Conheça a história de crianças nascidas durante a epidemia do Zika
Elas ajudam os cientistas a entender os desdobramentos de um vírus que segue sendo uma ameaça
A 67 quilômetros de distância, os bairros Inhoaíba, no extremo oeste do Rio de Janeiro, e Flamengo, na Zona Sul carioca, são separados por 16 estações de trem mais 11 paradas de metrô. Para ir de um ponto ao outro usando transporte público, leva-se cerca de duas horas. Esse foi o trajeto que Amanda Mota, 37 anos, percorreu por um bom tempo com a filha Alice, que ainda não completara 2 anos, para chegar ao Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF), unidade de atendimento materno-infantil de alta complexidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). É ali que a menina recebe parte do tratamento de que precisa.
No caminho, os sons do vai e vem de pessoas, dos anúncios nos alto-falantes e dos vendedores ambulantes disparavam convulsões em Alice. “Falavam que ela estava gritando de fome, que eu não sabia cuidar, que era uma péssima mãe”, lembra Amanda. Esgotada, certa vez levantou-se no vagão lotado e começou a contar sua história. “Não briguei nem xinguei; eu só precisava desabafar o que se passava conosco”, afirma. Mãe e filha foram afetadas pela epidemia do zika durante sua fase mais crítica, em 2016.
Imediatamente após descobrir a gravidez, Amanda passou a usar nove repelentes diariamente na tentativa de evitar a doença. Os cientistas haviam apenas começado a relacioná-la com as sequelas neurológicas em bebês de mulheres infectadas durante a gestação. O cuidado excessivo provocou uma intoxicação. Amanda, então, foi orientada a usar apenas um produto. Duas semanas depois, foi diagnosticada com zika.
No quarto mês de gravidez, a ultrassonografia indicou que o bebê tinha microcefalia, condição em que o perímetro encefálico é menor do que o considerado normal e há atrasos no desenvolvimento cerebral. “Após o parto, a obstetra colocou um pano na cabeça de Alice antes de me deixar vê-la, mas eu já sabia o que esperar”, conta Amanda. Com o passar dos anos, as vítimas do zika e da crise de saúde pública criada na época deixaram de receber atenção. Entretanto, os “filhos do zika”, como ficaram conhecidos os pequenos, já completam quatro aniversários, contrariando os prognósticos de morte precoce.
Durante a epidemia, que se aprofundou entre novembro de 2015 e maio de 2017, foi decretada emergência nacional diante das dificuldades do poder público de combater a proliferação do mosquito transmissor do vírus. Em 2016, pico das notificações, 170,5 mil pessoas foram diagnosticadas com zika, mas o número pode ser muito maior, já que, estima-se, até 70% dos infectados não apresentam sintomas típicos da doença, como dores no corpo, fadiga e erupções avermelhadas na pele. O Nordeste concentrou o maior volume de gestantes com zika. Fora da região, o Rio de Janeiro teve um dos quadros mais agudos.
Desde o fim do alerta, a quantidade de casos caiu, mas médicos e cientistas afastam a ideia de que a disseminação do vírus estaria chegando ao final. “Não avançamos o suficiente no controle dos mosquitos. A queda de infectados pode se dar porque muitas já tiveram a doença e não são mais suscetíveis. Se nada mudar, veremos surto semelhante na próxima década”, diz Pedro Vasconcelos, diretor do Instituto Evandro Chagas (IEC), sediado em Belém. Ainda não há vacina, e a principal preocupação é a ameaça da microcefalia – foram 2,7 mil confirmações só durante o período de emergência, caindo desde então. Poderia voltar a subir com um novo surto.
Entretanto, apesar de a condição ter sido o primeiro choque, ela é apenas um dos reflexos do vírus nas crianças, com novas complicações surgindo muito após o nascimento – estima-se que entre 6% e 12% dos fetos expostos ao vírus desenvolvam a microcefalia, o que não significa que o restante não terá problemas. Após acompanhar ao longo de dois anos 216 crianças que tiveram mães infectadas pelo zika, um estudo publicado em julho observou efeitos negativos no desenvolvimento neurológico de 31% delas.
A notícia positiva: duas crianças reverteram o perímetro encefálico pequeno. Isso foi possível porque, provavelmente, a cabeça delas era menor por falta de nutrientes, mas o cérebro não havia sido afetado. “Todos os nascidos nesse período deveriam receber atenção especial até a idade escolar. Já percebemos atrasos de linguagem, que podem gerar perdas cognitivas se não houver acompanhamento”, explica Maria Elisabeth Moreira, coordenadora de pesquisa do IFF e uma das autoras do estudo.
Sem contar com apoio, mães se devotam a garantir a sobrevida dos filhos. Depois do nascimento, Alice desenvolveu hidrocefalia, quando há acúmulo de líquido no cérebro. Além disso, precisa usar uma sonda para se alimentar e evitar engasgos. Mas o principal revés de sua frágil saúde são as convulsões decorrentes da epilepsia. Para contornar o quadro, chegou a tomar uma combinação de seis anticonvulsivantes, o que reduziu as crises a cerca de 50 por dia – sem o coquetel, seriam incontáveis.
“Quando ela saía da crise, ficava dopada. E a preocupação era que os remédios afetassem o funcionamento dos órgãos”, diz Amanda. A cada convulsão, o lento desenvolvimento é retardado, dificultando ações simples, como manter o pescoço ereto ou se sentar.
A esperança veio de um medicamento que tem entre seus príncipios ativos o canabidiol, extraído da Cannabis sativa (a planta da maconha), que ainda suscita debates no Congresso sobre a legalidade do uso medicinal. Com o laudo médico da neurologista de Alice e o aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a importação, Amanda acionou a Defensoria Pública do Rio de Janeiro pedindo recursos públicos para a compra.
No intervalo de dois anos que o dinheiro demorou a chegar, usou o óleo artesanal, produzido pela Associação Brasileira para Cannabis (ABRACannabis), que luta pela legalização do uso medicinal da erva. Com isso, as convulsões caíram para dez por dia. “Sei que Alice não vai ter tanta longevidade, mas, enquanto eu puder garantir qualidade de vida a ela, vou buscar todas as alternativas. Eu já tive que enterrar uma filha; por isso faço de tudo para salvá-la”, afirma Amanda, que conta sua história com um sorriso no rosto.
No dia do seu aniversário de 21 anos, ela viu a primogênita, Letícia, morrer com apenas 1 ano, 28 dias após ser internada com o que se acreditava inicialmente ser uma infecção na garganta. “Quando o primeiro exame indicou a suspeita de leucemia, depois confirmada, eu ouvi a médica de plantão dizer ao telefone: ‘Prepara a UTI; tem uma criança morrendo’ ”, relata sobre a madrugada em que começou a dar adeus à filha. Foi o início de uma curta e sofrida batalha, encerrada após ela autorizar que desligassem a adrenalina que mantinha a filha viva.
“Até hoje sinto muita culpa por não ter tentado mais, mas ela estava tão frágil. Havia sofrido diversas ressuscitações, que fizeram suas costelas se quebrarem”, conta. Quase três anos depois, deu à luz Laysa, hoje com 13 anos, que recebeu com empolgação a chegada de Alice. “Antes, ela vivia numa redoma, fazia patinação, ginástica artística e natação, mas precisou parar para que eu desse conta das necessidades de Alice. Sou grata a ela, que é uma adolescente e já lida com muita coisa envolvendo a irmã”, diz Amanda. A carioca teve que fechar o negócio de festas que tinha para se dedicar à rotina de cuidados.
Para as mães nessa situação, boa parte da vida se passa dentro de hospitais. Mãe de Dimitri, 4 anos, Vanessa Caldas, 36, corre para o pronto-socorro com o filho rotineiramente. Assim, é quase impossível fazer planos – num dia de outubro, quando iria receber a reportagem em seu apartamento, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, o menino sofreu mais uma infecção no trato urinário. Ele tem bexiga disfuncional, mais um dos reflexos de ter nascido com microcefalia, e faz terapias (ocupacional e com fonoaudiólogo) cinco dias por semana, parte delas na rede pública e parte bancada pela família.
Nos primeiros anos, antes de o menino se alimentar por sonda, Vanessa era responsável por todas as refeições dele e não podia se ausentar nem por poucas horas. “A sensação de que ele poderia morrer a qualquer momento me apavorava”, conta Vanessa. Mesmo compromissos geralmente simples exigem cuidados e rotinas especiais – as calçadas não são adaptadas para cadeiras de rodas, o que torna praticamente impossível a ida a uma creche a poucos metros de distância, por exemplo.
“É muito difícil engolir que seu filho deveria ter nascido saudável e que isso não aconteceu por um desleixo sanitário do poder público. E a maior dificuldade não está em todas as necessidades das nossas crianças, mas em esbarrar em tanta falta de acesso à saúde, tratamentos de reabilitação e medicamentos”, diz Vanessa, que reconhece o privilégio em poder arcar com os cuidados e em contar com a participação do marido, Shenandoa Caldas, 37 anos – algo inexistente para muitas mães.
Para famílias com renda de até um quarto de salário mínimo por pessoa (o que corresponde a magros 249,50 reais), o Benefício de Prestação Continuada (BPC) é o recurso que elas têm para cuidar da criança com deficiência. A questão é que, se há aumento de renda, a família perde o direito ao benefício. De modo a ressarcir crianças nascidas entre 2015 e 2018 que tiveram microcefalia decorrente do zika, o governo federal assinou a Medida Provisória 894, que o Congresso analisa se se tornará lei. O texto inicial prevê que as famílias que já recebem o BPC, e apenas elas, teriam direito a uma pensão vitalícia, mas isso as impediria de exigir outras reparações do Estado.
Muitas vezes, o benefício é a única fonte de renda de mulheres que, desamparadas, precisam abandonar o trabalho para se dedicar à criança. “Com o auxílio, eu conseguia pagar o aluguel e a feira. Então podia me preocupar só com o tratamento da minha filha”, conta Marcione Rocha, 33 anos, mãe de Pérola, que também nasceu com microcefalia. De Betânia, município com cerca de 12 mil habitantes no sertão de Pernambuco, ela percorria 400 quilômetros e se hospedava na casa de amigas em Recife para levar a filha aos médicos e terapias. Com a rotina puxada, tinha de deixar os outros dois filhos, Clara, 14, e Enzo, 10 anos, com os avós.
Depois do nascimento de Emanuel, 2 anos, mudou-se de vez para a capital pernambucana – separou-se do pai das crianças, que ficou em Betânia. Neste ano, conseguiu matricular Pérola em uma creche. Por iniciativa da gestora, obteve transporte para levar e buscar a menina nos horários que ela precisa. Isso foi possível porque Pérola não apresenta um quadro que a impede de comer pela boca nem convulsões constantes. Apesar das conquistas, o dia a dia continua sendo pesado para Marcione cuidar dos quatro filhos sozinha. “Enfrentei uma depressão, pois ficava arrasada quando não podia dar conta de tudo, me cobrava e culpava a todos ao meu redor”, conta. Recuperada, organizou-se para ter um trabalho flexível como consultora de vendas de uma rede de cosméticos em que gere vendedoras em Recife e no sertão.
Piora o acúmulo de funções das mulheres vitimadas pelo zika o abandono por seus companheiros, frequente após o nascimento das crianças. Com tanta sobrecarga, torna-se difícil até cuidar da própria saúde. “O zika reflete o histórico de precarização e de desigualdade enfrentado por muitas mulheres, que vai além das questões de saúde física. Para elas, a epidemia nunca acabou”, diz Luciana Brito, psicóloga do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis).
Depois de um mês do nascimento de Juan Pedro, hoje com 4 anos, o marido de Daniele Santos disse não aguentar a irritação e o constante choro do filho. Partiu. Contamos em CLAUDIA a história de Daniele e Juan quando ele ainda era um bebê de menos de 6 meses. “Senti uma mistura de alegria pelo nascimento com medo do que viria”, contou ela à reportagem na época.
Em agosto passado, Daniele morreu, aos 32 anos, vítima de câncer de colo de útero, diagnosticado já em estágio avançado em novembro de 2018. Nos últimos meses, perdeu muito peso, precisou de cadeira de rodas e bolsa de colostomia. “Ela lutou muito, como durante toda a vida, mas já sabia que não resistiria”, diz a mãe de Daniele, Jacinete de Araújo, 51 anos, que morava com ela no bairro Apipucos, na periferia de Recife.
Antes de morrer, Daniele fez a mãe prometer que não deixaria de cuidar de Juan até o fim da vida dele. O menino tem uma madrinha, Áurea Negromonte Arraes, 42 anos, amiga de longa data de Daniele, que paga o plano de saúde do garoto e o leva às terapias enquanto a avó dele trabalha como auxiliar de limpeza. “Eu me preparei para perder o bebê, mas nunca a mãe. Tentamos cuidar dele como ela faria”, diz Áurea. Além delas, há uma rede de mulheres – vizinhas, parentes e a própria irmã de Juan, Karine, 14 anos – que se revezam no dia a dia. Com a ausência do pai de Juan, Jacinete tenta obter o BPC, suspenso desde a morte de Daniele.
Corrida por respostas
Nas investigações sobre os impactos neurológicos do zika, os pesquisadores brasileiros foram pioneiros. E, conforme os pequenos crescem, surgem novas suspeitas a ser minuciosamente investigadas. Uma possível associação entre o zika e doenças como Alzheimer, autismo, esclerose lateral amiotrófica, esquizofrenia e Parkinson foi observada por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) por meio da infecção do vírus em células-tronco humanas em laboratório.
“Capaz de infectar células do sistema neural, o zika afetou mais de 7 mil genes em nosso modelo, indicando consequências que começam a ser notadas na população”, explica o professor Walter Beys da Silva, da Faculdade de Farmácia da UFRGS. Agora, o grupo dele estuda em profundidade a relação entre o zika e o autismo.
Uma das principais suspeitas dos cientistas é que o transtorno comportamental em algumas crianças tenha sido desencadeado pela infecção. Em testes com camundongos, pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) simularam os efeitos do zika ao longo da vida, constatando consequências neurológicas e distúrbios comportamentais, como esquizofrenia e autismo. “Notamos que o vírus continua circulando no cérebro, o que pode ocasionar muitos prejuízos a longo prazo”, diz a professora Julia Clarke, da Faculdade de Farmácia da UFRJ.
Ainda é cedo para afirmar que certos casos de autismo são mais uma cicatriz da epidemia, mas, enquanto a hipótese se fortalece no meio científico, entre as mães que tiveram zika essa seria uma explicação lógica para diagnósticos que suas crianças começam a receber.
Ao voltar para casa após um dia de trabalho, Carolina Magalhães, 34 anos, abriu a porta do seu apartamento na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, chamando pela filha, Maria Eduarda, então com 1 ano e meio. A menina assistia TV e, como se não ouvisse os chamados da mãe, continuou impassível olhando para a tela. O episódio foi definitivo para Carolina buscar ajuda, desconfiando do comportamento da filha. Descartadas outras hipóteses, veio o diagnóstico do transtorno de espectro autista.
“No início, eu sentia que tinham tirado meu bebê de mim e me entregado uma criança autista. Depois, percebi que estava sendo egoísta”, conta. Aos 3 anos, Duda ainda não fala, apesar de ser alegre e carinhosa. Na família, não há outras pessoas com o diagnóstico, mesmo entre parentes distantes. Durante a gestação, Carolina apresentou sintomas condizentes com o zika, mas, no nascimento, acreditou ter passado incólume aos maiores danos do surto.
“É angustiante não saber as causas e imaginar que pode ter sido um vírus, algo que deveria estar controlado”, diz. As dúvidas pairam sobre as famílias e os cientistas. Durante a epidemia, os ministérios da Saúde e o da Ciência se uniram às agências de fomento à pesquisa para destinar recursos para financiar estudos sobre a doença. Mas, neste ano, novos avanços viram-se ameaçados por contingenciamentos nos repasses à ciência, sobretudo referentes aos pagamentos de bolsas a pesquisadores. “Os resultados que a ciência brasileira produziu sobre o zika, com avanços rápidos, não teriam existido sem investimento”, afirma Walter. Sem os retornos que só a ciência pode dar, as famílias seguirão sem respostas.