João de Deus: os relatos das vítimas que romperam o silêncio
Protagonista do maior escândalo sexual da história do Brasil, o médium é investigado após centenas de denúncias de abusos
“O silêncio é uma prece.” A frase espalhada pelos cômodos da Casa Dom Inácio de Loyola, na pequena Abadiânia, interior de Goiás, serviu de lema e regra para os frequentadores do local por 43 anos – quando começaram os atendimentos. Ela também foi escolhida para dar nome ao documentário que, em 2017, mostrou parte da rotina de João Teixeira de Faria, o João de Deus, líder espiritual brasileiro de fama internacional, que chegou a receber 10 mil visitantes por mês no santuário que fundou. Atraídas pelos testemunhos de curas milagrosas, essas pessoas vinham de todas as partes do Brasil e do mundo carregando a esperança de encontrar alívio para enfermidades graves próprias ou de parentes e amigos.
Carina*, 24 anos, chegou lá assim. Em meados de 2007, aos 13, buscou o local por causa de uma doença degenerativa no olho. Com seus pais, já havia consultado os melhores médicos. Contudo, depois de escutar várias vezes o mesmo prognóstico – a evolução da patologia era incontrolável e a possibilidade de ela perder a visão era grande –, resolveram apostar na fé. Encantadas com a aura do lugar, Carina e a mãe viajavam para Abadiânia quatro vezes ao ano. Organizaram até grupos de excursão para levar amigos.
A doença de Carina estagnou. Mas, aos 17 anos, ela entrou em depressão. Angustiada com o fim do ensino médio, entrou em confronto com os pais, que se opunham ao seu desejo de seguir a carreira de atriz e preferiam que ela se tornasse médica. Tornou a buscar consolo na fé. Confidenciou a aflição para o médium e foi encaminhada para um tratamento que até então desconhecia, o atendimento individual. Na primeira vez, a mãe a acompanhou até a sala de João de Deus. Lá dentro, o senhor corpulento de olhos azuis e voz grave pediu que a jovem abrisse o cós da calça e a tocou na altura do umbigo. Disse que a moça tinha jeito para a carreira artística, mas precisava emagrecer. Observou ainda que seus seios eram díspares. O comentário, que vindo de outro homem poderia causar estranheza, foi encarado com naturalidade por ambas. Ele era, afinal, o João de Deus. O trio se despediu com a promessa do médium de que ele a ajudaria na vida profissional, preparando-a espiritualmente e acionando conexões que tinha com gente poderosa em uma grande emissora.
A jovem retornou meses mais tarde pesando 30 quilos a menos. Seguia deprimida, mas confiava no ambiente de paz e acolhimento que sempre encontrava em Abadiânia. Direcionada de novo para o atendimento individual, viveu a primeira de uma série de experiências traumáticas. Ao se ver sozinho com ela, o médium a conduziu para um banheiro, onde a fez tocar em seu pênis. Ao perceber o constrangimento da garota, justificou-se dizendo que Carina era especial e que a energia de que ela precisava só seria liberada daquela forma. Nas visitas seguintes, os abusos avançaram. Ele exigia que ela tocasse sua genitália com a boca. “Eu era virgem e inexperiente. Sentia que não estava certo, ficava com nojo, mas me sentia mal por pensar algo ruim sobre João de Deus”, conta, lembrando que o homem ainda a repreendia. “Irritado, ele dizia que não fazia aquilo por prazer, que queria me ajudar e que eu não podia sentir nojo, devia fazer direito.”
Confusa e cada vez mais fragilizada, a jovem perdeu o interesse em visitar o local, apesar das contínuas promessas de João de ajudá-la na carreira. Quando a família de Carina sofreu um baque financeiro, ela parou de ir a Abadiânia. O médium ligou em sua casa cobrando retorno. Com o pai acamado e a insistência de João, que dizia que a ruína familiar era consequência de a menina ter se afastado da fé, ela voltou. Então, a violência ganhou outros contornos. No corredor que dá ao médium acesso à sala de orações, oculto por uma parede de vidro espelhado, em que ele pode observar o recinto, mas ninguém o vê, Carina foi estuprada. Ele praticou sexo anal com ela mantendo a jovem apoiada na parede de vidro, observando aquelas dezenas de pessoas que rezavam sem imaginar a atrocidade que acontecia a poucos metros. A moça chorava copiosamente enquanto o homem repetia que não sentia prazer e só fazia aquilo para passar a energia que ajudaria a família dela a se recuperar.
A QUEBRA DO SILÊNCIO
Carina é uma das centenas de vítimas que, desde dezembro de 2018, criaram coragem para relatar a violência sexual que sofreram por parte de João de Deus. Elas abriram mão do silêncio da prece para dar poder às próprias vozes. Carina contou para a mãe e procurou o Ministério Público de São Paulo após ver uma dezena de denúncias serem divulgadas no programa “Conversa com Bial”, da Rede Globo. As acusações chegaram à imprensa pelas mãos da ativista social Sabrina Bittencourt – ela mesma vítima de abuso sexual em uma comunidade mormón, doutrina que sua família seguia.
Meses antes de receber as queixas contra João, Sabrina havia reunido relatos de mulheres abusadas por outro líder espiritual brasileiro, Prem Baba. Ao tomar conhecimento dos primeiros casos praticados pelo guru hinduísta, declarou em uma rede social que estava aberta a conversar com vítimas de violência em outros ambientes religiosos. Não tardou para os relatos sobre a conduta em Abadiânia chegarem também. “Recebi as denúncias aos poucos, mas não me surpreendo com a quantidade de casos”, conta ela. “Quando um líder espiritual começa a cometer esse tipo de crime, não faz com uma pessoa só. É estatístico, padrão no mundo inteiro”, acrescenta.
Na semana seguinte à divulgação dos primeiros casos, centenas de mulheres de diferentes faixas etárias, estados e países recorreram à Sabrina e à psicóloga Maria do Carmo Santos, também ativista e presidente do Grupo Vítimas Unidas, criado em 2009 inicialmente para oferecer suporte legal e emocional às mulheres violadas por outro criminoso ilustre, o médico Roger Abdelmassih. Acolhendo as inseguranças de cada uma delas – que além do trauma, revelavam ter medo de represálias físicas e espirituais –, começaram a encaminhá-las para o Ministério Público.
REDE DE PROTEÇÃO
Talvez confiando na fé quase cega de seus seguidores ou na suposta falta de provas que avalizassem os relatos, o médium apressou-se em desmentir as acusações e declarar-se inocente. Até então assessora de imprensa da Casa, Edna Gomes – que também aparece como roteirista do documentário “O Silêncio É Uma Prece” – fez até um desabafo em uma rede social afirmando “nunca ter presenciado nada fora do curso natural das coisas no local” e criticando o que chamou de “liquidação humana, violência do linchamento e espetáculo imediato da crucificação antes do julgamento da Justiça”. Enquanto o médium se cercava de um exército para conduzir sua defesa legal e administrar o estrago em sua imagem, o que incluiu a contratação do renomado advogado criminal Alberto Toron e de um conhecido profissional de gestão de crise, os Ministérios Públicos de Goiás e de São Paulo articularam-se em uma força-tarefa formada por promotores e psicólogos para receber quem quisesse prestar depoimento formalmente. Somente em dezembro o Ministério Público de São Paulo informou ter recebido mais de 400 pedidos de ajuda, além de ouvir formalmente 47 vítimas. Em Goiás, onde a investigação está centralizada e para onde serão encaminhados todos os depoimentos, foram reunidos quase 600 contatos, dos quais 16 casos já haviam sido registrados no Departamento Estadual de Investigação Criminal (DEIC). Ainda em dezembro, o primeiro inquérito com base em uma das denúncias foi instaurado. O médium foi indiciado por violência sexual mediante fraude, ou seja, abuso sexual usando da crença religiosa – e da fragilidade emocional – da vítima. Em 9 de janeiro, a juíza Rosângela Rodrigues dos Santos aceitou a denúncia contra ele, que passa a ser réu pelos crimes de estupro de vulnerável e violação sexual.
A PALAVRA É PROVA
João de Deus foi preso preventivamente no dia 16 de dezembro e segue no Núcleo de Custódia. Em outra ação, o Judiciário procedeu o bloqueio de bens do réu no valor de R$ 50 milhões, em contas e em imóveis.
A defesa fez pedidos de habeas corpus, mas foram negados pela Justiça. Além de usar da fragilidade da saúde do médium como argumento para pedir sua liberdade, Alberto Toron fez uma série de declarações questionando a reputação das vítimas e a consistência das provas, visto que, na maior parte dos casos ouvidos, não há testemunhas. A estratégia, que estimula o julgamento moral dessas mulheres, reforça um comportamento padrão na sociedade quando ocorre violência sexual. “Os crimes dessa natureza acontecem, via de regra, entre quatro paredes e sem a presença de terceiros”, explica a promotora de Justiça Valéria Scarance, uma das integrantes da força-tarefa do MP de São Paulo. “Por isso, por lei, a palavra da vítima consiste, sim, em uma das principais provas.”
Valéria, que participou das primeiras audições com vítimas ao lado das promotoras Gabriela Manssur e Silvia Chakian – todas muito atuantes na defesa de direitos das mulheres –, conta que as semelhanças entre os relatos impressiona. “Mulheres que não se conhecem e nunca se encontraram confirmam, por meio de seus depoimentos, um padrão”, afirma. “Todas foram chamadas para atendimento individual, com uma abordagem que fazia com que se sentissem escolhidas por serem especiais”, completa a promotora, atentando ainda para o fato de muitas mulheres estarem profundamente deprimidas na época dos abusos.
Os relatos vêm desde a década de 1980 até os dias atuais. A idade das vítimas na ocasião das ocorrências também varia muito, de crianças a partir de 9 anos a adolescentes e mulheres maduras. Muitos dos crimes podem ter prescrito, conforme a legislação. Porém, Patricia Otoni, promotora que integra a força-tarefa do Ministério Público de Goiás, destaca que é importante que todas as vítimas prestem depoimento e formalizem a denúncia. “A prescrição não invalida o relato. Ele é fundamental para corroborar com o comportamento explicitado em depoimentos mais recentes”, explica. “Adicionalmente, uma vítima pode ser testemunha no processo de outra, fortalecendo o caso.”
Se comprovadas as acusações que existem até agora, João Teixeira de Faria seria enquadrado em pelo menos outros dois crimes de violação sexual: estupro e estupro de vulnerável (quando a vítima é menor de idade).
BLINDADO PELA FÉ
Muitas mulheres justificaram os anos de silêncio pelo medo dos poderes, sobrenatural e terrenos, do médium. E foi nesse âmbito que começaram a surgir os primeiros relatos de ameaças e coação por causa da influência que João possuía na cidade e arredores, envolvendo algumas autoridades. O que parece explicar como foi acobertado um processo que o médium enfrentou em 2008. Na época, foi acusado de ato libidinoso por uma adolescente de 16 anos. Julgado, acabou absolvido pela juíza Rosângela Rodriguez Santos, que deslegitimou o testemunho alegando que a jovem poderia ter reagido e evitado o crime.
Nas buscas ocorridas em dezembro nos endereços que pertenciam ao médium, a polícia encontrou dinheiro, escondido no fundo falso de um armário – o equivalente a 405 mil reais, em notas de real, dólar e euro –, e armamento, ampliando o leque de crimes do qual ele é suspeito. Na ocasião, João de Deus foi indiciado também por porte ilegal de armas.
A notícia não surpreendeu o catarinense Clodoaldo Turcato, que trabalhou por dois anos como contador da Casa Dom Inácio de Loyola na década de 1990. “Apesar de eu ver legitimidade no trabalho de cura da Casa, nos bastidores as coisas eram diferentes”, conta ele. Segundo Clodoaldo, João vivia cercado de jagunços e eram comuns os boatos de outros crimes graves. “Ver e calar. Essa era a ordem para os funcionários que cuidavam da burocracia.” Ele seguiu a indicação até sua esposa sofrer uma tentativa de abuso. Clodoaldo, que já havia se demitido após episódios de humilhação e xingamentos vindos de João de Deus, deixou a cidade e ignorou o assunto por anos. “Mas o movimento atual me faz acreditar que toda ação tem uma reação.”
DOIS RELATOS DE VÍTIMAS
“Conheci João de Deus aos 19 anos em uma visita dele ao centro espírita que eu frequentava, fora de Goiás. Na primeira vez que estive em sua presença, participei de um trabalho em grupo, onde todas as pessoas ficavam paradas em roda e de olhos fechados. Ele se aproximava de cada uma por trás. Tocou um dos meus seios com a mão e, sussurando ao meu ouvido, perguntou se eu estava menstruada, pois meu peito estava firme. Emendou dizendo que, se a resposta fosse positiva, seria ótimo, pois o fluxo abre as energias. Não percebi que se tratava de um abuso; acreditei que fazia parte do processo de troca de energia. Ninguém no recinto notou nem comentou. Depois disso, fui mais de dez vezes a Abadiânia em caravanas. Foi a maior dedicação da minha vida. Parei de beber, me endividei para bancar as viagens e me voluntariar lá. Em uma dessas vezes, poucos anos depois, ele se aproximou de mim. Disse que eu tinha uma mediunidade especial, que me queria por perto. Mais do que isso, acolheu minhas angústias demonstrando que eu poderia contar com ele. Até que, um dia, ofereceu a oportunidade de ir até a sala onde aconteciam os atendimentos individuais. Enquanto estava sentada no sofá, ele afirmou que eu estava tomada por algo ruim. Saiu do banheiro com as calças já abaixadas e pediu que me recostasse no sofá, pois tiraria aquilo de mim. Ele consumou o ato sem usar preservativo, enquanto eu chorava. Só me entreguei a Deus. Quando acabou, João pegou um maço de dinheiro e me entregou dizendo que aquilo resolveria as minhas questões. No momento, senti que estava me prostituindo, não que tinha sido estuprada. Carreguei a culpa por anos até entender que fora um abuso sexual. Só tive esse lampejo de consciência após anos de terapia e, mesmo tanto tempo depois, ainda guardo segredo. Hoje faço outra leitura da situação. Creio que ele se aproximava das pessoas mais carentes e ganhava sua confiança até poder concretizar as agressões sem correr riscos. Ele se alimentava de uma energia do bem para fazer maldades. É uma crueldade sem tamanho. Da última vez que estive lá, pensei: ‘Esta casa vai cair’. Acredito na Justiça. Não há mal que dure para sempre.”
MARIANA*, 45 ANOS, EMPRESÁRIA
“Comecei a frequentar Abadiânia aos 13 anos com minha mãe, procurando respostas e alívio para minha doença degenerativa. Íamos cerca de quatro vezes ao ano. Com 17 anos, entrei em depressão. Tinha acabado os estudos e queria ser atriz, contrariando a vontade dos meus pais. Relatei isso para a entidade e, pela primeira vez, me recomendaram atendimento individual. Nesse dia, minha mãe entrou comigo, João conversou um pouco e pediu que ela nos deixasse a sós. Então falou que eu precisava emagrecer, que ele me ajudaria na carreira me preparando espiritualmente e usando conexões que tinha em uma grande emissora. Perdi mais de 30 quilos em poucos meses, mas a depressão só piorava. Então retornei logo para continuar a “preparação”. Foi quando os abusos começaram. Inicialmente, ele se fechava comigo em um banheiro em sua sala e pedia para tocar seu pênis. Virgem e inexperiente, achei estranho, mas ele afirmou que aquele era o único meio de me passar a energia necessária. Algum tempo depois, João explicou que o tratamento não estava surtindo efeito e que eu teria que tocar o pênis dele com a boca. Eu senti nojo, me abaixei chorando. Muito irritado, ele disse que não me obrigava a isso por prazer, mas para ajudar, que eu tinha que fazer direito. Nessa época, minha família sofreu um golpe e meu pai perdeu tudo, ficando acamado e deprimido. Eu não tinha a menor vontade de voltar à Casa. Porém, acabei acompanhando minha mãe para tentar ajudar meu pai a se reerguer. Até o dia em que o João me fez ir ao corredor que saía de sua sala e dava acesso ao salão de oração. Oculto por uma parede de vidro, em que ele vê as pessoas, mas ninguém o vê, ele me mandou ficar de costas e praticou sexo anal. Lágrimas escorriam dos meus olhos enquanto encarava aquelas pessoas meditando de olhos fechados, sem imaginar que eu estava sendo estuprada. Nunca mais voltei. Ele chegou a ligar em minha casa, foi grosseiro com minha mãe, que de nada sabia. Apenas agora, três anos mais tarde, depois de ver as denúncias na televisão, confessei a ela que era uma das vítimas. Em janeiro prestarei depoimento. A única coisa que quero de tudo isso é justiça.”
CARINA*, 24 ANOS, ESTUDANTE
*Nomes trocados para preservar a identidade das entrevistadas