‘Coringa’ realmente merece ser chamado de genial? A resposta é não
É um filme acima da média no universo dos quadrinhos - e só. "Coringa" escorrega feio na pretensão de tentar ser mais mais do que isso.
“Coringa” é o filme mais comentado da temporada e sua estreia, que acontece nessa quinta-feira (3), é uma das mais aguardadas do ano. De início, a empolgação naturalmente surgiu entre os fãs de HQs, afinal estamos falando de um vilão muito emblemático do universo dos super-heróis. Só que o filme protagonizado por Joaquin Phoenix transcendeu as barreiras do gênero e acabou gerando um novo tipo de hype.
Entenda por que “Coringa” está sendo tão ovacionado
Em setembro, “Coringa” passou a ser muito mais do que um filme audacioso dentre as produções do universo dos quadrinhos, pois levou para casa o prêmio máximo do Festival de Cinema de Veneza, o Leão de Ouro. Por essa ninguém esperava e o filme passou a ser incensadíssimo, elevado ao padrão de arte e validado por um juri que, até ontem, só premiava filmes que a gente sequer viu o cartaz.
Sim, o Festival de Veneza vem mostrando-se mais comercial desde 2017 e antes de “Coringa” premiou “A Forma da Água” e “Roma” como os melhores do ano. Em se tratando de mainstream, há um abismo enorme entre esses filmes e o vencedor de 2016 – o filipino “A Mulher Que se Foi”. Mesmo assim, foi uma surpresa ver “Coringa” levando a estatueta. Além do mais, o filme foi aplaudido por oito minutos depois da exibição no festival italiano.
Mas, afinal, o que supostamente torna esse filme tão especial? Boa parte das pessoas que tiveram acesso prévio a “Coringa” passaram a sinalizar que o filme de Todd Phillips – que é diretor e corroteirista, junto com Scott Silver – conseguiu a façanha de fazer uma união genial entre a vilania dos quadrinhos e a ascenção do terrorismo branco que vemos na vida real.
Muito se fala sobre a relação entre o que mostrado em “Coringa” e os massacres em escolas e outros tiroteios semelhantes. A palavra “realismo” vem sendo extensamente utilizada pelos críticos – profissionais e amadores – que falam do filme. Adjetivos como “brilhante”, “extraordinário” e “muito perturbador” também. O fato de que o filme bebe – e muito! – da fonte de Martin Scorcese é um outro detalhe largamente comentado e festejado.
O hype não poderia ser maior. De fato, seria absolutamente genial ter um filme que se utiliza do que há de mais pop no cinema atual – o universo dos super-heróis – para entregar ao público um filme que reflete com realismo sobre o colapso massivo dos valores contemporâneos. E tudo isso embalado em uma obra de alto nível artístico, com uma reflexão “cabeçuda” – digna de prêmios pomposamente intelectuais. E mais: fazendo isso de uma maneira tão redondinha que agrada a gregos e troianos, pois o filme também está sendo festejadíssimo pelos fãs de HQs.
Mas “Coringa” é tudo isso mesmo? A resposta é não.
Bom, mas para explicar o porquê dessa afirmação tão incisiva eu vou ter que dar SPOILERS do filme. Portanto, se você quer fugir deles, não leia o resto do texto antes de assistir ao filme. Depois volta aqui para ver se concorda comigo.
Para início de conversa, é preciso dizer o seguinte: “Coringa” é um filme acima da média dentro do gênero em que está inserido, o dos quadrinhos. Só que ele não é mais do que isso. E esse é o problema aqui. O longa tenta ser mais do que é, com uma pretensão incômoda e desequilibrada.
“Coringa” tem, de fato, dois trunfos que o destacam dentre os filmes de HQ: um caprichadíssimo cuidado estético e o casamento feliz entre um ator talentoso e um personagem que lhe permite explorar esse talento. Joaquin Phoenix está muito bom, isso é fato, e uma indicação ao Oscar não seria exagero. Indicações ao Oscar de Design de Produção (Direção de Arte) ou Fotografia também são cabíveis.
Por outro lado, é um grande exagero dizer que esse é um filme genial, artístico e inteligentemente provocador. Ele tenta ser, mas não é.
Não há qualquer tipo de sutileza nas duas horas que compõem “Coringa”. O filme tenta parecer disruptivo e inteligente, mas faz isso da maneira menos disruptiva e inteligente possível: abusando sem dó dos clichês e mastigando absolutamente tudo para o expectador.
Pretensioso e, ao mesmo tempo, totalmente mastigado
Por que este homem chamado Arthur Fleck se transformou num dos vilões mais sanguinários de todos os tempo? Essa é pergunta central do filme e, para respondê-la, a trama faz questão de mostrar que o personagem só encontra amargura em sua vida. Ele é uma vítima de absolutamente todas as circunstâncias possíveis. No universo dos quadrinhos, em que as situações são exageradas, isso é perfeitamente plausível. No universo dos filmes que tentam fazer críticas cabeçudas à sociedade vigente, essa construção é rasa como um pires.
Arthur é uma vítima da genética: ele é um homem com distúrbios mentais. É também uma vítima de sua condição econômica, pois é um cara pobre que vive num pequeno apartamento com a mãe. Sendo assim, precisa recorrer ao precário sistema de saúde pública para se tratar. Além disso, ele sofre pela falta de afeto, pois não tem amigos. Como se não bastasse, é brutalmente ridicularizado por trabalhar como palhaço e por ser esquisito aos olhos da sociedade – sendo espancado mais de uma vez, simplesmente por existir.
A gente fica sabendo de tudo isso nos primeiros minutos de “Coringa” e, naturalmente, sente pena deste homem. Logo depois, mais um baque: a prefeitura corta a verba do programa de saúde que atende Arthur. É o desaparelhamento das instituições acontecendo bem diante dos nossos olhos e a conexão com a vida real é inevitável.
Gotham vive dias horríveis e o filme mostra que a cidade está literalmente tomada pela podridão – os lixeiros estão em greve -, o que provoca uma infestação de ratos gigantes. Nesse cenário, um homem riquíssimo – Thomas Waine, o pai do Batman – se lança como candidato a prefeito. Ele tenta se vender como a única salvação para Gotham, ao mesmo tempo em menospreza os pobres. Realmente, tudo isso faz com que o filme mostre um reflexo cru da sociedade atual, o que é perturbador e muito instigante.
Mas o roteiro não se contenta em entregar tais elementos para que a evolução do personagem aconteça a partir disso. É preciso elevar o nível de tragédia pessoal à quinta potência. Com zero por cento de sutileza e um drama familiar que poderia ter saído da mente de Walcyr Carrasco, basicamente todas as pessoas em volta de Arthur são horríveis. Apenas três personagens totalmente unidimensionais fogem a essa regra.
Em contrapartida, o filme nos dá elementos extremamente expositivos para mostrar que Arthur é, em sua essência, um homem bom. Ele sonha em fazer carreira como comediante de stand-up e, ao contrário dos bem sucedidos colegas de palco, não faz piadas misóginas. Além disso, ama trabalhar como palhaço em um hospital infantil – e sofre ao ser demitido.
Com isso, “Coringa” tenta pregar uma peça esperta no público, mostrando que o maior inimigo desse triste homem é, na verdade, a sociedade podre na qual ele está inserido. O primeiro tiro disparado por Arthur gera no público aquele mesmo sentimento do primeiro tiro disparado pelo peladão de “Bacurau”. Na mente do expectador, o meme já vem pronto: “E tá errado?”.
Vilão ou herói sofrido de um povo com razões de sobra para se revoltar? Será que estamos torcendo pelo cara errado? Esse filme faz apologia à violência? Ou será que faz aflorar o niilista soturno que habita em todos nós? Essas perguntas vêm à mente e, num primeiro momento, elas ecoam com força.
Por fim, o filme realmente conseguiu fazer com que eu saísse do cinema perturbada e reflexiva. Mas, ao longo da digestão e do distanciamento, fica claro que “Coringa” se agarra com unhas e dentes à manipulação emocional do público, sem qualquer traço de sutileza. E o efeito disso pode ser poderoso no início, mas não perdura.
“Coringa” não é genial e não é brilhantemente provocador. É pretensioso demais e tenta ser inteligente ao mesmo em que subestima a inteligência do público. Além disso, entrega um desfecho que, enquanto suposta crítica social, não tem nada a dizer.
É um bom filme dentro do universo dos quadrinhos, que cumpre o papel de mostrar a origem de um personagem. Mas seu grande erro é tentar ser mais do que isso.