em agosto deste ano.
“Foram 12 tiros no rosto e 10 na região do tórax. Desde 2013, foram mais de 38 lideranças quilombolas mortas”, disse Dealdina. A luta das mulheres para garantir a justiça em seus territórios, no entanto, resiste. “Temos colocado esse dedo na ferida para lutar pelos nossos filhos e netos. Precisamos dizer a todos que estamos aqui”, defendeu Eliana Karajá, presidente da Associação Indígena do Vale do Araguaia, que aproveitou o debate para expor as violências que mulheres indígenas sofrem dentro de suas comunidades. “Precisamos denunciar para sobreviver”, declarou.
A superação dos desafios no presente também incentiva uma reflexão sobre o futuro para as mulheres. “Nós somos ensinadas a não sonhar tão alto quando temos uma origem humilde. Queremos trabalhar para dizer às meninas que elas podem ser o que quiserem”, disse a presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Manuella Mirella, de 26 anos, durante a mesa “Futuro pra quem?”, no dia 27.
Para a assistente social Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, o futuro da nação está nas mãos de mulheres negras. “Somente elas, ao gerar a vida, são capazes de gerar um novo mundo. De construir novas perspectivas para onde a escassez está presente e a violência é cotidiana”, afirmou a ativista.
Já a ministra de Igualdade Racial, Anielle Franco, admitiu a dificuldade de falar em futuro enquanto a população que luta por seus direitos é massacrada no presente. “A Marielle era o futuro que eu queria. Esse futuro nos foi negado”, disse a ministra, emocionada ao falar sobre a irmã e vereadora, assassinada em março de 2018.
Mas Anielle reforça a importância de desejar o futuro e, ainda no presente, ocupar espaços muitas vezes negados às mulheres negras e de periferia, mesmo que incomode quem já está no poder. “Se eles estão incomodados é porque estamos no caminho certo”, afirmou Anielle, à frente também do Instituto Marielle Franco.
A praça em festa
Além dos debates, a programação do WOW incentivou mulheres empreendedoras a impulsionarem seus trabalhos na feira “Negócios Delas”. Com barracas espalhadas pela Praça Mauá, com diversos tipos de artesanato, vestuário, acessórios, produtos de autocuidado, entre outros itens, a feira contou com 150 produtoras locais.
Uma oportunidade de dar visibilidade a pequenos negócios, como o da costureira Márcia Cristina, da loja Abayomi, que aposta na ancestralidade ao usar tecidos de origem africana para a criação de bolsas. “Precisamos que as pessoas valorizem o trabalho das artesãs e vejam com outros olhos.Todas nós trabalhamos muito para fazer cada pequeno detalhe. As pessoas precisam saber que estão levando um pedacinho de nós, do amor que colocamos no que produzimos”, afirmou a artesã, carioca da Zona Norte, que migrou da área da saúde para se dedicar ao negócio.
Em um espaço próximo à feira, o palco com shows gratuitos também agitou o clima do festival, só com mulheres no line-up. Nomes como Marina Sena, Majur, MC Carol, Deize Tigrona, Kaê Guajajara, Larissa Luz e Alcione emocionaram e colocaram o público para dançar, encerrando a programação de cada dia com chave de ouro.