Filósofo explica porque está cada vez mais difícil alcançar a verdadeira felicidade
A sociedade contemporânea é marcada pela sede permanente pelo prazer. Mas é justamente essa busca obsessiva pela satisfação dos desejos que nos torna, ao contrário, sempre insatisfeitos
Pense nos seus últimos desejos: a viagem dos sonhos, casar, ter filhos, ser promovida no trabalho ou simplesmente comprar aquele vestido incrível que é tendência da estação. Ao realizar algum deles, a satisfação sentida foi duradoura? Ou novos anseios logo surgiram na sua vida? Não se culpe se a resposta correta for a segunda. Segundo Fernando Muniz, autor do recém-lançado Prazeres Ilimitados (Nova Fronteira) e professor do departamento de filosofia da Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, a sociedade contemporânea é marcada por essa sede permanente por mais realizações, e é justamente essa busca obsessiva pela satisfação dos desejos que nos torna, ao contrário, sempre insatisfeitos – afinal, raramente nos sentimos completos. Hoje, o tema “felicidade” parece interessar às pessoas mais do que nunca, seja em livros de autoajuda, programas de TV ou como objeto de estudos e pesquisas científicas – mas, para Muniz, isso não significa que estamos aprendendo a sentir prazer, pelo contrário: estamos desaprendendo. “O que, na nossa sociedade, é entendido como prazer é, na verdade, compulsão e voracidade.” O filósofo propõe, em seu livro, um mergulho nos ideais da Grécia Antiga para uma reflexão sobre a sociedade contemporânea e um resgate para a vida atual. “Para os filósofos gregos, uma vida digna de ser vivida é completa e satisfeita”, diz Muniz. Apesar de, atualmente, acharmos que o prazer está em toda parte, geralmente sob a forma de consumo, essa sensação é rara e precisamos buscá-la em sua plenitude, como faziam os antigos. “É preciso parar e refletir sobre o verdadeiro prazer”. Confira mais na entrevista.
Estamos sempre insatisfeitos?
O livro tem a ambição de discutir essa ideia mais ou menos aceita de que o mundo contemporâneo é hedonista, isto é, que coloca o prazer como principal objeto de felicidade. Atualmente, sofremos um processo de grande empobrecimento da sensação que conhecemos por esse nome. O que conhecemos como prazer é, na verdade, compulsão. Vivemos o que chamo de pleonexia – que é o querer sempre mais. A fila está sempre andando. O que você acabou de comprar já não interessa mais, e o desejo é substituído por um novo objeto. A saciedade é o que vem depois e, dessa forma, você ansiosamente a projeta para um futuro nunca atingido. A frustração que acompanha essa busca incessante de satisfação sem realização é o que nos torna seres humanos constantemente frustrados. Sócrates compara a vida de quem não se contém a um jarro cheio de furos que, no mesmo instante em que é preenchido de líquido, se esvazia. O que caracteriza a vida hoje é a incapacidade de retenção, a insaciabilidade, a impossibilidade da real satisfação dos apetites – a bebida, o sexo, a comida, o dinheiro nunca poderiam fornecer contentamento porque seriam incapazes de reter qualquer coisa.
Por que não obtemos prazer com a facilidade dos gregos antigos?
Naquela sociedade, a felicidade só podia ser atribuída à plena satisfação do ser humano. Hoje, perdemos a etapa da reflexão: não temos tempo para pensar e definir o que, de fato, poderia nos trazer felicidade. Essa vida pré-fabricada, oferecida em série, não pode dar real satisfação ao ser humano. Veja o consumismo: a voracidade do consumo é um bom exemplo disso. A satisfação prometida pelas mercadorias é sempre adiada para a próxima compra e a ansiedade de satisfação, perpetuamente renovada. Tudo parece ocorrer entre um vazio e outro, onde não há lugar para o gozo ou para a saciedade.
E qual seria o reflexo disso nas relações amorosas?
Os seres humanos encontram-se consumidos com coisas. Estão, também, mais interessados em mostrar uns aos outros que estão tendo uma relação com tal pessoa do que de fato empenhadas em construí-la. Os casais, de modo geral, se preocupam mais em como são vistos do que como vivem. São relações líquidas, superficiais e vazias. Uma relação forte e bem construída causa uma transformação em nossa vida, em nosso olhar, ou na maneira como enxergamos o mundo, mas o que vemos nas relações atuais é que as pessoas entram na vida uma das outras e nada se altera, porque a outra pessoa é vista como uma coisa, não como outro ser humano. O que o outro usa, o que exibe ou posta nas redes sociais, parece que é suficiente para construir uma relação. Tudo é muito exposto, mas é preciso que alguém veja para que aquilo tenha sentido real.
Você cita no livro o aumento significativo das taxas de suicídio e do uso de antidepressivos. Isso tem a ver com essa nossa dificuldade de sentir prazer?
Totalmente. Não temos mais espaço pra esse sentimento em sua forma plena, que os gregos costumavam experimentar diante da vida. A nossa satisfação é demonstrada com uma excitação desenfreada (vide o exibicionismo excessivo presente nas redes sociais) ou com um prazer que deriva da dor. Vemos que alguns jovens buscam nela (com o ato de se cortar, por exemplo), uma maneira de sentir prazer. Produzir dor é um jeito de lidar com esse vazio interior. Isso são sintomas de que estamos vivendo um momento em que a vida é ameaçada – um indicativo forte de como a sociedade contemporânea não é hedonista; ao contrário, está bem distante disso. O que impressiona é vermos que a vida já brota com esse tipo de sensação de desinteresse enorme ou de dor insuportável: vemos jovens, que aparentemente teriam tudo para desfrutar a vida, incapazes de sentir prazer.
Qual o papel das redes sociais e das drogas no preenchimento desse vazio?
O livro reflete o contraste entre o prazer alcançado por meios éticos – no exercício das virtudes, na relação com os outros – e as drogas. Se entendermos a felicidade como um estado mental que pode ser gerado por meios químicos, a droga é uma rival da ética grega. Essa satisfação mental, chamada de eudemonia, era entendida como resultado de um longo trabalho, de uma vida construída para chegar a esse tipo de contentamento. O que a droga faz é cortar esse caminho, como se criasse uma atalho rápido para a felicidade – um acontecimento que não tem relação nenhuma com o longo trabalho e com os exercícios de virtudes e capacidades para que você possa se sentir feliz. Também não se aproxima do estado mental vinculado às construções das relações amorosas, com os amigos, com as pessoas, em geral. A vida digna de ser vivida produz o efeito mental que a droga pode apenas simular. A alternativa é trabalhosa. A felicidade ética é um contentamento que provém da nossa entrega, da nossa relação com o mundo, com as coisas e com as pessoas.
De que forma as relações virtuais vêm substituindo o prazer do relacionamento amoroso (tanto emocional, quanto sexual)?
Essa substituição parece confirmar nossa preferência por atalhos para a felicidade. A felicidade grega é um esforço ético, dá muito trabalho, é um caminho longo. Um relacionamento amoroso, por exemplo, é sempre muito complicado, muito arriscado, envolve investimentos e compromissos. Evidentemente, as relações instantâneas e inconsequentes são atraentes por sua facilidade. Essa preferência esconde alguns enganos porque uma sensação virtual não substitui uma relação real. E o ser humano não pode conscientemente fazer essa troca. No livro, cito um experimento mental do filósofo americano Robert Nozick, sobre uma máquina que reproduziria todos os prazeres possíveis, eliminando todo o esforço do caminho percorrido para se chegar até lá). A questão é: você se ligaria à máquina para sempre? Se a vida é o que podemos sentir, o que pode ser melhor que uma montanha-russa de prazeres extraordinários, sem nenhum esforço? O interessante no experimento de Nozick é que raras pessoas aceitariam se conectar com a máquina. Ela nos causa certa repulsa. Na psicanálise, Freud concluiu que quando tomamos o prazer como mera sensação, desvinculada do mundo e das pessoas, abrimos a possibilidade de reduzir a vida humana a uma satisfação química que, como mostro no livro, não é o que traz satisfação plena dos desejos. Quando falamos de prazer, há mais fatores em jogo do que meras sensações físicas: queremos realizar coisas, viver de fato as experiências, realizar certos atos e não apenas sentir que os executamos.
Quais seriam os desejos possíveis de satisfação real?
A ética grega oferece uma possibilidade de um recomeço, capaz de restituir à vida sua força espontânea. O prazer, segundo o que proponho, é a chave desse processo. Ele viria da nossa relação ativa e transformadora com as pessoas, com a política, com o mundo. É preciso deixar de lado o conformismo, nos perguntando constantemente o que nos traz realizações plenas, para sentir prazer na existência. Não se pode ter preguiça de pensar.