Numa era em que as pessoas fazem qualquer coisa para aparecer, só triunfam de verdade aquelas que se jogam sem pudor em um estilo que tem até nome-cabeça e voltou à moda: o camp
POR_ ARTHUR DAPIEVE, em texto publicado na revista LOLA
O que têm em comum Lady Gaga, Carmen Miranda, o grupo de rock Queen, o filme Hairspray, Elke Maravilha, Madonna, Elton John, Paris Hilton, cantoras baianas em geral e super-heróis espremidos em malhas coloridas? Chegou perto quem respondeu o exagero. Existe, porém, uma maneira mais exagerada e mais intelectual de dizer isso. O amor pelo artificial e pelo exagero, na definição da ensaísta americana Susan Sontag. Existe, ainda, uma maneira bem sintética e até meio chique de dizer o mesmo. Camp.
A palavra acaba de voltar à moda, mas começou a circular nos países de língua inglesa no começo do século 20, possivelmente importada da França. Já naquela época, significava algo ou alguém que exagerava na pose, ou seja, não tinha a ver só com as roupas usadas mas também com a atitude adotada e, num sentido mais geral, com um estilo de vida. Durante a maior parte dos últimos cem anos, o camp foi uma subcultura, quase marginal se, em tempos, não irrompesse espetacularmente comme il faut no meio da cultura de massas. Afinal, como diz outra definição popular na internet, atribuída a alguém de nome Indra Jahalani: Camp é popularidade, mais vulgaridade, mais inocência.
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Pode ser difícil identificar alguma inocência em Lady Gaga, nos clipes que lembram pornochanchadas ou nas roupas que valem por uma visita ao consultório ginecológico. Mas ela se fez a representante mais notória de um fenômeno do nosso tempo: o camp parece ter deixado de ser um nicho de mercado para se tornar o próprio mercado. Basta olhar em volta e perceber que praticamente tudo o que se enxerga na mídia mundial passa pelo exagero. Aliás, talvez esteja aí a chave para entender esse avanço do camp: numa era em que as pessoas fazem qualquer coisa para aparecer, só conseguem aparecer de verdade aquelas que se jogam de cabeça nisso, com descomunal exagero.
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De combinações estranhas à produções feitas com carne (!), Lady Gaga lidera o ranking das espalhafatosas do estilo Camp
Ironia vence a tragédia
A exemplo de Madonna Louise Veronica Ciccone espécie de santa padroeira do camp moderno , Lady Gaga descende de italianos. Seu nome de batismo é Stefani Joanne Angelina Germanotta. Isso pode ter ajudado a dar impulso genético à trajetória de exageros. Nele, a música, supostamen te seu ganha-focaccia, é detalhe. E, como se sabe, exagera-se bastante na Itália. Pesar a mão é um esporte nacional. Ho je, poucas coisas são mais camp do que o primeiro-ministro Silvio Berlusconi em seu cabelo preto asa-de-graúna cometendo gafes grandiloquentes. Italianos também são bons em ópera, e esse é um terreno camp por excelência, cheio de heroínas me gainfelizes envolvidas em tramas espalhafatosas.
Em um texto de 1964, Notas sobre o Camp, Susan Sontag buscou mapear o estilo em 58 proposições numeradas. Foi a primeira pensadora séria a se debruçar sobre o assunto, destacando, de cara, a estratégia que o camp adota para assediar nossa sensibilidade. Sou fortemente atraída pelo camp e, quase tanto, fortemente ofendida por ele, escreveu Susan, antes de assinalar o gosto dessa falta de gosto pelo artifício e pela estilização, não pela beleza.Longe de querer ditar regras, ela registrou as características do camp, entre elas a despolitização e a an droginia. Lady Gaga, por sinal, já teve que vir a público para desmentir que fosse um homem, depois que uma foto sugerira um volume suspeito dentro de sua calcinha.
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Susan, uma intelectual, não podia deixar de enxergar a sensibilidade camp em áreas onde não a enxergaríamos. Para ela, o fato de a palavra ter se tornado corrente no século 20 não implica que o fenômeno seja recente. Daí ter arrolado o pintor italiano Caravaggio (1571-1610) e o arquiteto catalão Antoni Gaudí (1852-1926) como tes temunhas, além do escritor irlandês Os car Wilde (1854-1900). Suas citações, como ser natural é uma pose muito difícil para se manter, pontuam Notas sobre o Camp. Embora ela não entre nesse particu lar geográfico, os três nomes mencionados indicam que Susan não enxergava o camp só nos Estados Unidos, terra dos livres, lar dos bravos e passarela dos exageros. Entre nossos contemporâneos, podemos citar o cineasta espanhol Pedro Al modóvar e a cantora islandesa Björk como ícones camp.
O camp relaciona-se bastante bem, a ponto de às vezes ambos se confundirem, com a subcultura gay. Nem todo homossexual, é óbvio, se caracteriza pelo exagero, no vestuário ou no comportamento (a perua típica é vorazmente heterossexual, vide Sarah Jessica Parker e sua turma de Sex and the City). Contudo, a comunidade gay é atraída pela exacerbação de características seja de um sexo seja de outro rapazes musculosos vestidos de couro ou drag queens de meia arrastão sobre pernas cabeludas.
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No Brasil, o camp pode ainda ser percebido como o primo rico do brega. Basta verificar seus muitos pontos de contato com Chacrinha, o cantor Falcão ou com a banda Mamonas Assassinas. De certa forma, Susan dá licença para a apreciação sem culpa do camp, pois enxerga ali a vitória do estilo sobre o conteúdo, da estética sobre a moralidade e da ironia sobre a tragédia.
Essa pode ser mais uma boa definição para camp, certo? Mas também serve para os nossos tempos.