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“Quem mata é Deus. A gente só faz o furo”, diz subtenente do BOPE

Em visita ao Batalhão de Operações Especiais do Rio de Janeiro, a coordenadora do Prêmio Claudia, Giuliana Bergamo, conversou sobre o dia a dia da corporação e ouviu algumas histórias vivenciadas por um subtenente do batalhão.

Por Giuliana Bergamo (colaboradora)
Atualizado em 12 abr 2024, 14h12 - Publicado em 29 jul 2016, 07h44
Giuliana Bergamo
Giuliana Bergamo (/)
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Manhã ensolarada na Zona Sul do Rio de Janeiro tem sempre aquele ar Manoel Carlos. Eu pisco e tenho a sensação de que a Alinne Moraes vai passar por mim de cadeira de rodas (perdão, eu sei que estou meio por fora no quesito novela). Aquele dia 10 de maio também começara assim para mim. Num Uber, fui do hotel em que estava hospedada, no centro, até Laranjeiras, admirando o mar, as montanhas, as ruelas de paralelepípedos, as casinhas antigas com paredes bem pintadas, as crianças brincando na calçada… Até que a direção passou subitamente das mãos de Maneco para as de José Padilha. E eu estava diante da portaria da sede do Batalhão de Operações Especiais, o Bope. Um lugar, digamos, singular. O objetivo da minha viagem à capital fluminense não era encontrar qualquer ator global. Nem mesmo o Wagner Moura. E eu estava lá para entrevistar a fonoaudióloga Mônica Azzariti, que dá treinamentos de comunicação não violenta para os militares e é uma das candidatas pela categoria Trabalho Social do Prêmio CLAUDIA

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Assim que o Uber X vermelho (sou incapaz de reconhecer carros pelo modelo, me deixa!) embicou na rampinha de pedras que dá acesso à sede do batalhão mais famoso do Brasil, avistei os soldados com roupa camuflada, boinas nas cabeças e fuzis nas mãos. Pedi que o motorista encostasse e baixamos os vidros. “Vim falar com a professora Mônica”, anunciei ao guarda que, contrariando o clima da cena toda, era até gentil. Enquanto ele avisava o colega, que, por sua vez, comunicava nossa chegada a alguém no alto do moro que estávamos prestes a subir, tomei um susto. Em um jipe, outros policiais também camuflados gritavam para os colegas-porteiros: “Caveira!”, o tradicional cumprimento do Bope. Por um instante achei que os caras estivessem de sacanagem, só querendo assustar os visitantes. Mas parece que a rotina é essa, mesmo. 

Giuliana Bergamo
Giuliana Bergamo ()

Entrada autorizada, subimos, ainda no Uber, a rampa, que é circundada por muitas árvores. A via leva ao edifício planejado originalmente para abrigar um hotel-cassino, no local onde hoje fica a pacificadíssima comunidade Tavares Bastos. Com a proibição dos jogos, a construção foi interrompida e ficou anos abandonada. Em 2000, o batalhão mudou-se para lá. O Bope tem, portanto, uma das vistas mais privilegiadas do Rio de Janeiro. Para se ter uma ideia, a grande sala onde ficam os aparelhos de musculação, um enorme tatame para treino de lutas e um painel com a faca na caveira, tem  dois paredões de vidro que dão para o mar. Do heliponto, dá para ver o Cristo, a Baía de Guanabara, o Pão de Açúcar e o aeroporto Santos Dumont. A base da tropa tem ainda churrasqueira e uma espécie de deck onde eu fantasiei uma grande festa, com noite estrelada, música boa, gente animada y otras cositas más. “Algumas pessoas já tiveram essa ideia, mas não pode”, avisou a oficial que me conduziu por uma visita guiada. 

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Giuliana Bergamo
Giuliana Bergamo ()

Feito o reconhecimento de terreno e a entrevista com a finalista, bati um papo com o subtenente V.P.C. (os policiais do Rio preferem não ser identificados), um homem negro, forte e simpático, que porta 95 quilos distribuídos em seu 1,88 metros. Há doze dos seus 43 anos de vida ele trabalha no Bope. É separado da mulher com quem tem dois filhos adolescentes, uma menina e um menino. Em um sofá de couro preto, com vista para o Atlântico, V. concedeu a seguinte entrevista:

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Eu soube que o senhor terminou uma operação de uma forma muito inusitada, é verdade?
Sim, foi uma negociação com a esposa de um policial. Ela não aceitava a separação. Então pegou a arma dele, ameaçou o pessoal na rua e depois entrou em casa dizendo que ia tirar a própria vida. 

E o marido, onde estava?
Estava fora de casa e tentamos deixá-lo longe da cena, ao contrário do que ela queria. Eu observei bem o semblante dele e vi que não estava nem aí para a mulher, a ponto de quase gargalhar. Ele estava pouco se lixando e disse: “Se vocês quiserem que eu vá lá para acabar com isso, eu vou”. A verdade é que ele queria que a gente invadisse a casa e ela se matasse para acabar com o problema dele. Percebi que a gente ia precisar tratar aquele caso de outro jeito, que ia levar mais tempo. 

O senhor pode descrever a cena em detalhes?
Do portão eu comecei a conversar com a mulher. Tinha um cão pastor alemão que ficava latindo no meu ouvido. Para ter certeza de que ela estava me ouvindo, pedi que acendesse e apagasse a luz. Ela obedeceu, mas a conversa era unilateral, só eu falava. Ela só falou no começo. Disse que não queria papo comigo, que queria o marido para acabar com aquela “palhaçada”. 

O que você dizia para ela?
Puxa… Foram horas de negociação, das 11h às 17h30. Eu falei que a vida continuava apesar da separação e que aquela não era a melhor forma de resolver. Disse que, se ela entregasse a arma para mim, poderia sentar com o marido para conversar. Falei de religião, porque vi de fora que a casa tinha um monte de símbolos de candomblé. Até que ela ficou em silêncio total. Aquilo me deixou mais nervoso. Eu já tinha falado por tanto tempo, que o cachorro parou de latir. Então, dei a mão para ele, por dentro do portão, e o puxei pela guia. Era um empecilho a menos. Fui subindo em direção à janela, com medo de que ela estivesse com a arma apontada para mim. Continuei falando com ela. Com uma lanterna, iluminei o interior da casa. Como não vi movimento algum, dei sinal para o time tático. Eles, então, abriram a porta, entraram e… viram a mulher dormindo abraçada na arma! Ela pegou no sono!

Qual foi a pior operação da qual você já participou?
Ah… Tem várias. Bom… tem uma que está no filme Tropa de Elite. Há muito tempo atrás, teve uma guerra no morro do Alemão, os traficantes colocaram um carro atrás de um trilho de trem. Eles fazem isso, cavam o chão e colocam um trilho de trem na vertical, para bloquear a nossa passagem. Durante uma troca de tiros, a gente tinha que passar, mas havia um trilho no meio do caminho. Eu desci, pedi a Deus para eles errarem o tiro e fui lá, com mais um policial, tirar a barreira. Conseguimos remover o trilho, mas o carro, não. Aí o sargento falou: “Passa por cima”. A gente já desce pensando o pior, mas a adrenalina faz cada coisa… Isso fica marcado para sempre. É maneiro. 

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Qual a proteção que vocês usam?
Só o colete à prova de balas e Deus.

Não tem capacete para essas situações?
Teve uma época em que usamos o capacete, mas para o nosso serviço atrapalha. A gente perde muita visibilidade e mobilidade. A gente as vezes tem que pular muro, por exemplo, e até o colete atrapalha. Aqui é uma guerra urbana, mas, de uma hora para outra, ela vira uma guerra rural porque você cai para dentro do mato. E, quanto mais pesado você estiver, pior.  

E essa foi sua pior operação?
Não… A pior operação é quando a gente perde um companheiro. Você volta da operação com um vazio.

E isso já aconteceu muitas vezes?
Sexta-feira passada. 

Você estava na operação?
Eu não estava com eles, mas estava de serviço. Meus colegas foram fazer um recon (operação de reconhecimento) e foram abordados no meio da rua, na pista. Se eles deixassem os vagabundos chegarem muito perto deles, os vagabundos iam metralhar… E foi o que aconteceu. Balearam três e um, infelizmente, veio a falecer. 

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Mas você já participou de uma operação em que um colega morreu?
Sim… Foi naquela época das manifestações, ali na Maré. O policial estava até sob meu comando. Ele era meu amigo pessoal, eu frequentava a casa dele: Sargento J. dos Santos. Ele foi baleado e caiu na minha frente. Eu o arrastei e o trouxe de volta para o beco. A gente tem que ser frio nessa hora. E eu estava com muitos policiais novos, tinha que manter a calma porque bate aquele desespero. Falei: “Calma, porque o colega, aqui, já era. Para ninguém ficar igual a ele, vamos fazer o que aprendemos.” Aí a gente põe o choro de lado, deixa para depois.

Dá vontade de chorar na hora?
Na hora, não. Não dá tempo. É tudo muito rápido. É o instinto de sobrevivência, mesmo. Você quer sobreviver. 

Dá raiva?
Dá bastante. A gente é ser humano, né? Ainda mais pensando assim… Você faz tanto e é muito pouco reconhecido. Muito pouco, mesmo. Não que a gente faça por reconhecimento. Costumamos dizer que somos todos heróis anônimos. Eu não gosto de aparecer em foto, filmagem, no meu whatsapp, não tem nada… Eu sou “bopeano” para mim, eu sou caveira para mim. Eu não faço pela sociedade. Eu faço pelo meu colega, que está ao meu lado. A gente faz pela gente. É mais ou menos isso. A gente sabe do risco que a gente corre. A gente sabe que a próxima pode ser a nossa vez. Você pode perguntar de mim numa próxima vez e… A minha mãe não assiste mais ao telejornal. Na sexta-feira passada, por exemplo, ela sabia que eu estava de serviço. Então, assim que pude, mandei um whatsapp para avisá-la que estava bem. 

E os seus filhos, assistem ao telejornal?
Sim. Meu filho esses dias veio tirar serviço aqui comigo e se amarrou. Ele gosta. Era um sábado. Ficamos aqui, fomos para a praia, corremos. Depois, eu montei uma instrução para ele porque ele sempre gosta de jogar jogo de tiro e eu tento tirar essa ideia de violência, não deixo, por exemplo que jogue GTA, um game em que o jogador vai matando as pessoas, vai roubando carros… Eu não acho isso legal. 

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Você deixa que eles mexam com sua arma?
Antigamente eu escondia, mas a filha de um colega mexeu, se autobaleou, a garotinha morreu, a mãe estava grávida e perdeu o neném, o pai ficou maluco… Depois daquilo, eu falei: “Não posso esconder dos meus filhos”. Eu percebia a curiosidade deles. Um belo dia, a minha filha tinha uns 7 ou 8 anos e meu filho, 4, eu cheguei em casa e falei: “Sentem aí vocês dois. Vocês sabem o que eu sou? O papai é policial. Não é para falar para qualquer um isso, mas eu tenho uma coisa para explicar. A arma do gari é a vassoura, a arma do pedreiro é a pá e a arma do policial é a arma e arma, mesmo. Eu não vou mais esconder a arma de vocês. Se vocês quiserem mexer, está aqui”. Aí eles manusearam, viram que era pesada e eu comecei a deixar a arma, sem munição, ao alcance deles, para que passasse a ser uma coisa tão normal que não causasse mais curiosidade. 

E hoje em dia, eles têm curiosidade sobre o seu trabalho? 
Já tiveram mais. Faziam perguntas de criança. Tipo: “Pai, você já matou gente?”

E você já matou gente?
Não. Quem mata é Deus. A gente só faz o furo. 

E você já fez o furo?
Já, já. A gente faz… Eu não vou dizer que seja com prazer, ou que eu fale isso com orgulho de ter feito, mas alguém tem que fazer. Se a gente entrasse na favela e os caras entregassem a arma, ia ser show de bola. Mas a gente é recebido com extrema violência do outro lado. Corre sangue, você fica com raiva, você as vezes é intempestivo. Antigamente eu era mais. Hoje eu sou mais moderado.

Você já se arrependeu de ter atirado?
Não. Eu só atiro naquilo que eu vejo. Se eu vir a arma, se eu vir que é um risco iminente para mim e para a minha patrulha, eu vou atirar.

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O que você sente depois de matar alguém?
Sério?

Sim, sério.
Nada. 

Nada? Alguém é capaz de não sentir nada, mesmo?
Sim. Entra no automático. O primeiro cara que eu troquei tiro, no início, eu sonhava com o rosto dele. Depois… Ele vai entrando para traz da fila. 

Toda vez que vocês estão em serviço morre alguém?
Nem sempre. 

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