Mães anônimas revelam os desafios da pensão alimentícia no Brasil
Com mais de 1,5 mil novos pedidos por dia e recorde de revisões, a pensão alimentícia revela um Brasil em disputa por sustento e responsabilidade

Todas se divorciaram. Todas têm direito à pensão alimentícia. E todas se viram envolvidas em articulações que exigiram ocupar um front de batalhas que não escolheram travar. São três mães que preferiram falar com CLAUDIA em anonimato, mas cujas histórias revelam os entraves enfrentados por muitas mulheres no Brasil.
O pai autônomo que omite a renda
Uma delas não conseguiu na Justiça um valor suficiente para manter a rotina da filha, já que o pai, autônomo, omitiu sua verdadeira renda.
Filho com deficiência desamparado
Outra, mãe de um menino com deficiência, viu o juiz fixar a pensão em apenas 30% do salário do pai — um valor muito abaixo do que ela gasta mensalmente com os cuidados do filho, que superam sua própria renda.
Obrigado pelo juiz a trabalhar aos 60 anos
A terceira, aos 60 anos e com uma doença que compromete suas habilidades, teve a pensão suspensa depois que o juiz entendeu que, mesmo após uma vida dedicada à casa e aos filhos, ela ainda teria tempo de se reinserir no mercado de trabalho.
Acesso à justiça continua falho
Casos como esses se multiplicam. E mostram como, apesar dos direitos garantidos em lei, o acesso real à justiça ainda é desigual — e frequentemente hostil para quem mais precisa dela.
O número de novos processos relacionados à pensão alimentícia vem crescendo de forma constante desde 2020 — ano em que a coleta sistematizada desses dados teve início pela Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, o Datajud, conforme informado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Naquele momento, foram registrados 331.942 casos. Em 2021, esse número saltou para 396.344. Em 2022, chegou a 473.781. Em 2023, rompeu a barreira do meio milhão, somando 531.152. E, em 2024, atingiu 547.326 — uma média de 1,5 mil novos pedidos de pensão alimentícia por dia.
Esse direito, definido como a quantia devida para garantir a subsistência de um dependente, é previsto na Constituição e regulado pelo Código Civil. O dever de prestar alimentos não se limita à relação entre pai e filho. Parentes, cônjuges ou companheiros também podem ser devedores de pensão alimentícia, inclusive em benefício de irmãos, avós ou netos, desde que a dependência econômica seja comprovada.
Isso inclui, por exemplo, filhos maiores de idade que ainda estejam cursando o ensino superior (em regra até os 24 anos), ou adultos com deficiência ou incapacidade para o trabalho.

A escalada também se reflete em outro indicador: o de pedidos de revisão dos valores pagos como pensão alimentícia. Foram 101.837 casos em 2020, mas 145.234 no ano passado.
O crescimento revela não apenas o aumento de relações familiares judicializadas, mas também a instabilidade financeira que atinge milhares de brasileiros, que precisam rever acordos firmados.
Embora o CNJ não disponha de dados consolidados sobre inadimplência, os especialistas apontam que os atrasos no pagamento e a mudança de contextos de vida são frequentes — e, muitas vezes, geram novas ações judiciais.
Para a advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM), o crescimento do número de pedidos de pensão alimentícia e de revisão de seus valores pode ser atribuído a um conjunto de fatores.
“Há o impacto da pandemia de Covid-19, que desestruturou milhares de famílias, gerou desemprego e provocou rupturas em casamentos e uniões estáveis. Em segundo lugar, houve uma maior conscientização, sobretudo entre mulheres, sobre os seus direitos e os dos filhos — além de um Judiciário mais acessível e digitalizado”, afirmou.

O valor da pensão é estipulado judicialmente a partir de dois critérios principais: a necessidade de quem recebe e a capacidade financeira de quem paga. Ao ingressar com o pedido, é preciso apresentar provas da relação de parentesco e a necessidade de alimentos (alimentação, saúde, vestuário, habitação, educação, lazer e cultura).
Informações sobre o devedor podem ser úteis. “Em um processo de alimentos ocorre a quebra do sigilo bancário e fiscal, pois corre em segredo de justiça, então daí surgem as principais provas. No caso de pessoas que escondem patrimônio, colocando-o, por exemplo, em nome de terceiros, as provas ficam vinculadas ao padrão de vida que a pessoa desfruta. Então as comprovações precisam vir daí, observando postagens em redes sociais e testemunhas”, afirma Patrícia Valle Razuk, sócia do PHR Advogados e especialista em Direito de Família e Sucessões.
É aqui que, de novo, tantos casos de pais que tentam fugir dos pagamentos chocam. Houve recentemente o caso de um homem, por exemplo, que escondeu a sua renda principal — um canal do Youtube — para manipular a decisão do juiz.
Um outro, diante do nascimento de um filho com uma segunda mulher, quis suspender o pagamento para os gêmeos da primeira. Um médico e empresário ingressou com um pedido de revisão, alegando significativa queda de renda. No entanto, ele havia constituído uma nova empresa, direcionando seus rendimentos para essa pessoa jurídica. Após fotos com “bolos de dinheiro” nas redes sociais, a mãe precisou entrar na Justiça para pedir adequação em razão do significativo aumento da capacidade financeira do pai.
No caso de pessoas que escondem patrimônio, colocando em nome de terceiros, as provas ficam vinculadas ao padrão de vida que a pessoa desfruta. Então as comprovações vêm de postagens em redes sociais e testemunhas.
Patrícia Valle Razuk, especialista em Direito de Família e Sucessões
Revisão na Justiça
Uma particularidade da pensão alimentícia é que a decisão judicial nunca transita em julgado de forma definitiva, já que a realidade econômica das partes pode mudar.
Por isso, a pensão pode ser revista a qualquer momento, para cima ou para baixo. De um lado, o credor pode comprovar que os custos aumentaram; de outro, o devedor pode demonstrar queda na sua renda.
Nesses casos, é possível pedir a revisão judicial dos valores estipulados anteriormente, com base em novas provas. Não é permitido simplesmente suspender ou reduzir o pagamento por conta própria — isso caracteriza inadimplência e pode levar a sanções legais.
E, no Brasil, dever pensão alimentícia é algo levado a sério. Trata-se da única hipótese de prisão civil por dívida permitida pela Constituição. A pena pode variar de um a três meses em regime fechado e o devedor permanece preso até que os valores devidos sejam pagos.
O não pagamento pode acarretar protesto da dívida, inscrição do nome nos serviços de proteção ao crédito, bloqueio de contas bancárias e desconto em folha de pagamento.
É comum até 30% do salário ser descontado diretamente, mas esse percentual pode chegar a 50% quando se trata de valores em atraso.

“O machismo é estrutural em nossa sociedade, e os efeitos do patriarcado também estão na Justiça”, afirma a vice-presidente do IBDFAM.
Ela destaca a importância do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, lançado em 2021 pelo CNJ, que reconhece que a influência do patriarcado, do machismo, do sexismo, do racismo e da homofobia são transversais a todas as áreas do direito, sendo importante que toda a comunidade jurídica e toda a sociedade o conheça para exigir sua aplicação.
A pensão alimentícia não é um favor, é um direito legal e constitucional. As disputas muitas vezes envolvem mais do que dinheiro: expõem relações rompidas, ressentimentos antigos e dinâmicas de poder.
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