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Por que ficar feliz com o romance de Fernanda Gentil

Algo lindo, ou tão normal que nem é notícia, ou sinal de que o mundo está perdido? Nossa editora Liliane Prata está no time dos que acham bonito e explica por quê

Por Liliane Prata
Atualizado em 28 out 2016, 10h07 - Publicado em 30 set 2016, 14h45
Reprodução/Instagram
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A apresentadora Fernanda Gentil, separada há alguns meses do marido, com quem tem um filho de um ano, anunciou hoje que está com outra mulher. Rapidamente, choveram comentários nas redes sociais sobre o assunto. Enquanto alguns comemoravam o romance, outros lamentavam. O que há de bonito em uma mulher revelar ao mundo que está com outra mulher, afinal? Para mim, há muita coisa.

Há de bonito nisso o mesmo que há de bonito na luta do frágil Davi contra o aparentemente invencível Golias; há de bonito o mesmo que há quando você passa na Marginal Pinheiros, em São Paulo, e vê árvores e ciclovias lutando para sobreviver em meio ao entorno cinzento; há de bonito o mesmo que há dentro de nós quando esbarramos em algumas partes que não correspondem ao que a tal da sociedade entende como normal e, em vez de nos refugiarmos no nosso medo, escancaramos nosso peito para viver aquilo.

“O mundo está mesmo perdido”, alguns escreveram. Não sabemos tão claramente o rumo que a humanidade está tomando, ainda não acabou o mundo –  enquanto se está vivo, martelo algum pode ser batido. Mas, para os que já decidiram que o mundo está perdido: o que a beleza de um romance consentido pelas duas pessoas que o vivenciam pode ter a ver com isso?

Leio em um comentário: “Dizem ‘Que bonito as duas juntas’ e eu não entendo, bonito por quê? Por que ficam querendo enfiar goela abaixo dos outros que duas pessoas do mesmo sexo juntas é bonito? Não entendo!!!!”. Deve ser mesmo difícil entender para os que se acostumaram a olhar a paisagem pela ótica das exclamações enfileiradas, nervosas. Na foto da reportagem, me comovi com o sorriso de Fernanda e a namorada – sorrisos abertos, visivelmente verdadeiros em meio a tantos dentes forçados que a gente vê no nosso feed. Talvez as exclamações exasperadas nublem a beleza, a delicadeza daqueles sorrisos; talvez só consigam enxergar as regras, as proibições, as tradições que se arrastam empoeiradas não por fazerem sentido, mas por substituírem o trabalho de pensar e a abertura de sentir.

Em uma das minhas peças de teatro preferidas, A Alma Imoral, a excelente atriz Clarice Niskier conta, no palco, a parábola judaica sobre o rabino Súcia. Sofrendo à beira da morte, Súcia confessa a uma discípula que está com medo do encontro com Deus. Ela pergunta do que ele tem medo, afinal, já que teve uma vida tão exemplar. Súcia responde: “Eu não temo que Deus me pergunte por que não fui como Moisés, que abriu o mar, pois, se Deus me perguntar isso, já sei o que vou responder: vou falar que não fui como Moisés porque não sou Moisés. Da mesma forma, o meu medo não é que Deus me pergunte por que não fui sábio como Salomão, pois nesse caso irei responder: não fui como Salomão porque não sou Salomão. O meu medo é que Deus olhe para mim e me pergunte: ‘Súcia, por que você não foi Súcia?”.

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Tornarmos quem nós somos é uma incumbência existencial das mais difíceis, para quem – não são todos – se dispõe a abraçá-la. Muitos passam a vida se entupindo de ansiolíticos, esfregando fervorosamente o rejunte dos azulejos do banheiro, varrendo o chão sem parar e admirar o céu, olhando fixamente planilhas complicadas sem conseguir jamais olhar para si mesmos.  

Há romances difíceis de serem assumidos – difíceis porque vão contra o que “as pessoas” esperam, porque se chocam de frente contra o que “as pessoas” dizem que os filhos precisam aprender, porque abalam o que “as pessoas” foram ensinadas a pensar. Quem assume um romance difícil de ser assumido está gritando para todos nós que, apesar das incertezas e das dores, consegue se bancar sendo quem é. Quem assume um romance difícil de ser assumido está inspirando todos nós a sermos sãos na nossa pele, a não sofrermos da patológica normose, a necessidade de querer ser “normal” mesmo quando o tal do “normal” é um corpo estranho que atenta contra a sobrevivência do nosso próprio ser.  

O mundo não acabou, longe disso: o mundo está em pleno movimento, abrindo-se cada vez mais para quem tem a coragem de se encontrar em si mesmo, assumindo-se não como uma idealização, mas como a pessoa que é. Esse encontro honesto com quem nós somos não pode ser apedrejado na rua, esse encontro tem mais é que ser festejado nos jornais e na internet. O fim do mundo jamais será causado pelos amores assumidos, pelo contrário: o fim do mundo é a falta de amor.

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