Alta-Costura e a preciosidade do trabalho manual
Deixando de lado o movimento efêmero da moda, vemos o quanto o tempo é valioso
Privilegiar a atemporalidade é uma das mensagens apresentadas na última temporada de Inverno 2023 nas passarelas de alta-costura. Há quem atribua esse movimento ao quiet luxury, a estética discreta, sem logos e ostentação, que toma conta das passarelas tradicionais de inverno e verão, além das mídias sociais. E isso vem deixando os aficionados a tendências um pouco incomodados e querendo novidades.
Entretanto, apesar das duas categorias, couture e prêt-à-porter, acompanharem ritmos semelhantes, o que está acontecendo com as coleções mais singulares (e caras, diga-se) da indústria é o resgate dos seus próprios valores. Ou seja, a alta-costura apenas sendo ela própria.
Giorgio Armani, sem hesitar, uma vez contou que o seu sonho era fazer parte do mais alto nível da moda. Mesmo fazendo a sua marca homônima com esmero, se desafiar na criação de coleções ainda mais sofisticadas era tentador. Em 2005, o estilista italiano, então, lançou a Armani Privé com o propósito de levar todo o seu olhar e elegância para as passarelas parisienses.
Há 18 anos, ele mostra que o seu sonho era possível, sim, e com qualidade. Porém, não é apenas sonhando que se alcança um espacinho no exclusivo hall da alta-costura. É necessário se dedicar ao fazer manual e suas complexidades, e, claro, respeitar a fórmula exigida pelo seu órgão regulador, a Fédération de la Haute Couture et de la Mode. Diferente do prêt-à-porter, no qual as roupas são produzidas em série e com auxílio de máquinas de costura, na alta-costura, elas são criadas totalmente à mão. E levam horas, muitas horas, para serem feitas, com dedicação exclusiva a cada item.
Dos bordados à construção de cada vestido (ou camisa, como a Valentino mostrou no look de abertura do seu último desfile), as etapas são executadas por artesãos que estão à frente dos ateliês, seja dentro das próprias maisons ou conhecidos por desenvolver técnicas específicas, a maioria centenária. No segundo caso, relembro do importante movimento de valorização do savoir faire, do saber fazer, grande parte francês, que, se não tivesse sido incentivado pela Chanel, teria significado o fechamento de muitas portas.
Em 1984, a grife deu start ao “Métier d’Art” (profissões de arte, em tradução livre), grupo de ateliês tradicionais que foram comprados com o intuito de preservar a expertise do artesanato para o luxo. Lesage, Lemarié, Maison Michel e Goossens são alguns dos nomes que se tornaram fornecedores de bordados, tweed, flores, plumas, chapéus e bijuterias, não só da Chanel, mas da Balenciaga e Schiaparelli também.
“Mas a Chanel está possibilitando que etiquetas concorrentes tenham acesso a essas mãos tão valiosas?”. Sim, o propósito é muito maior do que guardar a sete chaves uma produção excepcional – e, se você andar pelos ateliês, verá cada artesão com o croqui de uma label diferente. Afinal, promover a valorização e aplicar o preciosismo às roupas está acima da competitividade. A matéria-prima, que permite o olhar com a lupa para detectar todo esse tesouro que são as criações de couture, também tem sua distância do que vemos nas passarelas comerciais.
Ainda que o casualwear tenha ganhado espaço nas últimas estações, a camiseta não é apenas uma camiseta. O jeans, como a Valentino (mais uma vez) mostrou, não é apenas um jeans. Neste caso, o modelo five pockets, que abriu o desfile, era uma construção à base de gazar de seda com bordado (de milhares!) de contas e miçangas. Quem também levou a ideia do denim para sua coleção foi Demna Gvasalia, mas tratava-se de uma lona, pintada à mão.
E parecia jeans, mas a alta-costura é sobre o detalhe profundo e o cuidado extremo com cada criação fantástica. Exagero? Nem um pouco. Saber apreciar um trabalho único vai além do grito do público que exige “novidade”. A pintura também foi destaque nas criações de Daniel Roseberry para Schiaparelli. Todas as roupas foram pintadas à mão. Nos últimos tempos, algumas grifes viraram reféns do julgamento de falta de algo “disruptivo”.
Caso das linhas limpas e elegantes feitas por Maria Grazia na Dior ou pelo novo jeito de Virginie Viard fazer a mulher Chanel andar pelo Rio Sena com o seu cachorro, à bordo de um tailleur de tweed chique, muito chique. Mas os tempos são outros. E a couture também.
Da mesma maneira que o prêt-à-porter nos ensinou que é possível produzir peças pomposas em série, a alta-costura está mostrando que está tudo bem construir roupas simples e casuais com meticulosidade. O mais especial em tudo isso é que, se falamos sobre a vida longa das peças, daquelas que não vão ser declaradas “substituídas” na temporada seguinte, é possível resgatar o real valor da moda de luxo. E respeitar as mais de mil horas de construção de cada roupa, por cada artesão que está há anos no dia a dia fazendo parte da história de algo que transcende a tendência ou a viralização nas redes sociais. São camadas e camadas que ela pode nos presentear. E, admirá-la, mesmo sem poder comprá-la, faz parte de um processo encantador.