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“Parei de tomar antidepressivo para me curar”

Nossa editora e colunista Liliane Prata conta sua experiência e pergunta: se os remédios só atenuam os sintomas da depressão, onde está a cura?

Por Liliane Prata
Atualizado em 11 abr 2024, 17h53 - Publicado em 18 nov 2015, 18h26
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Amiga, vê se você consegue me ajudar… Meu psiquiatra saiu de férias, volta semana que vem, e a minha cartela de Rivotril vai acabar antes disso. Você tem como me dar uns comprimidos da sua?
– Pode deixar, amanhã eu trago!
– Ufa… É que dei alguns para a minha filha, sabe? Ela está tão nervosa com as provas… Daí a minha cartela vai acabar antes.
        Ouvi esse diálogo na academia. Alguns dias antes, o aniversário de uma amiguinha da minha filha havia me marcado pelo mesmo motivo: a naturalidade de uma conversa sobre Rivotril, medicamento tarja preta, originalmente concebido para quem sofria convulsões e que acabou se popularizando por baixar a ansiedade e “relaxar”. Na festa, uma mãe ficou impressionada com o fato de eu dar conta de “tudo” sem tomar “nada”. Agora, entre uma série e outra de exercícios, eu me deparava novamente com um papo tranquilo sobre o tal Rivotril. E me lembrava da época em que eu não dei conta de “tudo” sem tomar “nada”. E de quando, no consultório, achei estranhíssima a reação do médico quando eu quis prosseguir a minha vida sem o medicamento.       
          Foi assim: até aquele ano, nos momentos difíceis, eu me virava com medicamentos fitoterápicos, acupuntura, sessões de terapia – foram duas temporadas não consecutivas de um ano cada. Mas aí veio uma fase realmente difícil. Eu não queria tomar remédio alopático, e só bati na porta de um psiquiatra quando eu, que sempre dormi bem, simplesmente parei de conseguir dormir.
          A privação de sono mudou completamente meu comportamento durante o dia – fiquei nervosa, irritada. No primeiro objeto que atirei contra a parede (primeiro e último da minha vida, eu e meu marido esperamos), me consultei com o psiquiatra de uma amiga. Ele me disse que a medicina trata a insônia não como uma causa, mas como um sintoma, e que, de acordo com meus relatos (foi uma consulta longa e ele também era psicólogo), eu estava deprimida e era essa a causa da minha falta de sono. Era bem assim que eu me sentia, mesmo: deprimida havia meses. Assim, ele me receitou um calmante tarja preta de que não me lembro o nome, mas que não era Rivotril, e o Lexapro, um antidepressivo. Acabei não tomando o ansiolítico, porque já no primeiro comprimido passei muito mal (foi uma noite memorável), mas o outro remédio realmente melhorou meu sono e então continuei tomando diariamente, direitinho. E odiando aquilo. Quer dizer, eu estava precisando do remédio para dormir, é verdade, mas queria que ele fosse meu ajudante em uma fase, e não meu companheiro de vida. Ao contrário das mulheres da academia e a da festinha de aniversário, eu era uma usuária bem mal resolvida e evitava falar sobre isso por aí.
          Bom, aproveitei aqueles dias pós noites bem-dormidas para tentar resolver as causas da minha insônia, já que, afinal, ela era um sintoma. Na minha oitava ou nona consulta mensal com o psiquiatra, cheguei ao consultório dizendo que eu queria deixar o medicamento: eu estava me considerando bem-sucedida em toda uma jornada pessoal que, digamos, me devolveu as rédeas da minha vida e, se não mudou muito as circunstâncias que eu atravessava na época, mudou a maneira como eu as enxergava. Pois bem. Contei isso a ele esperando, confesso, um tapinha nas costas. Porém, ele respondeu:
          – Eu não acho que você deve largar a medicação. Você claramente tem uma tendência depressiva.
          – Bom, todos temos, vai.
          – Não é bem assim, Liliane. Depressão é uma doença. Você teve TOC por anos, que é um transtorno de ansiedade. Quando era adolescente, ficou atravessando de madrugada uma avenida movimentada de olhos fechados, para ver se era atropelada. Quando seu casamento acabou, você ficou uma semana sem tomar banho. Você mesma me contou essas coisas.          
          – Foram períodos ruins, que foram superados. Aprendi com eles.
          – E para que correr o risco de ter um período assim de novo? Você está respondendo muito bem à medicação. Não teve nenhum efeito colateral muito significativo.
          Não era verdade: minha criatividade diminuiu e, claro, minha libido (razão pela qual abandonei a pílula anticoncepcional, aliás: é incrível o número de mulheres que conheço que só depois de anos tomando pílula perceberam que isso deixava a vida entre os lençóis muito menos divertida). Falei isso, mas ele estava irredutível:
           – Se você parar de tomar, é por sua conta e risco – finalizou, em tom quase ameaçador.
            – Espera. É perigoso eu ser eu, sem remédio? Qual é o plano, vou tomar isso o resto da vida?
            – Mas por que essa resistência a tomar um remédio pelo resto da vida, Liliane? Se você fosse diabética, não tomaria? Os soropositivos não tomam? Assim com os que sofrem de disfunções na tireoide, os que têm pressão alta…
            – Sei lá… Depressão é diferente… Seja tristeza, seja ansiedade, eu sinto que preciso lidar com isso sozinha. É uma caminhada minha.
            – Mas o remédio vai facilitar sua caminhada, não substituí-la. Qual é o problema? Se você não tomar o remédio, como vai atravessar seu próximo período difícil? Já pensou se acaba usando drogas ou se começa a beber além da conta, como tanta gente que não toma remédio faz? Não é melhor viver com o remédio?
            – (Rindo) Eu acredito que consigo viver sem drogas ou sem virar alcoólatra também.
           – Isso não é brincadeira. É muito sério. Veja o caso dos esquizofrênicos. Tive um paciente esquizofrênico que tentou matar a própria mãe. Já pensou se ele chega aqui alegando que, por um capricho, não quer mais tomar o remédio?
            Bem, eu não sabia quanto ao esquizofrênico. Mas eu não era esquizofrênica. E achei estranhíssimo um médico duvidar da minha capacidade de viver sem me drogar, seja com substâncias lícitas ou ilícitas. Dependendo da sua taxa de colesterol, o médico pode orientar o paciente a fazer exercícios físicos ou mudanças na alimentação antes de partir para a medicação. Mas depressão era assim, necessariamente tratada com remédio e pronto, fim da discussão?                        
           (A quem interessar: não me droguei nem me tornei alcoólatra. E não só voltei a dormir como um anjo como tomei banho praticamente todos os dias desde aquele ano, 2011.)
    
           *
           Lembrei desses diálogos e desse capítulo da minha vida esta semana, lendo o livro Mulheres em Ebulição – a verdade sobre os remédios que você está tomando, o sono que está perdendo, o sexo que não está fazendo e todas as coisas que estão tirando você do sério (Sextante). A autora, uma psiquiatra americana chamada Julie Holland, começa a obra comentando como o comportamento de suas pacientes mudou nos últimos anos. Se, antigamente, elas chegavam ao consultório dizendo coisas como “Estou irritada o tempo todo e não sei a razão”, agora falam frases como “Qual é a diferença entre o Rivotril e o Effexor?”; “Não consigo descobrir se tenho TDAH ou TOC”, “Estou precisando tomar alguma coisa para relaxar” e o mais surpreendente: “Existe algo novo que eu possa experimentar?”.
           Segundo a médica, o Abilify, um medicamento originalmente formulado para tratar esquizofrenia, depois de entrar no mercado de depressão passou a ser o remédio mais vendido dos Estados Unidos. De acordo com o Centro Nacional para Estatísticas de Saúde (NCHS), a taxa de antidepressivos prescritos cresceu 400% de 2005 a 2008 entre os americanos. Alguns dados nacionais: de novembro de 2014 a outubro de 2015, foram vendidas no Brasil mais de 23 milhões de caixas de clonazepam, princípio ativo do Rivotril, me informou por telefone a IMS Health Brasil, empresa que pesquisa informações da indústria farmacêutica. De 2010 para cá, o número só aumentou: naquele ano, foram 20 milhões de caixas. Entre 2010 e 2014, a venda de anticonvulsivantes em geral cresceu 25% e a dos antidepressivos (grupo em que se encontra o famoso Prozac) e estabilizadores do humor (entre eles, o Amytril) aumentou 58%.       
           Para a dra. Holland, esse aumento do consumo de medicamentos psiquiátricos é uma distorção – ou, simplesmente, uma bizarrice. Ela escreve: “Por volta de 2006, ficou claro para mim que havia algo errado. As empresas estavam gastando bilhões de dólares para transformar experiências humanas normais, como medo e tristeza, em doenças. Elas não estavam desenvolvendo a cura: estavam criando consumidores. O problema deixou de ser nossa instabilidade, mas o fato de sermos convencidas a controlá-la com remédios.”
          Não à toa ela dirige seu discurso às mulheres: uma em cada quatro americanas tomar algum medicamento psiquiátrico, enquanto o mesmo ocorre em um a cada sete homens.  
          Achei bem interessante esta frase da fala dela: elas não estavam desenvolvendo a cura.
        
 E o que desenvolve a cura, amigas – e amigos, porque, afinal, vocês também não estão a salvo?
          Na página da NIH, Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, está a seguinte advertência: “a medicação não necessariamente cura os transtornos de ansiedade, mas frequentemente reduz seus sintomas”. Ao mesmo tempo, a OMS avisa que a depressão será a doença mais comum do mundo em 2030.
          Então é esta a nossa realidade? Vamos adoecer de ansiedade ou depressão e ficar aqui tratando os sintomas? Ou estou sendo muito dramática? (Juro que não estou pensando em atirar nenhum objeto contra a parede enquanto escrevo isso).
                      
    *
           “Seja comida, álcool, drogas, internet ou compras, todas nós dependemos de algo para nos alienar nos momentos difíceis. Seja qual for o objeto escolhido, a promessa é sempre a mesma: a de que as coisas vão melhorar assim que ele for consumido”, escreve a Dra. Holland no seu livro. Difícil discordar, assim como é difícil discordar que algumas substâncias são mais perigosas que outras e alguns vícios são mais incompatíveis com a vida em sociedade do que outros: um dependente de heroína ou um alcóolatra vão ter sua saúde deteriorada mais rapidamente e muito provavelmente mais dificuldade de conciliar seu vício com o convívio familiar e o trabalho do que um dependente de remédios para dormir ou alguém viciado em limpeza, por exemplo.
           A questão, então, é escolher que muleta usaremos nos momentos difíceis – Rivotril ou álcool, internet ou compras, sexo ou comida? Tudo para nos proteger da overdose que ninguém suporta, essa sim: a overdose de realidade?
           Ok, ok, a depressão é considerada uma doença pela Organização Mundial da Saúde. Mas vale lembrar que até 1990 a homossexualidade também estava nessa lista de doenças da OMS. E tudo bem, se eu fosse a mãe daquele esquizofrênico mencionado pelo meu então psiquiatra, com certeza eu pagaria todas as cartelas de remédios que o médico receitasse para ele. E, sei lá, se as mulheres da academia e a da festinha de aniversário quiserem tomar remédio, elas que tomem, é a vida delas (embora meu julgamento moral apite a todo vapor quando estamos falando sobre a que deu Rivotril para a própria filha por conta própria.). Volto ao meu ponto: se os remédios não são capazes de curar a dor existencial, o que cura?
           “Nossa vida está fora de sincronia com a natureza. Quanto mais nos afastarmos do que é natural, mais doente vamos ficar. Por conta da distração constante dos nossos dispositivos digitais, nos esquecemos de uma regra básica: o ar fresco, a luz do sol e o movimento nos fazem sentir muito melhor. Os ciclos diários de luz e escuridão fazem mais pelo nosso sono do que qualquer pílula milagrosa”, escreve a dra. Holland.
            Não há cura para a existência, penso agora, quatro anos depois do meu último comprimido de antidepressivo. Já passamos da idade e do período histórico de querermos ser salvos – quer dizer, sempre haverá aqueles que apostam em uma religião como salvação suprema. Mas não estou falando de ser salva. Estou falando – acho – de um olhar mais simples de encarar a vida, um modo dentro de nós que não se dobra a remédios, porque é um lado que quer ser abraçado e aperfeiçoado – e não apenas mascarado. Um lado que não se contenta em ter atenuados seus sintomas – um lado que implora para ser ouvido e encarado de forma mais profunda e, talvez, que não só não passe por medicamentos, como não passe por palavras. Enfim, o mundo nem sempre é fácil, mas, dentro de mim, sinto que acabei encontrando um lugar sereno, amigável e acessível, onde tento habitar a maior parte do tempo. 
              Certo, meu discurso começou a ficar hippie, eu sei. Se você é esquizofrênico ou tem um parente que seja, não tenho nenhum conselho. Realmente, desconheço completamente essa condição, assim como a dos bipolares ou dos que têm a síndrome do pânico e sofreriam muito, e mesmo colocariam sua vida em risco, sem os remédios. Mas se você, como eu, é uma pessoa mais ou menos comum que quer, por algum motivo, seja orgulho existencial ou desconforto em relação aos efeitos colaterais, atravessar sua vida sem medicamentos psiquiátricos, aí vai uma dica: encontre suas próprias dicas. Seu próprio caminho. Para mim, foi esse novo olhar, que mistura escolhas racionais com tentativas de tocar o irracional (pela meditação, por exemplo). Cada um tem o seu.
               (Em tempo, aproveito para deixar um estudo publicado na respeitada Lancet mostrando que a meditação mindfulness é tão eficiente quanto os anti-depressivos para combater a depressão: clique aqui para ler a matéria na BBC e aqui para ver o estudo). 

               Liliane Prata é editora de CLAUDIA e escreve esta coluna toda quarta-feira. Para falar com ela, clique aqui.

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