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@fabianesecches Fabiane Secches escreve sobre cinema, literatura e psicanálise.
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Uma primavera incerta

E uma história de amor que floresce em todas estações

Por Fabiane Secches
27 jun 2024, 16h49
Detalhe do quadro Julie Manet, de Pierre-Auguste Renoir
Detalhe do quadro Julie Manet, de Pierre-Auguste Renoir (Google Art Project/Reprodução)
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Do lado de fora da janela, uma árvore frondosa me olha. Não sei o nome dela e ela também não sabe o meu, mas somos amigas. 

No pior do inverno, temi que ela nunca voltasse a ser verde. Mas quando a primavera espreitava, dos galhos retorcidos, brotaram flores rosadas. Desconfiei que as pétalas logo cairiam, dando lugar às folhagens. 

Nem sempre é possível imaginar o que vai acontecer com uma planta, mas dessa vez foi assim.

Quando Magali morreu, a árvore ainda estava coberta de rosa. Depois, cada pétala despregando me lembrava de que o tempo e o mundo continuavam.

Dezesseis anos de um grude sem igual, banho, cama, sofá, escrivaninha, mesa, tapete, poltrona, edredom, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Colônia, manhãs esticadas nas varandas dos endereços em que moramos juntas. 

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Agora Magali, minha casa em todas as casas, não está mais aqui. Sou apenas eu novamente.

Lá no alto da árvore verde, as últimas pétalas cor-de-rosa resistiam. Acompanhei com apreensão, num desejo insensato de que, por protesto, teimassem em cair.

Minha amiga árvore não pôde atender a esse capricho e passou a exibir sua copa verdíssima. Magali não chegou a conhecer nenhuma dessas folhas, mas elas estão lá, esplendorosas, alheias à existência perfeita da gata. 

O que não existia agora existe, e o que existia tanto não está mais ao alcance dos olhos ou das mãos.

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Faz três meses e ainda não consegui guardar os brinquedos, nem dar a notícia para o dr. Valdo, bruxo que entende a língua dos gatos e cuidou tão bem dela por mais de uma década. 

Dois dias depois que Magali morreu, encontrei uma família de patos na margem do rio e pensei que embora os pequenos fossem minúsculos, um dia cresceriam, envelheceriam e morreriam como ela. 

Uma vida longa para uma gata que amou e foi amada. Poderia ser um conforto, se fosse possível encontrar alento numa separação como essa. Nossos corpos se entendiam como numa dança. Desde que ela nasceu, é a primeira primavera que passamos separadas. Uma primavera incerta. 

Todas as vezes em que, distraída, me pego contente por reencontrar o sol e a natureza exuberante, também fico um pouco magoada. Magali enfrentou um inverno rigoroso, de luz rara e leitosa.

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Como recompensa frouxa, pôde conhecer a neve, suas patas de algodão deixaram registro: ela esteve aqui. A neve escorreu com pressa e, não fossem duas fotografias, eu me perguntaria se aconteceu. 

Não parece justo com uma gata que cruzou um oceano e recebeu a nova vida com boa vontade, que essa nova vida durasse apenas seis meses.

No avião, comeu petisco de atum e nos ajudou a suportar as horas. Magali cuidava da gente enquanto pensávamos cuidar dela. Se recebia cafuné, retribuia com lambidas obstinadas, ronrons dengosos, afofando as mãozinhas. Um repositório infinito de ternura.

Ela era meu norte, e me orientava num país estrangeiro, de língua difícil e costumes diferentes. Eu ando pelas ruas como um fantasma, uma experiência quase divertida. Mas ela me via, e antes mesmo que eu estivesse no seu campo de visão.

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Orelhas que acompanham sons que não escutamos, bigodes mais perspicazes do que antenas, um nariz rosado com super poderes. Quantos sentidos afinados para conhecer esse mundo invisível para nós, quanta sabedoria para traduzi-lo.

Na semana que passou, eu trouxe para casa um vaso de tomilho, e pensei no quanto ela teria ficado entusiasmada com o perfume. Magali teria me recebido na porta, inspecionado as compras do mercado na sacola. 

Fizemos batatas para o jantar e imaginei ela na cadeira ou na mesa, curiosa e gulosa, acompanhando compenetrada. Enquanto montava a travessa para levar ao forno, pensei na alegria de encontrar bancas de aspargos e morangos, presentes da estação, e no vazio de uma casa ensolarada, sem Magali.

Escrevi acima que agora sou apenas eu novamente. Não é verdade. Quando minha gata morreu, li um ensaio triste e bonito: a autora dizia que a pessoa amada e perdida havia passado a fazer parte da tapeçaria de quem ela havia se tornado, trançada aos seus fios. 

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Ao lado da árvore frondosa fica um pinheiro perene, que está lá desde que chegamos, e deve continuar quando não estivermos mais aqui.

Ele pode assegurar: naquele apartamento, no segundo andar de um prédio de tijolos de mais de cem anos, viveu uma gata linda chamada Magali. 

Não foi sonho, devaneio, invenção. Por mais espantoso que seja, ela existiu.

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