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Mães compartilham o doloroso e solitário processo do luto perinatal

O luto perinatal é vivido por mães que perdem bebês durante a gestação ou após a primeira semana do parto. O tabu em torno do tema leva ao isolamento

Por Isabella D'Ercole Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
19 fev 2021, 17h00
Aquarela com contorno de rosto de mulher
 (Palmiro Domingues/CLAUDIA)
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A sala cheirava a ferro. De tempos em tempos, Andrezza Duarte sente de novo o odor e isso traz um turbilhão de lembranças. Foram 56 horas em trabalho de parto, uma situação extenuante decorrente de mais uma morte de sua pequena Stella, na 33a semana de gestação.

Andrezza diz mais uma morte porque, para ela, foram várias durante a gravidez. Tudo corria normal até o sétimo mês, quando, numa consulta de rotina, notou-se que o peso e o tamanho do bebê estavam abaixo do esperado. A mãe, hoje com 34 anos, ficou em repouso para tentar reverter o quadro.

Aí veio um ultrassom demorado e um eletrocardiograma que mostraram cardiopatias e uma mancha no tórax. Isolados, esses problemas não significariam nada, mas o fato da neném acumular as condições causava preocupação.

Andrezza já havia se consultado com oito obstetras desde o começo da gestação; nenhum parecia ter sintonia com ela. A última recomendou uma investigação mais profunda com especialistas. Após uma amniocentese, um estudo do líquido amniótico, veio o diagnóstico: Síndrome de Edwards, uma doença incompatível com a vida. “O médico falou para mim: ‘Sua filha não é normal’. Ali, ela morreu pela primeira vez”, conta a paulista.

Era o primeiro filho dela e do marido. Juntos e com recomendação médica, tomaram a decisão mais difícil de todas, a de interromper a gestação. “Sou a favor do aborto, mas eu não queria aquilo, era uma gravidez desejada. Ouvi do médico que, dentro da minha barriga, Stella estaria quentinha e segura, mas não conseguiria respirar ou comer sozinha fora. E mesmo que a equipe estivesse pronta para entubá-la assim que nascesse, corria o risco de não dar tempo”, conta.

Antes de resolver pelo aborto, Andrezza começou o processo na Justiça. “É uma burocracia sem tamanho. Foram duas semanas indo todos os dias no fórum. Fiz carta a próprio punho, levei um laudo médico. A gente contratou um advogado e ele precisou encontrar outro caso para alegar jurisprudência. Eu nem sabia se iria interromper e tinha que ficar explicando para uma pessoa que não conhecia nem a mim nem à minha família sobre o que estava vivendo. Foi muito cruel”, fala.

Até hoje, Andrezza não sabe se tomou a decisão certa. Foi a um centro espírita antes, queria entender o que aconteceria com a alma de Stella. Pela religião, a bebê iria para o fim da fila da evolução espiritual. “Mas antes de ser espírita, sou humana e acho que a Stella está em paz. Se nascer, ela vai sofrer”, falou a mulher que a recebeu no local.

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“Sempre acreditei em Deus, mas hoje isso mudou. Não perdi a fé, mas a confiança”, diz a jornalista. Ela adiou muitas vezes a interrupção até chegar ao parto. Andrezza não sabe responder se demorou tanto o nascimento de Stella porque ela, inconscientemente, queria manter a filha próxima, não estava pronta para se desligar. Porém, o tempo todo pediu para seu pai, morto alguns anos antes, que recebesse a neta onde estivesse.

“É o estado mais cru, vulnerável e honesto que uma pessoa pode estar”

Andrezza Duarte

 

 

Quando a bebê nasceu, já sem vida, foi para os braços da mãe. Andrezza e o marido tiraram fotos, seguraram a pequena, vestiram uma roupinha de Mulher-Maravilha. Poucos dias depois, seguiram com Stella para o crematório.

“Eu me concentro pra não esquecer a temperatura da mãozinha dela, o peso dela no meu quadril”, conta. Depois de encerrados os ritos, o casal se isolou por 40 dias longe do celular e dos familiares. Foram 40 dias entregues à dor e ao sofrimento sem nenhuma tentativa de suprimir sentimentos.

“Eu não tinha vivido o luto do meu pai corretamente e não queria que isso acontecesse de novo”, fala ela. Andrezza não dormia até amanhecer, tinha medo da noite trazer sonhos com o rosto de Stella. Algumas vezes, colocava a caixa com as cinzas ao seu lado na cama. Ligava o chuveiro e deitava no chão do banheiro para chorar. “Era uma dor física”, diz ela, que desenvolveu crises de pânico.

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No braço esquerdo, a tatuagem de duas asas envolvendo o número 2003 celebram Maria Paula, filha da executiva Maria Tereza de Jorge que morreu há 17 anos, dias antes da data oficial de seu parto. “É uma sensação de impotência, parece que você não é nada”, diz a mãe, hoje com 56 anos.

Não foi a primeira perda dela. Aos 30, alguns meses depois de parar de tomar pílula anticoncepcional, ela engravidou de gêmeos. Quando estava com um mês e meio de gestação, perdeu um bebê. No terceiro mês, outro. Triste e decepcionada, resolveu viajar com o marido – seria o primeiro destino internacional dela – em busca de uma pausa.

Durante a viagem, sofreu um acidente de esqui e precisou passar por uma cirurgia no braço. Aguentou a dor à base de morfina. Ela não poderia engravidar de novo por algum tempo, mas, mesmo com todas as contraindicações, descobriu uma nova gestação. Dessa vez, os exames indicavam que eram trigêmeos.

Extasiada, Maria Tereza finalmente realizaria o grande sonho de ser mãe. A primeira notícia ruim foi que, o que se imaginava ser um terceiro bebê era, na verdade, um cisto. Depois, aos três meses, a executiva descobriu que tinha perdido um dos gêmeos. “Não tive um sangramento, o bebê mumificou na minha barriga. Passei a ser extremamente cuidadosa, apesar de continuar trabalhando”, lembra ela. Maria Cecília chegou prematura, mas não precisou ficar no hospital. Ela cumpria uma profecia do pai de Maria Tereza, que já havia morrido, de que a filha lhe daria uma neta.

Aquarela com contornos de mulher grávida
(Palmiro Domingues/CLAUDIA)
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Seis anos depois, a paulista quis aumentar a família. Novamente, engravidou de gêmeos, mas perdeu um dos bebês precocemente. A gravidez seguiu e a barriga foi crescendo até Maria Tereza completar os oito meses.

Em dezembro de 2003, Maria Cecília ganhou uma festinha de aniversário. Ao chegar em casa, a mãe sentiu um cansaço fora do comum. Deitou-se e, quando acordou, sentiu a barriga dura. “Chorei de casa até a maternidade, pois sabia que tinha alguma coisa errada”, lembra. “No ultrassom, eu via a minha filha perfeita, mas não ouvia o coração. Em choque, eu me levantei da cama e fui em direção ao corredor do hospital falando para o médico: ‘O senhor não sabe de nada, nem diploma deve ter’ ”, recorda.

Só depois do obstetra dela chegar e conversar com o casal é que Maria Tereza aceitou a realidade: sua bebê tinha morrido. “Foi quando consegui chorar. A dor era inexplicável. Minha filha me trazia paz, por oito meses ela colocou uma barreira que afastava os problemas, só proporcionou alegria”, fala.

Maria Tereza conheceu sua filha no necrotério após um parto induzido. “Ela era perfeita. Sabia que não a teria fisicamente comigo, então peguei no pé, na mãozinha. Só me arrependo de não ter tirado uma foto; só tenho uma foto minha grávida”, conta. “Maria Cecília fala que tem cinco irmãos e ela também fez uma tatuagem em homenagem à Maria Paula. Até hoje, passo o aniversário da bebê, 8 de dezembro, em silêncio”, relata a paulista.

O caso de Maria Tereza era raro, segundo o médico. A placenta deslocou durante a noite e a neném entrou em sofrimento. A mãe não teve nenhum sintoma. “Eu carrego a culpa de não ter sentido nada, de não ter percebido. Fico pensando se o desfecho seria diferente”, admite ela, que demorou dois anos para sair de um ciclo de tristeza constante em que só se sentia compreendida pela mãe.

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Para a executiva, então com 38 anos, aquela era sua última chance de ter outro filho e, por isso, o luto ficava ainda mais pesado. Por algum tempo, lidou com as lembranças diárias da perda, como os seios cheios de leite e um choque na coluna que aparecia quando se emocionava, consequência de uma reação à anestesia na hora do parto normal.

Duas marcas permanecem até hoje, uma enxaqueca crônica e a fobia de lugares fechados. “As pessoas falavam: ‘Mas por que você sofre tanto se nem conviveu com ela?’ A verdade é que só quem passa por isso consegue entender a dor”, diz.

A crença de Maria Tereza é compartilhada por muitas outras mães que passam pelo luto perinatal e elas só encontram conforto em grupos de pais para falar do tema. “A sensação que dá é que a vida dos outros segue e a sua fica para trás”, explica Andrezza. Ela também se sentiu acolhida no ambiente dos grupos, contrastando com o que costumava ouvir longe dali.

Frases como “Tudo acontece por um motivo”, “Foi feita a vontade de Deus”, “Pelo menos ela não vai ficar em sofrimento”, “Você vai poder ter outros filhos ainda, é jovem” são destruidoras para essas mães – e as mais comuns vinda de pessoas que tentam consolar após a perda. Nossa sociedade não está habituada a falar de morte e muito menos a lidar com ela.

“O tema foi tabu por muitos anos e isso só vai mudar através da educação. Quanto mais falarmos, melhor. Os movimentos recentes que tratam de luto colaboraram para colocar a discussão em pauta. Ainda assim, o que acaba acontecendo muitas vezes é a mãe, no meio de seu processo de dor, ter que ensinar como ela deve ser tratada”, fala Beatriz Kesselring, enfermeira obstetra, psicanalista em formação e sócia-fundadora do Núcleo Cuidar, em São Paulo, que reúne grupos de pais lidando com o luto.

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“Foi o momento de virada do luto. Eu não estava mais chorando sozinha, no banho, eu mostrava minha tristeza para os outros”

Karina Meneghetti

Ela também sofreu com a perda de uma filha. “Normalmente, a intenção das pessoas é boa, elas estão demonstrando preocupação e amor, mas alguns comportamentos são muito prejudiciais. Por exemplo: não sugira desmontar o quarto do neném. Deixe a mãe falar do filho o quanto quiser, contar os planos que ela tinha feito. Chame a criança pelo nome, para validar sua existência”, recomenda. Ela sugere também oferecer ajuda prática, como ficar com os outros filhos do casal algumas horas ou dias, limpar a casa e cozinhar. “Esteja presente.”

A morte do filho não significa apenas a ausência, mas também a perda de muitos sonhos e planos para a criança – idealizações que começam assim que a mulher engravida. “O laço se forma antes. Para mim, desde que deixei de tomar anticoncepcional e comecei a tentar. Eu tinha 32 anos e havia adiado a maternidade para me dedicar à carreira. Achei que fosse ser mais rápido, mas só engravidei com 34”, conta a empreendedora Karina Meneghetti, 40 anos.

Foi uma gestação tranquila até os sete meses, quando a bolsa estourou antecipadamente. Como ela não entrou em trabalho de parto, o recomendado foi que ficasse num quarto do hospital aguardando. A cada dois dias, um novo ultrassom e exames de sangue eram feitos para assegurar a saúde de Bianca, a bebê.

“O médico dizia que era melhor ela dentro da minha barriga do que na UTI neonatal.” Karina ficou doze horas em trabalho de parto até que sua placenta descolou e foi necessário fazer uma cesária de emergência. A situação era piorada pela dor intensa, que deixou a mãe atordoada. “Eu não ouvia nada o que os médicos falavam, só segurava a mão do meu marido e rezava. Estava tão fora de mim que não percebi que ela não chorou.”

Bianca nasceu sem respirar. Os médicos tentaram reanimá-la, mas não conseguiram. “Eu sempre penso o que poderia ter sido feito de diferente. Não culpo ninguém, mas imagino se teria feito diferença recorrer antes à cesária em vez de ficar esperando”, fala a mãe. Bianca foi levada aos braços de Karina. A empreendedora pôde segurar a filha, ver seu rosto, mas não tirou fotos.

“Só depois aprendi que nos Estados Unidos e na Europa há protocolos para essas situações em que o casal tira fotos e fica com o bebê por mais tempo. Para nós, foi muito rápido, a única coisa que temos é um carimbo do pezinho dela”, afirma. Quando voltou ao quarto, ela pediu um remédio para dormir, não queria ficar acordada e lidar com a informação. Por alguns dias, ficou dopada.

Aquarela com contornos de mulher grávida
(Palmiro Domingues/CLAUDIA)

De volta à casa, sentiu falta da barriga, que sumiu mas não trouxe o bebê, como se esperava. “Eu não era a Karina de antes e não era a versão mãe que esperava ser. Demorei para olhar no espelho e me reconhecer, não sabia quem nasceria dessa dor. Meu corpo também era outro”, lembra ela, que, nos dois primeiros meses, acordava de noite ouvindo choro de neném.

Karina chegou a consolar pessoas que foram visitá-la. Recorda-se de dizer certa vez: “A gente fez o nosso melhor, mas ela não pôde ficar”. Sem saber se estava tentando se proteger ou aos outros, decidiu que precisava fazer algo, um movimento. Foi a um grupo de mães e contou sua história. Não chorou. Entendeu que evitava demonstrar fraqueza e disse a si mesma que era necessário chorar a morte de sua filha na frente dos outros.

Demorou três meses para conseguir. “Foi o momento de virada do luto. Eu não estava mais chorando sozinha, no banho, eu mostrava minha tristeza. Por aquele bebê não ter convivido com muita gente, a sociedade não valoriza sua perda; a existência fica restrita ao núcleo familiar. E você absorve isso também, parece que não se permite passar pela dor. Chorar também era uma forma de honrar a Bianca”, afirma.

Para Karina, a situação mudou muito sua empatia pelo luto do outro. E também a permitiu descobrir muitas mulheres que sofreram com perdas gestacionais e nunca haviam contado. O grupo de mães que começou a frequentar em 2015 existiu até 2019 e, após ter feito algum tempo de terapia, Karina virou voluntária para acolher mães.

Para ela, há um lapso na forma como esses casos são tratados desde o hospital. “São poucos os casos de médicos que conseguem validar aquela maternidade e tratar a perda de forma humanizada. A maioria só diz que você pode tentar de novo em seis meses, acho que querendo dar alguma esperança. Mas, nessa hora, era melhor que falassem: ‘Você sempre vai ser mãe desse bebê, ele é importante para você e sua família, se permita chorar’. E devem chamar a criança pelo nome. Para a mãe, aquele é o nome mais lindo do mundo”, diz Karina.

Beatriz concorda. Segundo ela, há uma sensação de abandono da equipe que acompanhou a mulher até ali. “Minha filha morreu com 9 meses e o médico me disse que precisaria se afastar porque não estava preparado para lidar com aquilo. Eu me senti totalmente sozinha”, conta, acrescentando que alguns hospitais já trabalham com protocolos para oferecer mais assistência.

Karina ressalta também a questão da certidão de nascimento e de morte que, dependendo do estado, não permite a inclusão do nome da criança no registro, impossibilitando, por exemplo, a placa no cemitério. “Falamos tanto de parto humanizado, mas não tratamos a morte da mesma forma”, ressalta ela, que todo outubro participa da corrente mundial “Wave of light”, com propósito de homenagear bebês que partiram cedo demais. “A gente acende uma vela pela Bianca, ela segue fazendo parte de nossas vidas.”

O fim do tabu sobre o tema seria uma libertação para mães e pais, que, a princípio, evitam falar do filho para não constranger os outros. “Muitas mulheres perdem o bebê antes das 12 semanas e não podem compartilhar o luto, porque não tinham revelado a gravidez. Falam que o prazo é para proteger os pais da decepção, mas na verdade os outros são poupados”, diz Andrezza.

Quando engravidou novamente, um ano depois de perder Stella, a empresária relutava em responder se era seu primeiro filho. Depois, entendeu que não era seu papel evitar o desconforto alheio. “O Oliver vai saber que teve uma irmã”, fala ela, que tinha criado um e-mail para Stella assim que engravidou, com o intuito de deixar registrado momentos importantes e recados que gostaria que a filha lesse. Hoje, ainda escreve às vezes.

“As pessoas acham mórbido, mas me faz bem”, conta. Abriu também uma página no Instagram, @precisamosfalarsobreluto, onde compartilhou com outras mulheres seu processo, ajudando muitas que sofriam sozinhas. Depois da perda, ela fez diversas terapias, incluindo uma intensiva de 16 sessões, chamada interpessoal, além de arteterapia, constelação familiar e microfisioterapia. Montou também um álbum de lembranças da filha.

Recomenda paciência a outras mulheres que passam pelo luto perinatal – consigo mesma e com o corpo, que nem sempre se cura na velocidade esperada e recorda constantemente das mudanças ocorridas – e a prática do autoperdão. “Falo para mim mesma que fiz o melhor que pude com o que sabia na época. Mas nem todos os dias são bons, tem dias que acordo triste. Eu e meu marido nos damos permissão para sofrer”, fala. “É o estado mais cru, vulnerável e honesto que uma pessoa pode estar”, ressalta.

O luto de um filho não tem fim, não tem tempo para terminar. “A gente aprende a viver apesar da ausência”, descreve Beatriz. “Aos poucos, trabalhamos internamente isso. Mesmo quem está em negação e passa por cima imediatamente depois da perda uma hora vai encarar os sinais de que precisa lidar com seu luto”, completa a enfermeira. Até lá, a quem está no entorno cabe dar colo e acolhimento.

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