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Machosfera: o perigoso universo online que ensina meninos a odiar mulheres

Discursos de ódio às mulheres estão cada vez mais organizados (e camuflados) na internet, e podem alcançar até quem não está à procura deles

Por Hysa Conrado
13 jul 2025, 05h00
Crescimento da machosfera foi alimentado pelas redes sociais
O discurso de ódio contra as mulheres tem chegado para cada vez mais adolescentes (Kareen Sayuri/CLAUDIA)
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“Olha na minha cara! Você não controla o que eu faço na minha vida, enfia isso na sua cabecinha de merda!” Jamie, um adolescente de 13 anos, grita essas palavras em direção à sua psicóloga depois de arremessar um copo de chocolate quente contra a parede e dar tapas na mesma. De pé, como se exigisse um certo tipo de subjugação através da demonstração da sua força, ele a encara de cima. Antes disso, no entanto, ria e conversava descontraidamente com ela, quase que num tom de flerte. 

A cena faz parte da minissérie Adolescência, da Netflix, que tem como trama o suposto envolvimento de Jamie no assassinato de Katie, sua colega de escola. Desde a estreia, a produção deixou uma pergunta em aberto: de que maneira o conteúdo que os meninos consomem na internet impacta a forma como eles enxergam as mulheres? 

Na história, a “machosfera” é apontada como o cerne de uma cultura de ódio que tem extrapolado o ambiente virtual e chegado cada vez mais rápido aos homens, não importa a idade, modificando suas relações sociais de afeto. Não é novidade que comunidades online têm o poder de mobilizar ressentimentos e desembocar em atos de violência e morte. CLAUDIA ouviu especialistas para entender como as mulheres são afetadas nesse caso.

O crescimento da machosfera

A machosfera abriu espaço e se consolidou conforme a internet se integrava à vida cotidiana. É onde se reúnem diferentes grupos que, em comum, compartilham ideias que pregam o desprezo às mulheres, além de um certo ressentimento pelas conquistas da igualdade de gênero.

“Nesses espaços, existe um pensamento de que à medida que os direitos das mulheres avançam, os direitos dos homens e a masculinidade se enfraquecem”, explica Bruna Camilo, doutora em sociologia pela PUC-Minas e pesquisadora de gênero, misoginia e extrema-direita.

A diferença, no entanto, é que 15 anos atrás era preciso ir até um fórum escondido na deep ou dark web — a parte da internet não indexada nos mecanismos de busca — para ter acesso à machosfera. Agora, basta entrar em uma rede social como o TikTok e o Instagram, ou mesmo em plataformas como o YouTube, para encontrar influenciadores e coaches que lucram com temas que desvalorizam as mulheres e condenam o feminismo abertamente. 

“Antes, você tinha que procurar, havia camadas adicionais para encontrá-los. Quem participa desses fóruns tem uma linguagem muito específica e uma cultura de anonimato. Hoje em dia, tudo está aberto”, afirma a jornalista Marie Declercq, que há 10 anos acompanha subculturas da internet e já foi ameaçada diversas vezes por homens que compartilham os ideais da machosfera. 

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“Desprezo às mulheres e estímulo à insurgência masculina” é o tema que predomina na machosfera estabelecida no YouTube, segundo um levantamento divulgado pelo Observatório da Indústria da Desinformação e Violência de Gênero nas Plataformas Digitais, uma parceria entre o Ministério das Mulheres e o NetLab da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). 

De acordo com a análise, a partir de 2022 houve um aumento significativo de vídeos com narrativas masculinistas. Além disso, o levantamento também destaca que os conteúdos expressam aversão, desprezo, controle e ódio às mulheres, com comentários direcionados a grupos tratados como “as feministas”, “as mães solteiras” e “as mulheres mais velhas”. Dos canais que foram analisados, 80% contam com alguma estratégia de monetização. 

Algoritmos alimentam discurso de ódio contra as mulheres

Machosfera está crescendo cada vez mais
Nas redes sociais, conteúdos misóginos têm encontrado um terreno fértil (Kareen Sayuri/CLAUDIA)

Na minissérie da Netflix, a machosfera é introduzida na trama quando Jamie afirma ter sido chamado de “incel” por Katie após convidá-la para sair. O termo é uma abreviação de “involuntary celibates” (celibatários involuntários, na tradução do inglês), que dá nome ao grupo de homens que se veem condenados à solidão por consequência da rejeição das mulheres. Isso, por sua vez, os leva a alimentar sentimentos de frustração e raiva contra elas. 

Esse episódio é tratado como o possível estopim que faz com que decida matá-la. O spoiler é que não há um desfecho claro sobre a motivação do assassinato, nem sobre o real envolvimento de Jamie, já que ele não confessa. 

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Nas redes sociais, o cenário é favorável para o crescimento desses grupos. A pesquisadora Bruna Camilo destaca que os algoritmos são responsáveis pela entrega de conteúdos misóginos para meninos, mesmo que eles não busquem por esses assuntos. 

Os donos das Big Techs também não têm mostrado interesse pela fiscalização desses materiais. Em entrevista recente ao Joe Rogan Experience, podcast alinhado a ideias conservadoras, Mark Zuckerberg, CEO da Meta, responsável pelo Facebook, WhatsApp e Instagram, afirmou que sente falta de mais “energia masculina” no mundo. Ele também anunciou o fim do programa de checagem de fatos em suas redes.

É dessa forma que a machosfera tem se popularizado e deixado de lado o estigma de assunto relegado ao submundo da internet. “Você pode encontrar um cara no seu trabalho que fica assistindo a vídeos no TikTok sobre como as mulheres são interesseiras, e talvez ele nem se dê conta de que faz parte desse movimento”, afirma Marie. 

Adolescentes costumam ser o público fisgado pela machosfera

As idades dos homens que compõem o grupo dos incels podem variar de 14 a 35 anos. A identificação começa, geralmente, na adolescência e se estende para a vida adulta. Na minissérie, Jamie afirma que não é um incel e que não faz parte de movimentos desse tipo, mas confessa que não se sente atraente e chega a mentir sobre as experiências sexuais que já teve, reforçando uma narrativa de rejeição. 

É esse tipo de sentimento que torna os adolescentes um tipo de alvo fácil para os homens que se destacam com conteúdos nos diferentes grupos da machosfera. Na ponta do iceberg, os discursos aparecem de maneira sutil, muitas vezes revestidos com um certo tom de humor. “À medida que se entra na machosfera, os conteúdos se tornam mais radicais e as mulheres, cada vez mais posicionadas no alvo do inimigo”, explica a socióloga Bruna Camilo. 

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O relatório elaborado pelo NetLab da UFRJ ainda mostra que no YouTube há canais com conteúdos misóginos que encorajam violência psicológica ou moral contra mulheres. Além disso, também reforçam a degradação e desumanização das mulheres por meio de fortes críticas à aparência física. 

“Esse modelo é extremamente doentio tanto para as mulheres que sofrem as violências, quanto para os próprios homens que são educados dentro dessa masculinidade. Não se trata aqui de vitimizar o homem, mas é necessário entender que ele também está envolvido nessa lógica. Tudo isso reflete na formação dos meninos e também nos discursos que chegam até eles”, afirma a pesquisadora. 

O impacto dos red pills para a vida das mulheres

Após ver uma série de conteúdos característicos da machosfera no YouTube e no Instagram, a atriz e humorista Livia La Gatto decidiu fazer um vídeo satirizando a postura de alguns influenciadores, principalmente os red pills (confira no dicionário ao fim do texto) que se posicionam como coaches e vendem cursos masculinistas. Ela diz que, para montar o personagem, se inspirou em três nomes desse grupo. 

O conteúdo viralizou e a repercussão despertou um enxame. O influenciador Thiago Schutz, conhecido como “Calvo do Campari”, se sentiu particularmente atingido e exigiu que Livia apagasse o vídeo, fazendo uma série de ameaças e incitando seus seguidores contra ela. 

“Ele falou: ‘se você não tirar esse vídeo, ou é processo ou é bala’. Ele fez ameaças ainda mais absurdas e entre três e quatro da manhã tentou me ligar mais de dez vezes. Eram sempre ameaças de homens, até policiais, me difamando, dizendo que sabiam onde eu morava e me aconselhando a tomar cuidado quando andasse na rua, dizendo ‘seus dias estão contados’”, lembra Livia.

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Depois disso, ela ficou três meses sem conseguir sair de casa, com medo de sofrer algum tipo de agressão na rua ou mesmo no seu condomínio, pois não havia como saber se algum dos seus vizinhos era um red pill. Até hoje ela sente que está sendo seguida. 

“Minhas amigas se revezavam para dormir comigo. Eu sonhava algumas noites que eu recebia uma bala no peito. Então, além de trancar a porta, eu colocava uma cadeira na frente e outros móveis, para pelo menos acordar com o barulho”, conta. 

Livia não foi a primeira a produzir conteúdo desse tipo, mas se tornou alvo recorrente de perseguição e levou o caso à Justiça. No entanto, o processo contra Thiago foi suspenso, mesmo após ele ter reconhecido as ameaças. “Nada aconteceu. Ele está livre, fazendo vídeos de ódio contra as mulheres e vendendo livros e cursos online. Está lucrando bastante”, ela diz. 

Em um vídeo recente publicado no seu Instagram, o influenciador afirma que “não entende o feminismo”. “Tem mulher que é o seguinte: ela divide aquilo que é vantajoso para ela, o que não é o cara paga. Isso é uma parada que não entendo do feminismo, que bate tanto na tecla que de que homem e mulher são iguais. Até a hora que chega a conta”, ele diz. 

Para Marie, os influenciadores da machosfera criaram uma nova linguagem para reembalar a misoginia e o machismo, transformando-os em uma teoria. “Um ou outro influenciador são a primeira camada, apenas uma porta de entrada. Quando falo de machosfera, estou falando de um ecossistema onde as pessoas compartilham crenças misóginas, acreditando que as mulheres dominam o mundo”, explica.

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Pequeno dicionário da machosfera

Incel 

Do inglês “involuntary celibates” ou celibatário involuntário: homem que se vê condenado à solidão e à rejeição das mulheres, o que alimenta sentimentos de raiva contra elas

Red Pill 

Defendem que os homens são vítimas da misandria, isto é, vítimas de ódio, desprezo, injustiças e doutrinação por parte das mulheres, principalmente das feministas 

MGTOW (lê-se “migtau”) 

Sigla da frase em inglês que pode ser traduzida como “homens seguindo seu próprio caminho”. Acreditam que o feminismo tornou o mundo um lugar dominado pelas mulheres e prejudicial para os homens. Defendem uma postura de autopreservação 

Pick Up Artists  (PUA)

Se dizem especializados em técnicas de sedução e estratégias de conquista, com foco na performance sexual dos homens e base na manipulação psicológica e no reforço de estereótipos sobre homens e mulheres

Emojis citados em Adolescência

  1. Pílula Vermelha: Representa a ideologia “red pill” e faz alusão à pílula usada para descobrir a verdade do mundo no filme Matrix
  2. Feijão: Identifica membros da comunidade “incel”
  3. Emoji 100%: Faz referência à teoria dos 80/20, na qual 80% das mulheres se interessam apenas por 20% dos homens, reforçando a ideia de rejeição 
  4. Corações Coloridos
  • Vermelho: Amor
  • Roxo: Desejo sexual
  • Amarelo: Interesse mútuo
  • Rosa: Carinho sem intenção sexual
  • Laranja: Mensagem de consolo, como “vai ficar tudo bem”

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