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O livro e a autora por trás da questão do Enem sobre uma avó lésbica

"Parece-me que a prova inteira veio para lavar o lodo que jogaram sobre os professores", diz Natalia Borges Polesso, autora de "Amora".

Por Júlia Warken
Atualizado em 16 jan 2020, 05h54 - Publicado em 5 nov 2018, 16h00
 (Editora Dublinense/Divulgação)
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Como já é de praxe há algum tempo, a prova do Enem desse ano já mostrou algumas questões que abordam homossexualidade, racismo, machismo e desigualdade socioeconômica. Dessa vez, uma das perguntas mais comentadas do exame foi a que utilizou um trecho do livro “Amora”, de Natalia Borges Polesso, para que fosse feita a interpretação do texto.

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(Reprodução/Twitter)

A questão deu o que falar, assim como uma que abordava o pajubá, dialeto usado por gays e travestis. No caso da pergunta que fez a citação de “Amora”, o principal comentário foi o fato de que o texto fala sobre uma avó lésbica, cuja neta também é lésbica.

A abordagem é bem incomum, pois a proposta de “Amora” é justamente essa: mostrar que as histórias sobre lésbicas são plurais. O livro traz contos sobre adolescentes descobrindo a sexualidade e sobre idosas que há décadas romperam com a heteronormatividade; sobre paixões recentes e sobre aquelas que já duram uma vida; sobre a leveza do amor e sobre o que há de mais doloroso nele; sobre lésbicas discriminadas e também sobre aquelas que são aceitas no círculo social.

Enfim, como tantos outros livros, esse é um daqueles que versam sobre um leque variado de situações da vida humana. O que o torna particular é o fato de que todos os seus contos são sobre mulheres que amam mulheres.

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O livro e a autora por trás da questão do Enem sobre uma avó lésbica
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“Amora” foi lançado em 2015 e, no ano seguinte, venceu o Jabuti na categoria Contos. Trata-se da premiação mais importante da literatura nacional e Natalia estava concorrendo com nomes como Luís Fernando Veríssimo e Rubem Fonseca. Em setembro de 2018, o livro foi aprovado no PNLD (Plano Nacional do Livro Didático), o que significa que ele pode ser trabalhado em sala de aula nas escolas públicas de todo o país. Agora, após aparecer no Enem, a visibilidade da obra está ainda maior.

O MdeMulher conversou com a autora para saber sobre o que ela achou da questão do exame e sobre o que ela pensa a respeito da acalorada polêmica envolvendo ensino e pautas de cunho social. Também aproveitamos para perguntar qual resposta ela escolheria caso tivesse feito a prova do Enem, pois muita gente ficou dividida entre as alternativas B e C.

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MdeMulher – Na sua opinião, qual é a importância de ver uma questão com temática lésbica tendo espaço no Enem?

Natalia Borges Polesso – Eu tenho uma briga com a junção “temática lésbica”, acho que é um conflito familiar. É claro que tem sua especificidade, porque as duas personagens (avó e neta) são lésbicas. E é justamente esse protagonismo que vejo como importante. Então, uma questão como essa me faz pensar em todas as pessoas que nunca têm suas vivências reconhecidas, que nunca podem se encontrar em alguma coisa importante, que precisam sempre se esconder, ou se desculpar por existir.  Parece-me que a prova inteira veio para lavar o lodo que jogaram sobre os professores, para reconhecer a necessidade de uma educação ampla, pensante e libertadora.

MdM – Para além da usual polêmica em torno da temática LGBT, muita gente se surpreendeu ao ver que seu conto fala sobre uma avó lésbica cuja neta é lésbica também. Como surgiu a ideia de escrever uma história assim? 

Natalia – Essa história é sobre uma família. Sobre duas mulheres dessa família. Sobre gerações diferentes dessa família. É um conto sobre empatia e sobre o reconhecimento das liberdades. Enquanto a avó teve seu direito de amar e seu direito de viver seus desejos cerceado, pelo fato de amar uma mulher, a neta se vê numa situação parecida e avalia tudo o que é diferente para cada uma. Além disso, há um foco bastante grande na relação familiar e na leitura. A avó lê ‘A metamorfose’, de Kafka, para a neta quando pequena. A pergunta que permeia o texto é: como será se enxergar tão estranho, viver em uma sociedade em que você é impedido de existir como deseja, plenamente? Pensei em todas essas coisas quando escrevi o conto.

MdM – Mesmo em tempos de “Escola Sem Partido” e da aberta perseguição a professores que lançam temas sociais em sala de aula, “Amora” foi aprovado no PNDL recentemente. Como você vê esse cenário?

Natalia – Com cautela. Fico muito feliz com a aprovação no PNDL, fico feliz que o livro pode e vai ser escolhido por muitos educadores e educadoras de escolas públicas do Brasil. Mas não posso dizer que não sinto medo dessa onda conservadora e reacionária, que a tudo responde com ignorância. Intolerantes sempre existiram, mas agora sei que é preciso de uma força coletiva para barrar algumas dessas atrocidades. É preciso estar ciente das leis, é preciso ter apoio nas instituições. Não será fácil, mas precisamos estar juntos. Outra coisa que me preocupa é o crescente descrédito das instituições de ensino e dos professores. Temos que lutar contra isso.

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MdM – O que você achou da formulação da pergunta do Enem?

Natalia – Eu nunca fui muito boa em resolver questões de múltipla escolha. Tive que ler algumas vezes, primeiro porque achei curta. Mas depois entendi que tinha que ser daquele modo mesmo. Gosto do trecho escolhido e acho que se pode mesmo pensar na tensão ou no conflito que se estabelece. É interessante pensar em como construir essa sensação em tão poucas linhas. A pergunta também revelaria que evidências do texto o leitor ressalta para chegar a uma das conclusões. Fazer uma prova dessas nunca é simples!

MdM – Qual resposta você teria marcado na prova? 

Natalia – Acho que o autor nunca é a melhor pessoa para responder sobre o seu livro (risos). Eu marcaria a B.

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