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“Aquele cabelo era a minha conquista, minha identidade. E eles cortaram”

Expulsa de casa por ser gay, Fernanda depois se percebeu transexual e viveu momentos de terror na rua e na prisão. Hoje é coordenadora estadual de políticas afirmativas para travestis, transexuais e bissexuais em Recife.

Por Aline Takashima (colaboradora)
Atualizado em 12 abr 2024, 15h05 - Publicado em 17 ago 2016, 13h29

Fernanda Falcão se apaixonou pela primeira e única vez no dia da formatura do ensino médio, em 2009. Chegou em casa com o coração ainda palpitando. Tinha que contar para a sua mãe aquele sentimento que nunca sentira antes. “O que eu faço com todo esse amor dentro de mim?”, perguntou. A matriarca festejou a felicidade da filha. “Traga ela para casa”, sugeriu. Fernanda revelou que estava apaixonada por um rapaz. “Eu tinha a forma física e fisiólogica masculina. Não tinha coragem de dizer que eu realmente gosto de homem até o meu primeiro beijo”, conta.

Após a revelação, Fernanda desceu para o inferno e viveu por muitos anos uma espiral de terror. Sua mãe a trancou dentro de casa e chamou o pastor e o grupo de jovens de uma igreja evangélica que frequentava. “Ela dizia que um espírito mal tomou conta de mim”, revela. Quando percebeu que a filha não iria mudar, expulsou-a de casa. “E agora? Para onde eu vou?”, pensou desesperada. Ligou para Riberson Antônio Domingos, o rapaz de 18 anos por quem havia se apaixonado. Ele não hesitou em buscá-la e oferecer abrigo em sua casa, onde vivia com os pais e sete irmãs. “Todos me aceitaram muito bem. Nunca tive dificuldade em conviver com a família dele”, explica Fernanda, que namora com Riberson há sete anos.

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Como não contava mais com o apoio da mãe, o jeito foi se virar sozinha. Deu aulas de reforço de português e matemática para as crianças do bairro enquanto estudava com afinco para o vestibular de medicina. “Sonho em ser médica e trabalhar na área da saúde.” Não conseguiu a vaga na universidade federal e ainda perdeu os alunos das aulas particulares. “Os pais perceberam que eu era diferente e foram desistindo das aulas. Eu não tinha como pagar as minhas contas.”  

As mudanças do corpo e os gestos delicados acentuaram-se quando conheceu Paulinha e a Nicole, duas travestis. “Toma esse remédio que tu vais ficar com características femininas”, recomendaram. Assim como elas, Fernanda trabalhou como prostituta e morou na casa de uma cafetina. Apesar do consumo de drogas e roubos frequentes no meio que circulava, não desistiu dos estudos. Pagou a faculdade de enfermagem com os programas. 

A propina para policiais também era uma prática comum. Ela revela que, em uma avenida larga e movimentada de Recife, no bairro da Boa Vista, as garotas de programa eram obrigadas a pagar diariamente R$ 50 para os agentes. Rebelou-se contra a tarifa e começou a articular para que as outras meninas não pagassem mais aquele valor. Como castigo, teve os seus longos cabelos crespos cortados por uma policial. “Aquele cabelo era a minha conquista, minha identidade, eles cortaram e me humilharam”, revela. 

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“Sonho em ser médica e trabalhar na área da saúde” 

Apesar das ameaças, decidiu agir. Ajudou a criar um grupo de prostitutas da região metropolitana de Recife, o Damas, e contou com o apoio da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). O protagonismo de Fernanda incomodava. Ela conta que, certo dia, policiais a sequestram enquanto trabalhava. Após uma sequência de espancamento, foi levada para a delegacia. Foi presa. “Eu descobri por um papel que tiraram a minha dignidade. No documento estava escrito que eu tinha oito pedras de craque na bolsa. O que é uma mentira”, conta. 

O último relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), de 2015, revela que 318 pessoas foram assassinadas, naquele ano, vítimas de homofobia. A cada 27 horas ocorre um crime de ódio no país. De acordo com o GGB, que há 30 anos denuncia casos de preconceito no Brasil, as travestis e transexuais correm mais risco de serem mortas que os homossexuais . No ano passado, cerca de 119 travestis brasileiras foram assassinadas. 

Fernanda não chegou a ser morta, mas esteve perto da morte e algumas vezes até desejou morrer. Conheceu o sistema penitenciário aos 18 anos. Dividiu uma cela com 100 homens e duas travestis. Quando escureceu, escutou a sentença de um preso: “você vai dormir comigo”. Ele fumou uma pedra de crack e a atacou com uma faca. “Fui estuprada por vários dias”, revela. Só conseguiu sair de lá por conta do curso técnico em enfermagem e dois anos de faculdade. Começou a trabalhar na enfermaria do presídio. Contou em detalhes o ocorrido para a enfermeira chefe e descobriu o pior: o estuprador tinha HIV. “Fiquei desesperada. Queria fazer os exames, tomar os remédios para a profilaxia. Mas foram adiando. Fiquei definhando por dias. Queria morrer.”

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Foi então que conheceu Maria Clara de Sena, finalista do Prêmio CLAUDIA na categoria Políticas Públicas. Ela atua no Grupo de Trabalho e Prevenção Positiva (GTP+). A ONG dá suporte para os portadores de HIV, em Recife. “Eles me apoiaram muito, faziam visitas rotineiras”, explica Fernanda. Maria Clara é a única transexual no mundo no cargo de Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, órgão recomendado pelas Nações Unidas. A candidata inspeciona os locais onde as pessoas estão privadas de liberdade como prisões e asilos e assegura que os direitos humanos da população homossexual seja respeitada. “Por não sermos aceitas na sociedade somos marginalizadas. Muitas amigas ainda estão na prostituição, nos presídios e outras foram mortas, e enterradas de terno e gravata”, lamenta.

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Após três anos e três meses, Fernanda finalmente saiu da prisão. Processou o Estado pelos estupros e por ter contraído HIV e não perdeu uma oportunidade de contar a sua experiência na cadeia. Começou a ser perseguida. Estava em liberdade condicional quando policiais bateram na sua porta e a prenderam novamente. “A tua sorte é que a gente não quer te matar. Você é uma bandida, uma preta, um frango”, relata sobre o tratamento que recebeu dos agentes. No presídio de Igarassu, em Pernambuco, trabalhou na enfermaria. “Eu sofria muito ao ver que as transexuais e travestis eram torturadas”, diz.  Com a ajuda da ONG GTP+ e o Ministério Público, o presídio ganhou um pavilhão para os gays, transexuais e travestis. “Na prisão você encontra pedreiros, médicos, engenheiros. Há diferentes tipos de pessoas. Muitos ajudaram a construir o prédio. Todo o dinheiro que eu ganhava na enfermaria era para comprar os materiais”, conta.  

Quando inauguraram o espaço Sem Preconceitos, no pavilhão E, em novembro de 2014, aqueles que ocupariam a ala fizeram uma festa. A construção conta com oito celas decoradas com desenhos feitos pelos próprios presos e frases contra a homofobia. Fernanda comemorou em dobro. Foi o dia que saiu da cadeia. “Após 11 meses, tendo os meus direitos violados, fui solta por falta de provas e testemunhas.”

Hoje, aos 24 anos, ela é coordenadora estadual de políticas afirmativas para travestis, transexuais e bissexuais, em Recife, e faz especialização em enfermagem com foco em saúde da família. “Este ano vou prestar vestibular para medicina novamente. Sinto que estou mais preparada”, revela confiante em um futuro melhor. 

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