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Genética acessível: Exame de DNA deve ser feito por todos?

Conheceu alguém que fez um teste genético por conta própria e deu vontade de fazer o mesmo? Geneticistas esclarecem a real recomendação do exame

Por Fernanda Bassette
14 set 2023, 12h05
DNA - Será que teste genético deve ser feito por todos
Especialistas alertam que os testes genéticos têm indicações bastante específicas e não devem ser feitos indiscriminadamente, por conta própria, sem recomendação (Ilustrações Getty Images/Getty Images)
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Basta raspar um cotonete por dentro da bochecha, coletar uma amostra de sangue ou cuspir saliva dentro de um potinho, enviar o material para o laboratório e pronto! Em dias você terá acesso às informações mais preciosas do seu DNA, desde dados sobre ancestralidade até resultados preditivos sobre o risco aumentado (ou não) de desenvolver determinadas doenças. Parece a fórmula mágica para a saúde, não é?

Do ponto de vista da biologia molecular, digamos que sim, os avanços são extremamente animadores porque permitem aos médicos fazer uma medicina cada vez mais personalizada, de acordo com as especificidades de cada paciente. Mas do ponto de vista individual, é preciso ter cuidado para não ser enganado. Especialistas alertam que os testes genéticos têm indicações bastante específicas e não devem ser feitos indiscriminadamente, por conta própria, sem recomendação.

No Brasil, os testes genéticos existem há cerca de 30 anos. Mas eles eram tão complexos e caros que praticamente eram realizados somente para confirmação de paternidade – muito esporadicamente eram feitos para identificação de alguma doença. Somente nos últimos dez anos que essa tecnologia foi barateando e ganhando mais espaço.

“Vivemos uma mudança histórica na realização de testes genéticos. Antes, o paciente chegava ao laboratório com uma indicação médica para confirmar ou descartar determinada suspeita diagnóstica. De dez anos para cá, as pessoas nos procuram espontaneamente porque querem mapear o genoma e descobrir coisas sobre sua saúde”, afirmou o geneticista e pediatra Salmo Raskin, do laboratório Genetika (centro de aconselhamento e laboratório de genética em Curitiba), membro da Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica e um dos pioneiros na realização desses exames no Brasil. Segundo Raskin, essa mudança aconteceu especialmente pelo aumento do conhecimento e da informação, além do barateamento dos custos dos exames.

“Vivemos uma mudança histórica na realização de testes genéticos, as pessoas nos procuram espontaneamente”

Salmo Raskin, geneticista e pediatra

Mas será mesmo que fazer um teste genético para saber mais sobre a sua saúde funciona? Pode parecer controverso, mas a resposta é: nem sempre. A geneticista Dafne Dain Gandelman Horovitz, coordenadora clínica do Centro de Genética Médica e Serviço de Referência em Doenças Raras do Instituto Fernandes Figueira (Fiocruz/RJ) e consultora do Ministério da Saúde na elaboração da Política Nacional de Atenção às Doenças Raras, lembra o caso de uma paciente idosa e saudável, na faixa dos 70 anos, que a procurou recentemente com um laudo de mais de 470 páginas com os resultados do seu exame genético. O teste havia sido solicitado por um médico amigo da família, sem nenhuma necessidade prévia. Por não saber interpretar os resultados, o profissional recomendou que ela procurasse um geneticista.

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“Quando começamos a consulta, nem ela sabia explicar direito por que tinha feito aquele exame. Ela era uma pessoa super saudável, sem histórico familiar significativo, super de bem com a vida, com nenhuma doença ou suspeita que justificasse a realização do teste”, lembrou Dafne, ao ressaltar que a consulta foi basicamente uma aula teórica sobre o conceito da genética médica. “O que de fato estava sendo procurado ali naquele laudo? Li e reli o relatório várias vezes para ver se de fato eu achava alguma coisa de útil e, definitivamente, não encontrei nada. Havia informações como a capacidade da paciente sentir gosto amargo, de sentir cheiro podre de peixe. Coisas inúteis e que beiravam o inacreditável”, contou a médica

Por outro lado, Rafaela* e a irmã recorreram aos testes genéticos para saber se tinham risco aumentado de desenvolver câncer de mama – a mãe delas havia morrido da doença aos 45 anos, quando ainda praticamente nem se falava sobre as mutações nos genes BRCA 1 e BRCA 2, que são associados ao risco aumentado da doença. A avó também havia morrido de câncer, mas não de mama.

“Me senti cercada pela doença e precisava saber se tinha predisposição para ter o mesmo problema”, conta. Elas fizeram um painel genético ampliado com todos os marcadores de câncer e de ovário porque não sabiam se o câncer da mãe era genético ou eventual. O exame de Rafaela deu negativo para a mutação, o da irmã, positivo. Os tios, irmãos da mãe de Rafaela, também decidiram fazer o teste e não tinham a mutação – o que fez as irmãs constatarem que a herança genética vinha da família paterna.

“Passamos a vida toda achando que havia uma predisposição genética para o câncer de mama por causa da minha mãe, mas no contexto da realização desses testes descobrimos que era da família paterna. Por causa desses resultados minha irmã fez a cirurgia para retirada do útero, dos ovários e das mamas. É um privilégio poder fazer isso”, relatou Rafaela.

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DNA - Será que teste genético deve ser feito por todos
A ciência se tornou capaz de analisar milhares de genes ao mesmo tempo e de descobrir se as pessoas têm predisposição aumentada para doenças diversas (Ilustrações Getty Images/Getty Images)

Diferentes indicações do teste de DNA

Nessas três décadas de evolução, os avanços da genética não se restringiram somente à redução dos custos do exame ou do tempo gasto para fazer a análise do genoma. Há uma infinidade de possíveis aplicações das análises – e por isso é preciso ter muita cautela. Nesse período, a ciência se tornou capaz de analisar milhares de genes ao mesmo tempo (cada pessoa possui cerca de 20 a 25 mil genes e cada um deles carrega informações únicas) e de descobrir se as pessoas têm predisposição aumentada para câncer, diabetes, doenças cardíacas, entre outras. No entanto, os especialistas ressaltam que para somente cerca de 70 desses genes existe algo que a medicina possa fazer para minimizar os riscos. Para todo o resto, não existe nada.

Na oncologia, por exemplo, onde já estão bastante estabelecidos, os testes genéticos analisam o DNA de alguns tipos de tumor e possibilitam aos médicos definir qual a melhor conduta e tratamento para o paciente – essa é a chamada medicina personalizada ou de precisão. Há ainda os testes de farmacogenética, em que determinados remédios serão receitados de acordo com o perfil genético e metabolismo dos pacientes, evitando-se assim os temidos efeitos colaterais e possibilitando antecipar respostas do organismo, ferramenta já usada também com alguns medicamentos psiquiátricos.

E os avanços não param por aí. Na área de doenças raras, por exemplo, é possível realizar testes de DNA para mais de 2.000 doenças e identificar possíveis riscos de questões genéticas hereditárias, o que é fundamental para diagnóstico diferencial de doenças clinicamente semelhantes, para a prevenção e aconselhamento genético de casais (para identificar se eles são portadores de genes deletérios e evitar o risco de os filhos serem afetados) e também para futuros tratamentos.

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Judeus asquenazes, Eduarda* e Marcelo* já eram pais de Larissa quando decidiram fazer um painel genético nos Estados Unidos para detectar determinadas doenças associadas ao grupo populacional judaico – entre elas, um tipo de deficiência auditiva congênita, que pode levar à surdez. O primeiro teste não demonstrou riscos para as doenças que o casal estava mais preocupado. Eles tiveram o segundo filho e, meses depois, souberam que os testes passaram por um tipo de “recall” (variantes que ainda não haviam sido reportadas foram incluídas nos resultados). “Com isso, soubemos que eu e meu marido juntos passamos a ter um risco de 25% de termos filhos surdos”, conta Eduarda. Nessa altura, já eram pais de duas crianças e, por acidente, engravidaram da terceira sem fazer uma fertilização in vitro para evitar que o bebê herdasse o problema. Foi nesse momento que a médica geneticista orientou que o casal fizesse os testes nos filhos para saber se elas carregavam essa mutação associada à surdez. Assim, seria possível fazer as intervenções o mais precocemente possível.

“Fizemos o teste e descobrimos que nossos três filhos herdaram as variantes patológicas associadas à surdez. De início, o susto foi muito grande, mas a médica nos tranquilizou dizendo que existem diferentes graus e, aparentemente, o grau deles é leve. Nossa filha mais velha já vai iniciar uma adaptação com aparelho auditivo. Quanto mais cedo ela se adaptar, melhor o cérebro responde”, disse Eduarda, que agradece à oportunidade de poder realizar um exame desse tipo.

Por outro lado, dentro do universo cada vez maior de testes genéticos, existem aqueles que vão identificar doenças de desenvolvimento tardio ou ainda sem tratamento conhecido pela ciência – como a doença de Huntington (uma doença rara neurodegenerativa, progressiva e irreversível, que se manifesta por volta dos 50 anos). “A indicação de teste genético deve avaliar caso a caso. Deve entrar dentro de uma rotina de investigação que incluiu a avaliação clínica, a vida pessoal do paciente, o histórico familiar, a realização de exames físicos, exames complementares e, se necessário, o exame genético para confirmar a suspeita de diagnóstico. Não podemos sair fazendo testes de DNA sem a pessoa receber minimamente um aconselhamento genético sobre casos que não poderemos oferecer nada, caso a doença apareça”, alertou a médica geneticista Dafne Horovitz.

Banalização dos exames de DNA?

Apesar de todos os avanços e da facilidade de acesso, do ponto de vista ético a dúvida é: será que as pessoas que se submetem a esses testes sabem o que exatamente está sendo testado? Será que elas estão sendo acompanhadas por um especialista que saberá interpretar os resultados? O que significa receber um teste positivo? O que significa receber um teste negativo? Esses são questionamentos que devem ser feitos pois além de propiciar benefícios, a popularização do acesso e o uso inadequado dos testes genéticos preditivos podem resultar em abusos, especialmente porque no Brasil não há uma legislação específica sobre o tema.

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“Existem diversos testes genéticos feitos diretamente para o consumidor de forma irresponsável, por médicos não especialistas, com promessas que não podem ser cumpridas. É uma maluquice generalizada. As pessoas acreditam que os testes genéticos vão prever todos os problemas de saúde da vida dela, saem fazendo exames indiscriminadamente, e depois não sabem interpretar. Invertemos a lógica da indicação dos testes”, afirmou Dafne Horovitz.

Tecnicamente a medicina genômica avançou muito, se tornou uma tendência para a o futuro da saúde, é uma ferramenta cada vez mais acessível e importante, mas precisa ser realizada dentro de um contexto clínico e informativo, com acompanhamento médico especializado.

“Idealmente esses testes devem ser prescritos por médicos geneticistas, que são treinados para interpretar os resultados. Testes pedidos e interpretados de maneira errada podem levar a erros de diagnósticos e trazer consequências importantes. A genética ainda tem muitas incertezas e há muitas variantes de significância incerta, que ainda não sabemos se vão implicar em alguma doença ou se são alterações insignificantes. Por isso existe uma questão ética de como lidar com essa informação”, disse a médica geneticista Lavínia Schuler Faccini, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Na opinião de Raskin, o principal limitador dos avanços do acesso aos testes será justamente o fator ético: até que ponto podemos seguir sem banalizar. “Temos que saber diferenciar o que é informação individual e o que pode servir para alimentar bases de dados. Além do velho e bom termo de consentimento. O paciente precisa saber o que vai fazer e o que poderá receber”, disse.

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Dafne Horovitz, da Fiocruz, vai além e diz que é preciso melhorar também a formação médica. “Precisamos que os profissionais de saúde passem por um processo de alfabetização, de letramento em genética. As pessoas estão cada vez mais informadas e esse será o futuro”, finalizou.

Tudo começou com o Projeto Genoma

Nem sempre foi simples conseguir fazer um teste genético. Até pouquíssimo tempo atrás, o conhecimento sobre o nosso DNA ainda era limitado e realizar esse tipo de exame era praticamente impensável – tanto pelo custo quanto pelo tempo demandado e até pela pouca informação disponível. Basta lembrar que o Projeto Genoma Humano, por exemplo, foi finalizado somente em 2003, ou seja, há apenas 20 anos. Antes disso, fazer um exame genético era exceção.

O Projeto Genoma foi feito para identificar, mapear e sequenciar todos os genes do nosso genoma. Envolveu vários centros de pesquisa internacionais, levou 13 anos para ser concluído, consumiu cerca de 3 bilhões de dólares e demandou o uso de 240 mil sequenciadores genéticos. Hoje, com um investimento que varia de R$ 1 mil a R$ 10 mil reais (dependendo do exame) é possível fazer a análise completa do seu DNA.

*Nomes alterados a pedido dos entrevistados

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