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Renata Brosina é jornalista, host de podcast e editora de moda com foco em luxo e sustentabilidade. Com 15 anos de carreira e alguns títulos internacionais no currículo, ela é curiosa, gosta de entrevistar e vestir pessoas, e analisar as transformações que vêm acontecendo no mercado.
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Existe Alta-costura no Brasil?

Você provavelmente já imagina a resposta, mas será que pelos motivos corretos?

Por Renata Brosina
Atualizado em 4 abr 2024, 17h28 - Publicado em 4 abr 2024, 17h28

Existe Alta-costura no Brasil? Antes de chegar à resposta, vale um passeio, tanto físico quanto histórico, pela Itália e França. Certa vez, passeando por uma das exposições de Giorgio Armani no seu museu em Milão, o Armani/Silos, me deparei com um telão que exibia a seguinte frase dita pelo próprio estilista: “A Alta-costura é o mais alto nível da moda e quero que continue assim”.

Ele, que entrou para o mundo do fashion em meados da década de 1970, não estava satisfeito em desfilar suas peças impecáveis, tanto do lado certo quanto do avesso, apenas no calendário de prêt-à-porter. Mesmo que nunca tivesse enxergado limites entre uma categoria e outra, e tivesse exposto seu mais alto nível de perfeição em roupas feitas em série, Sr. Armani sabia que poderia nos surpreender ainda mais. Em 2005, no ano de celebração dos seus 70 anos, ele lançou a Armani Privé. Trinta anos após ter lançado sua marca homônima.

Apesar de ser responsável pelas criações que borraram as linhas que dividem as duas indústrias, o universo da “Haute Couture“, termo original em francês, que também pode ser chamada de “Couture” , é mais complexo do que parece. Se para ele foi um desafio, imagine o quanto é complicado para quem não tem estrutura para isso.

Afinal, a Alta-costura não é um clube de assinatura, no qual basta preencher um formulário e pagar a mensalidade para se tornar membro. Também não é o suficiente fazer o público suspirar – é necessário alcançar uma excelência quase surreal. Mas só quem toca em um item de Couture sabe a sensação que é segurar algo tão valioso. Não pelo preço praticado no mercado, mas pela história que aquela construção carrega. É uma obra de arte. Ainda que seja uma camisa com ar casual da Valentino ou uma camiseta simples da Balenciaga. Pode parecer comum, mas nada ali é simplista. Mesmo!

Antes de falar dos detalhes por trás de cada peça, há regras básicas que tornam, à primeira vista, um enorme obstáculo para meros mortais. Para ser Alta-Costura, cada marca precisa ter um ateliê em Paris, com, pelo menos, quinze pessoas na equipe, e apresentar uma coleção com, no mínimo, cinquenta looks originais, divididos entre diurnos e noturnos.

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Aparentemente, difícil, mas não tanto – até chegar na execução. A exigência é que todas as roupas sejam construídas (é, na Couture, a palavra certa é “construção”) à mão – do bordado ao fechamento – com tecidos de altíssima qualidade.

Por ser reconhecida pelo trabalho artesanal sublime, a França mantém esse controle “de qualidade”. A prova é que, para certas tradições não serem extintas, a Chanel, em 1984, começou a comprar ateliês tradicionais para preservar a expertise de alto luxo. Na lista de fornecedores de savoir faire há os bordados do Atelier Montex e Lesage, Lemarié, que é conhecida pela produção excepcional de plumas e flores, os plissados do Les Ateliers Lognon, os chapéus da Maison Michel, as luvas da Causse e as bijuterias feitas pela Goossens.

O ateliê de calçados Massaro, responsável por criar, em 1957, o primeiro par de sapatos bicolor para Gabrielle Chanel também faz parte. A ideia é que esse movimento se mantenha – e não com exclusividade para a maison de Coco Chanel, mas para outras casas de moda (mesmo que sejam concorrentes). E eles são fundamentais para a Alta-costura, criada por Charles Frederick Worth em 1858, continuar existindo.

No início, a Haute Couture era vista como uma versão feminina do que os homens tinham para a alfaiataria de alto luxo. Nessa época, as mulheres enxergaram nesse movimento uma oportunidade para libertar o corpo feminino e adorná-lo com bordados, rendas e volumes de acordo com as suas medidas.

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Christian Dior Couture
O workshop Chanakya, em Mumbai, Índia, para Christian Dior Couture (Sophie Carre/Divulgação)

Ao longo do tempo, diversos nomes ficaram conhecidos por dar continuidade à arte da Couture, entre eles Gabrielle Chanel, que desfilou sua primeira coleção em 1913, e o famoso costureiro e mestre de Christian Dior e Pierre Balmain, Lucien Lelong. Inclusive, os pupilos de Monsieur Lelong que, após a Segunda Guerra Mundial deram start às suas próprias casas de moda, já sabiam que, desde 1945, a denominação “Alta-costura” era estritamente controlada pela Fédération de la Haute Couture et de la Mode (FHCM).

De fato, até hoje, quem define qual é a maison que pode utilizar o rótulo é uma comissão nomeada pelo Ministério da Indústria da França. Caso a grife não cumpra com o regulamento exigido, ela pode perder o direito de usá-la.

Na lista, há também requisitos como duas provas de roupa para a cliente final e ajustes ad aeternum (em bom português, para sempre). Se a compradora morar em Nova York e precisar de um reparo, significa que uma das chefes do ateliê atravessará o oceano para atendê-la.

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Para quem assistiu “Dior and I”, documentário que mostra o backstage da estreia de Raf Simons na maison, a lembrança da cena de desespero do estilista vem fácil – afinal, a tensão de ter apenas oito semanas para desenvolver uma coleção tão importante é sentida por nós também. Mas não bastava o cronograma apertado para a sua estreia.

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Trabalho e material, como as plumas delicadas neste para Chanel, precisam ser primorosos. (Anne Combaz/Divulgação)

Às vésperas do desfile de Inverno 2012, uma das chefes (com 42 anos de casa) precisou se ausentar para viajar aos Estados Unidos para fazer uma adaptação. A partir dessa situação difícil, o designer belga, que recém tinha saído do universo do prêt-à-porter, quando liderou as criações da Jil Sander, compreendeu que se uma cliente gasta 350 mil euros em uma peça, quer dizer que a sua demanda está acima do diretor criativo. E esse é um poder para poucas – são, aproximadamente, 4.000 compradoras no mundo todo.

Por outro lado, há grifes que oferecem serviço sob medida e customização, como Louis Vuitton, Prada e Gucci. Ainda assim, tendo todas as chances de entregar o seu melhor, estamos falando de prêt-à-porter. Outras optaram por criar sua própria categoria de “Alta Moda”. O exemplo máximo é a Dolce & Gabbana que, a cada apresentação, cria um verdadeiro espetáculo – que dura dias.

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Com o cuidado minucioso de Domenico Dolce, que tem forte veia de alfaiate, e zero máquinas envolvidas, a etiqueta desfila suas criações “fatto a mano” com metros e mais metros de tecidos, com direito a bordados, volumes e extravagância. Do jeito que a dupla de designers gosta e em solo italiano. Isso mostra que está tudo bem em não fazer parte da turma da Couture – e não seguir as normas exigidas pela Fédération de la Haute Couture et de la Mode.

Se colocar no mesmo nível de casas de Alta-costura, que têm uma grande responsabilidade, principalmente financeira, em honrar raízes e técnicas centenárias é quase uma aventura – neste caso, irresponsável. São processos que levam meses, muitas vezes, dedicando mais de 1.000 horas a apenas um vestido, com uma série de etapas meticulosas e tão inventivas, que só essa categoria consegue bancar.

Afinal, é preciso pagar bem a essas pessoas que se dedicam e estão absolutamente envolvidas no desenvolvimento. Além de ser necessário um nível de expertise sobre as técnicas acima do comum – o trabalho artesanal praticado nessas salas é diferente do tricô despretensioso que fazemos nas férias. Há uma herança, quase um espírito, de outra época. Quando as experimentações do feito à mão e sob medida eram estudos diários destes profissionais que estabeleceram a preciosidade e a qualidade.

Não à toa, Salvatore Ferragamo se matriculou na University of Southern California, em Los Angeles, para aprender sobre a anatomia humana e aplicar nos seus sapatos construídos manualmente. A obsessão pela perfeição, característica da primeira metade do século XX, é quase incompreensível hoje. Assim como as bolsas, que há quase cem anos, eram feitas pela Fendi sem o uso de máquinas – e o clássico alinhavar exposto das costuras marcou a estética da técnica conhecida como “Selleria”. Até hoje existe – e é cara, sim.

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Fendi Couture. (Divulgação/Divulgação)

Após tantas voltas pelas marcas europeias, é hora de desembarcar no Brasil – e relacionar a um fato recente. No último dia 24 de março, o brasileiro Reinaldo Lourenço apresentou sua coleção de…Couture. Ao longo da apresentação, surgiram peças com ar elegante, feitas com tecidos nobres, como gazar de seda, e muitos modelos eram bordados ou decorados com plumas.

Outras eram modernas, com direito a estampas de animal print, franzidos e texturas de pelo. O estilista, que celebrou seus quarenta anos na moda, já é conhecido há longa data por desenvolver roupas que traduzem o espírito urbano cosmopolita em silhuetas sofisticadas. Mas ele cometeu um erro, que, com certeza, é consciente. Usar o termo “Couture” é completamente inapropriado.

E não estou desmerecendo seu trabalho em nenhum momento. É uma questão de nomenclatura e apropriação de uma denominação de origem, que torna a associação ao correto mais difícil para o público leigo. Da mesma forma que champagne só pode ser produzido na região que leva seu nome – e fica localizada no nordeste francês. O vinho branco borbulhante brasileiro nunca será champagne. E está tudo bem ser espumante.

Sendo um ícone da moda brasileira, que construiu ao lado de outros nomes o que sabemos de passarela e estética além das estampas de coqueiro e biquínis, Reinaldo tem todo aval para elevar seu nome a uma categoria exclusiva e preciosa. Liderar esse movimento é essencial para o que vemos acontecer no mercado nacional e é, sim, importante estimular novas e antigas etiquetas a conquistar – e preservar – o que há de mais poderoso no nosso trabalho artesanal, na matéria-prima, como o algodão, que sai do Brasil para ser usada na produção de grifes internacionais – e volta custando mais caro.

Parece tão difícil olhar para o Brasil e extrair o que há de melhor. No entanto, não podemos generalizar. Há, sim, quem esteja pensando em construir sua própria identidade – e honrá-la até o fim. Pensando rápido, lembro de Patrícia Bonaldi, que ultrapassou limites até então desconhecidos e levou suas peças com bordados deslumbrantes para o mundo  todo conhecer.

Assim como sua xará, Patrícia Viera, que segue encantando o público com o seu trabalho artesanal usando couro – e nos surpreendendo com novas formas de explorar esse material ainda pouco usado no vestuário de festa.

Os estilistas brasileiros ainda são os responsáveis por inspirar gerações em busca de uma esperança numa profissão que ainda precisa vencer tantos obstáculos. Agora, eu pergunto: como vamos fortalecer a moda brasileira se, ainda, vivemos nesse desejo de comparação incansável com o que acontece lá fora? Querer ser uma maison francesa não vai salvar a moda por aqui.

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