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Violência patrimonial priva as mulheres de autonomia e recursos para viver

A dependência econômica é dos fatores que que contribui para que as mulheres continuem em relacionamentos abusivos

Por Paola Carvalho
Atualizado em 26 jul 2023, 09h03 - Publicado em 26 jul 2023, 09h03

A história é de C.V.*, 36 anos, mas poderia ser de outro incontável número de mulheres. Ela se casou por amor, parou de trabalhar para cuidar das crianças e do marido. O pacto é o mesmo em diferentes famílias: ele trabalha fora, ela, dentro de casa. A frase, repetida entre tantos casais, não deveria ter um ponto final aqui. O complemento, na maioria das vezes ocultado, é: ele ganha o dinheiro, ela perde a autonomia.

“Eu entregava a minha parte e confiava que ele fazia a dele com a mesma lealdade, era natural”, afirma. Só que essa história costuma terminar em tempos distintos. Para a mulher, com o divórcio. Para o homem, bem antes. Enquanto casados, o ex de C.V. transferiu todos os bens, como carros, casas e negócios, para familiares e amigos — um patrimônio que ela calcula somar cerca de R$ 30 milhões. “Somente no momento da partilha descobri que tudo o que conquistamos juntos estava em nome de terceiros”, conta. Sem nada, voltou para a casa dos pais, onde mora com os dois filhos, um de 8 e outro de 6 anos. Trabalha meio período, enquanto as crianças estudam.

Sobre Poder e controle: Violência patrimonial priva as mulheres de autonomia e recursos para viver
(Pexels/Reprodução)

C.V. fala abertamente sobre a situação para que outras mulheres saibam: além da física, sexual, psicológica e moral, existe a chamada “violência patrimonial”, também prevista na Lei Maria da Penha (nº 11.340, de 7 de agosto de 2006). E ela não se resume ao contrato pré-nupcial e da titularidade dos bens. “Meu ex me tirou o cartão de crédito, a chave do carro, me deixou sem nada. Ele me chamava de feia, relaxada. Ia para festas e me deixava em casa por não me considerar à altura dos convidados. Fiquei destruída, tentando descobrir onde eu estava errando”, conta. “Ainda morrendo de medo de me separar e não conseguir a guarda dos meus filhos.”

Pela Lei, a violência patrimonial é entendida como qualquer conduta que configure retenção (tomar para si prolongadamente), subtração (furtar, privar, tirar algo de alguém), destruição parcial ou total de objetos (como celulares, computador, televisão, maquiagem), instrumentos de trabalho, documentos pessoais (como RG, carteira de habilitação, certidão de casamento, passaporte), bens, valores e direitos ou recursos econômicos. “Ela pode ocorrer durante uma relação afetiva — namoro, união estável, casamento e até entre pai e filha —, mas é bastante comum após a ruptura do vínculo, pois se trata de um meio para punir mulheres que decidiram pela separação, ou para coagi-las a retomar relacionamentos”, avalia a advogada familista e feminista Mariana Régis, especializada em Direito de Família com perspectiva interseccional de gênero.

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Uma questão levantada por C.V. é que “quando se ama não se coleta provas”. Para a advogada, a violência patrimonial causa empobrecimento e profundo sofrimento nas mulheres, que, muitas vezes, se veem sem recursos básicos para sobrevivência e autonomia ao deixarem lares abusivos. “Por isso, esse é um tema extremamente relevante, e que vem sendo negligenciado pelo Judiciário e Estado brasileiro”, critica.

Sobre Poder e controle: Violência patrimonial priva as mulheres de autonomia e recursos para viver
(Pexels/Reprodução)

A advogada familista Vanessa Paiva, mestra e professora de Direito de Família, se especializou em Direito da Mulher após sofrer violências. Ela se divorciou em 2010 e, no ano seguinte, ingressou no curso. Até então, o companheiro a havia incentivado a se dedicar à empresa dele sem remuneração alguma e a deixar os estudos por não considerá-la intelectualmente capaz. “Ao buscar os meus direitos, virei referência para as minhas amigas e, depois, veio uma massa de mulheres que sofriam como eu. Só assim vi que poderia fazer algo não só por mim, mas também por elas”, diz. Há três anos, Vanessa passou a atender exclusivamente clientes nessas condições.

Se uma mulher se sente “refém” do parceiro em relação a sua autonomia financeira ou desconsiderada por não exercer trabalho remunerado externo; é afastada das informações sobre o patrimônio do casal; percebe omissões sobre transações financeiras e rendimentos, entre outras questões, existem sinais de alerta para ajudá-la a mapear a situação (veja quadro ao lado).

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A principal orientação das advogadas ouvidas pela reportagem é buscar informação jurídica antes mesmo de casar ou viver em união estável, para entender, na prática, os riscos de cada escolha. “A realidade é que a maioria das mulheres só se dá conta de que sofreram violência patrimonial tarde demais: quando já escolheram o regime de bens (e não o modificaram), quando já fizeram renúncias profissionais em detrimento do crescimento do parceiro e ficaram vulneráveis economicamente”, afirma Mariana.

“O ciclo da violência vai abalando a autoestima e a autoconfiança, deixando-a confusa sobre se o que ela está vivendo é realmente uma violência, uma vez que a mesma é muito naturalizada na sociedade. Buscar uma rede de apoio, portanto, é essencial”

Bruna de Sillos

Para a advogada Bruna de Sillos, especializada em Direito da Mulher e integrante da Rede Feminista de Juristas, uma mulher nesse contexto provavelmente já está bem enfraquecida psicologicamente. Então, um ponto importante é buscar apoio emocional, conversar com pessoas de confiança e um profissional de saúde mental. “O ciclo da violência vai abalando a autoestima e a autoconfiança, deixando-a confusa sobre se o que ela está vivendo é realmente uma violência, uma vez que a mesma é muito naturalizada na sociedade. Buscar uma rede de apoio, portanto, é essencial”, pontua.

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(Pexels/Reprodução)

Em caso de separação, o ideal é uma assessoria jurídica própria, evitando a contratação de um único advogado indicado pelo ex-marido, e não se submeter à pressão para efetivar a partilha rapidamente. “No desespero, para se livrar de um casamento marcado por abuso, mulheres abdicam de direitos patrimoniais em acordos de divórcio, julgando que conseguirão refazer sua vida financeira. Contudo, na maioria das vezes, o que se percebe é arrependimento, pois o mercado de trabalho não é fácil para elas, especialmente quando se é mãe ou mulher negra”, destaca Mariana.

A advogada sempre teve em mente que falar de proteção patrimonial não é só sobre dinheiro, significa também falar sobre proteção da dignidade, da saúde física e mental de muitas mulheres, que se veem, após anos de dedicação aos maridos e filhos, sem qualquer recurso para sobreviver. “O Direito reforça assimetrias de poder por meio de leis e práticas discriminatórias, mas nós, juristas feministas, também compreendemos o seu potencial emancipatório quando bem aplicado”, afirma Mariana. Infelizmente, “a dependência econômica é um grande fator que contribui para a permanência de mulheres em relacionamentos abusivos. Isso é devastador”, lamenta.

Dez condutas que reforçam a prática de violência patrimonial

Elas refletem questões de ordem pública, como a cultura de violência contra as mulheres e da naturalização da exploração e subalternidade feminina.

1) Registrar todos os bens do casal exclusivamente em nome do homem; possibilitando-o, em casos de união estável, a desfazer-se rapidamente deles sem a autorização da companheira;

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2) Aquisição e registro de bens em nome de familiares do homem ou de sua empresa constituída antes do casamento, para manipular a legislação e, assim, garantir que todos os bens construídos na constância da união sejam de exclusiva propriedade do homem;

3) Esvaziamento de contas e aplicações financeiras em período próximo à ruptura do casamento ou união estável, como forma de burlar a partilha desses valores;

4) Transferência de todos os investimentos financeiros para a previdência privada, de maneira a burlar a partilha dos mesmos;

5) Recusar-se a indenizar a mulher pelas benfeitorias que ela realizou em imóvel próprio do ex-parceiro (adquirido antes da união/casamento), como: troca de pisos, projeto de iluminação, telhado ou quaisquer investimentos feitos em reformas;

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6) Usar procuração conferida em confiança pela mulher para realizar transações financeiras que a prejudicam;

7) Adquirir bens usando o seu cartão de crédito e não pagá-los após a separação;

8) Negar-lhe alimentos compensatórios após a separação, alegando que por ser jovem e ter formação acadêmica poderia ingressar imediatamente no mercado de trabalho, ainda que a mulher se encontre em situação vulnerável economicamente devido à ruptura da vida em comum;

9) Recusar-se a reconhecer que o trabalho doméstico e de cuidado dos filhos possui valor financeiro atribuível, e que a mulher que se dedicou exclusivamente a estas funções contribuiu efetivamente para a construção do patrimônio comum, com a sua força de trabalho e tempo;

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10) Abandonar emprego formal ou ocultar vencimentos para não ter que pagar alimentos aos filhos ou à ex-companheira e esquivar-se propositalmente do oficial de justiça para não ter que contribuir para o sustento dos filhos comuns.

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