Às 34 mil presas no Brasil, o Estado dá a pena e nada mais
Com quem ficam os filhos dessas mulheres trancafiadas, que se empilham em cárceres sem perspectivas de reeducação e futuro?
Rodovia Luiz Salomão Chamma, que leva ao Centro de Detenção Provisória Feminino (CDP), na paulista Franco da Rocha, margeia uma represa que reflete os ipês amarelos e as árvores de copa larga do Parque Estadual do Juquery, abrigo de tucanos, jaguatiricas e garças. As 1 128 mulheres trancafiadas nessa unidade prisional, porém, nem se dão conta dessa paisagem: chegam em caminhões lacrados, descem algemadas e, sob o impacto da prisão recente, não se interessam por nada além de tentar entender o que será delas naquele prédio carrancudo, onde celas deterioradas abrigam 120 mulheres acima da capacidade total.
As primeiras 24 horas de prisão são turbulentas para qualquer um. Da delegacia, a pessoa é conduzida à audiência de custódia, no fórum, e o juiz pode autorizar que responda em liberdade. Do contrário, o destino é um CDP. A que tem o azar de ser apanhada no fim de semana, folga dos magistrados, vai direto para um desses centros – em tese, locais de curta permanência, enquanto se aguarda o julgamento. Mas acontece de algumas serem esquecidas por anos nesses depósitos, sem alternativa de educação e trabalho para a remissão de uma eventual pena.
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Na manhã de 5 de abril, dez mulheres esperavam em indisfarçável apreensão a chegada da defensora pública Maíra Coraci Diniz a Franco da Rocha. A maioria fora detida em fevereiro. Uma mofava no presídio havia quatro anos, aguardando sentença por ter atuado em um assalto a banco, finalizado com um óbito. Outra era casada com um falsário. Oito tinham o prontuário ligado a drogas (como 64% das presas do país), não portavam armas no ato da prisão nem expressaram violência, segundo os autos. Sem dinheiro para advogado, a defensoria é a esperança delas.
De cabeça baixa, mãos para trás, a primeira é atendida às 9h20. A diferença entre os gêneros logo se nota: um homem perguntaria detalhes de sua situação processual e das chances de obter um habeas corpus. Já as prisioneiras, desesperadas, pedem a ajuda de Diniz para descobrir como ou onde estão seus filhos. As que não podem ser identificadas tiveram o nome trocado nesta reportagem.
Tereza, 19 anos, amamentava a filha de 2 meses quando a polícia meteu o pé em sua porta e achou 124 gramas de maconha e 60 gramas de cocaína. Na casa, em Guarulhos (SP), vivia com a sogra, que está grávida. Os homens da família não estavam. Ambas foram algemadas. “Da viatura, pedi a uma vizinha para pegar o meu bebê”, diz Tereza. “Não tenho ideia de quem esteja cuidando dela agora.”
Júlia, 21 anos, senta e narra sua história. Tinha saído para trabalhar na padaria, em São Bernardo (SP), parou para conversar com uma amiga adolescente e, minutos depois, policiais estouraram o quarto que a garota divide com os irmãos em um cortiço. Apreenderam um colete à prova de balas, munições e dois tijolos de maconha.
O Ministério Público não havia oferecido denúncia, mas Júlia entendeu a explicação da defensora: sua situação é bem delicada. Ela chora. Dava o peito à sua menina de 2 anos até o episódio. Diniz pergunta com quem deseja deixá-la. “Quero que a senhora dê a guarda para a minha mãe”, pede. Muitas crianças são entregues a abrigos, e as presas descobrem, ao saírem da cadeia, que elas foram adotadas.
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Mais um drama: Maria, 18 anos, se despedira da mãe no distrito policial 19 dias antes, e a família ainda não sabe para onde a transferiram. Estava desconfortável, parava de tomar água à tarde, com medo de fazer xixi dormindo: “Tenho esse problema e fiquei sem meu remédio. As colegas não vão gostar de ver urina na cela”. Assume: “Eu vendia drogas em uma biqueira de Guarulhos. Sustentava minha filha de 2 anos com isso”. Os policiais pegaram na jaqueta dela 66 pinos de cocaína (132 gramas) e propuseram: se os levasse ao dono, seria poupada da prisão. “Alcagueta morre. Não quero ser executada.”
O país desconhece o número de mães encarceradas. Em 2014, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias registrava 34 mil presas; uma explosão de 503% em relação a 2000. No período, a quantidade de homens cresceu 220%. Isso fez da nação a quarta maior em população prisional.
Algumas razões: basear a prisão essencialmente no flagrante, sem investigar, oferecer pouco acesso à defesa técnica de qualidade e adotar excessivamente a prisão provisória, caso de Tereza, Júlia e Maria, que poderiam responder em liberdade. “A investigação e a punição não devem ferir o direito de outra pessoa, no caso o filho da presa”, opina Diniz.
“A investigação e a punição não devem ferir os direitos de outra pessoa, no caso, o filho da presa”
Maíra Coraci Diniz, defensora pública
O quadro piora quando a presa é pobre, tem baixa escolaridade e é responsável pelo sustento da família – o perfil mais recorrente, conforme a pesquisa Mulheres em Prisão, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), que combate a desigualdade de gênero e o encarceramento em massa. “Assistimos a audiências de custódia e falamos com presas. Elas não se reconhecem nos processos”, diz a advogada Beatriz Vico, uma das autoras do documento. “Os boletins de ocorrência não registram se a detida é mãe ou gestante, realidade de 80% das entrevistadas.”
Vico lembra ainda que o país desconsidera as Regras de Bangkok, aprovadas em 2010 pelas Nações Unidas, sugerindo a criação de políticas de penas alternativas, por exemplo. O Brasil quase não as adota, patina na prevenção do crime e nada oferece para que a experiência de uma presa seja minimamente construtiva na cadeia. Até o dia 13 do mês passado, quando foi promulgada a lei que proíbe o uso de algemas em grávidas, em muitos estados elas davam à luz acorrentadas à maca, aos olhos de agentes penitenciários.
A Luta é desigual
Nas celas de todo o país, 16 650 mulheres esperam pelo julgamento. Estava entre elas, uma detenta famosa: Adriana Ancelmo, ex-primeira-dama do Rio de Janeiro. Mas, em 29 de março, ela se livrou das grades sob o artigo 318 do Código Penal, que permite à mãe de crianças com menos de 12 anos ter a prisão preventiva substituída pela domiciliar.
Acusada de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa, a mulher do ex-governador Sérgio Cabral trocou o presídio de Bangu 8 pelo próprio apartamento no Leblon. Em que pese a ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois, ter pedido à presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, a extensão do benefício a todas as encarceradas em situação idêntica, a batalha segue dura e desigual.
Rita, 21 anos, magricela, negra, cabelo raspado como moicano, não voltou para sua filha de 2 anos, em Eldorado (SP), a 278 quilômetros de Franco da Rocha. Seu pedido de habeas corpus foi negado. A defensora Diniz tentará livrá-la recorrendo ao Tribunal de Justiça. Rita estava do lado de fora da casa de um primo onde a PM achou maconha no cesto de roupa suja. Como havia cuspido no rosto do policial em um dos muitos entreveros que tiveram antes, ele foi à forra. Apesar da pequena apreensão de 22 gramas de drogas e 20 reais, entendeu-se aquilo como tráfico. No processo, o dinheiro aparece como “proveniente da venda da mercancia nefasta”.
A lei não vê no consumidor um criminoso, mas prevê penas severas ao traficante. Porém, não há uma métrica para distinguir venda ilícita de uso. Depende do humor dos policiais. E o juiz pode condenar Rita somente com base na declaração dos agentes, sem ouvir testemunhas – o que, segundo o estudo do ITTC, ocorre com larga frequência. Em 2016, o STF decidiu que não é crime hediondo o chamado tráfico privilegiado de drogas, em que o réu é primário, sem processos anteriores ou ligação com o crime organizado.
O ministro Ricardo Lewandowski argumentou que a maior parte das mulheres colabora, até por razões afetivas, no transporte, ou está onde drogas são armazenadas. “Servem de simples ‘correios’ ou ‘mulas’, em troca de alguma pequena vantagem econômica”, comentou. Por não serem “criminosos típicos, mas pessoas descartáveis, das quais se aproveitam os cartéis”, não seria justo tratá-las como grandes traficantes.
Não só Rita. Todas relatam à defensora abusos no camburão ou na delegacia. “Os policiais disseram que eu era suja, fedida e que uma vaca igual a mim não poderia estar na rua nem ser mãe”, recorda Maria. Algumas mencionam tapas e empurrões. A defensora fechou o computador às 13h30, cheia de providências a tomar.
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Penas pesadas demais
Um total de 13 viaturas e seis motos aportaram no prédio da paulistana Bruna C. de Lima, 34 anos, funcionária de uma empresa de engenharia civil, em 2015. Um anônimo denunciara que ela guardava 30 quilos de maconha. Na verdade, eram 201 gramas, que levaria para fumar em uma viagem com amigas. Os agentes cataram o rolo de papel-filme da cozinha como “prova” de que ela embalava a erva para vender e o bloco de notas dos gastos da casa como registro de uma suposta banca de tráfico. Um deles fotografou as tatuagens e o rosto vexado de Bruna e espalhou como um troféu nas redes sociais dela.
“Por sete meses, dividi com 34 presas as 12 camas de pedra de uma cela em Franco da Rocha. Meu julgamento durou alguns minutos”, conta. “A juíza não perguntou se eu tinha filho e emprego nem ouviu a minha versão dos fatos”, afirma Bruna, na biblioteca da Penitenciária Feminina da Capital, na zona norte paulistana, onde cumpre seis anos de reclusão. “Pretendia contar à juíza que passei a gostar de maconha ao usá-la no lugar da morfina”, lembra.
Um acidente no trabalho levou-a a uma cirurgia. Com 380 pontos e hastes chumbados nas vértebras, sentia dores horríveis: “A maconha tirava o mal-estar”. Bruna revelaria ainda que trabalhou desde os 12 anos, é mãe solteira de um menino de 11 anos, criado com todo o cuidado e amor até a prisão. Na penitenciária, confeccionou sondas hospitalares, programa que tem poucas vagas e que deu a ela a remissão de três meses da pena. Quando sair, terá que pagar 15,7 mil reais de multa ao Estado, parte da condenação.
Ela nem avalia o que a espera aqui fora. Ex-detentas se queixam da dificuldade de arrumar emprego e do estigma que carregam. “Uma das coisas mais difíceis na vida é ser mulher, presa e egressa”, diz a desembargadora Kenarik Boujikian Felippe, do Tribunal de Justiça de São Paulo, crítica do encarceramento em massa.
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O difícil recomeço
Vanessa Costa, 31 anos, escreveu uma carta, juntou uma foto do filho de 7 anos e implorou à juíza: “Me deixa cumprir a pena trabalhando perto dele”. Não foi atendida. Havia sido presa aos 18 anos ao lado do namorado – a droga era dele. O delegado a levou diante de uma vítima de sequestro-relâmpago e, apontando Vanessa, perguntou: “Não é essa a moça que pegou você?” A vítima não a reconheceu; ele insistiu: “Olhe bem”. Vanessa foi condenada por dois crimes. Mais tarde, em liberdade condicional, prestava serviços à comunidade, mas acabou detida com o atual marido – procurado pela polícia.
Aos nove meses de cárcere, obteve liberdade provisória. Em uma visita íntima, engravidou e, quando o filho completou 5 anos, a Justiça foi buscá-la para cumprir o resto das penas, que recalculadas somaram oito anos, em regime semiaberto. “Isso me abalou. Por que, depois de tanto tempo livre, sem nunca ter feito mal a ninguém, sustentando uma criança, mandam me prender?” O advogado sugeriu que fugisse. “Preferi enfrentar e não dever mais nada”, diz.
Recolhida no Centro de Progressão Penitenciária (CPP) de São Miguel Paulista, na capital, monitorada por uma tornozeleira eletrônica, Vanessa sai de manhã para o Parque da Água Branca, onde é jardineira. Aos sábados, faz um cursinho gratuito e prestará vestibular para nutrição. “Meu filho está com os meus pais, desempregados, em Sorocaba (SP). Ele fica triste ao ouvir, na escola, que não tem pai nem mãe”, conta.
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A casa caiu
A punição ultrapassou a vida da própria Jane Cleide Cordeiro, 40 anos, e impactou seus quatro filhos. Ela estranhou a falta da mais velha, Jéssica, 21 anos, a única pessoa a visitá-la na cadeia. “Fiquei em choque: vieram me contar que ela estava presa. Jéssica cuidava da minha caçula, de 3 anos, engravidou, chegou a dormir dias em um carro, perdeu o bebê, se envolveu com o tráfico.” O segundo filho, de 17, também cometeu o mesmo delito e está em liberdade assistida. O terceiro, de 8, carrega na meia uma carta da mãe pedindo perdão, e mora com o pai, que se casou de novo. Já a caçula vive com uma amiga de Jane. Ela faz a limpeza da área administrativa do CPP de São Miguel.
Tudo ia bem até o marido dela decidir subir na vida por vias tortas: deu informações a um bando que assaltou a empresa na qual trabalhava e foi preso. Por um tempo, Jane tocou bem o clã. Arrumou emprego para cozinhar, mas a demitiram, porque estava gorda e se locomovia mal. “Passei a vender os móveis para alimentar meus filhos”, lembra. Mas ficou complicado e ela espalhou as crianças entre os parentes. Então, em troca de dinheiro, aceitou que um rapaz guardasse lança-perfume na casa dela.
Mais tarde, cedeu um quarto para que estocasse outras drogas. “Sabia que era errado, mas o ganho me ajudou a trazer meus filhos de volta.” Ela não ofereceu resistência à prisão, em 2015. Pôs a pequena no colo do irmãozinho e prometeu: “Eu volto. Não façam bobagem”. Em depressão profunda, recebeu a pena de seis anos e três meses.
“O que a sociedade ganha gastando muito dinheiro para privar uma presa do contato familiar?”, questiona a desembargadora. “Não seria melhor mantê-la com medidas alternativas?” Felippe acredita que o país não enfrenta a questão das drogas de forma efetiva. “O imaginário popular põe essas pessoas como inimigas da coletividade, e o juiz não foge disso, punindo até além do que a lei prevê.” Essas indagações deveriam provocar o Legislativo e o Judiciário. Não se pode admitir que o Estado responda aos problemas sociais, que começam na infância pobre e desassistida, apenas com prisão.
“O que a sociedade ganha gastando muito dinheiro para privar uma presa do contato familiar? Não seria melhor mantê-la com medidas alternativas?”
Kenarik Felippe, desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo