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Psicanalista e pesquisadora de literatura na Universidade de São Paulo, @fabianesecches escreve, dá aulas e traduz livros.
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Somos o outro de alguém

Uma reflexão sobre os sentimentos diante de uma situação de guerra

Por Fabiane Secches
Atualizado em 1 nov 2023, 17h28 - Publicado em 1 nov 2023, 16h21

É permitido sentir alegria num mundo horrível?, pergunta a publicitária Luiza Voll em seu perfil no Instagram. Talvez essa questão assombre boa parte de nós, parte que é afetada todos os dias por notícias terríveis que circulam nos jornais e nas redes sociais.

Nós que nos indignamos e nos entristecemos, mas que continuamos as nossas vidas, continuamos permeáveis à beleza das pequenas coisas que persistem entre os escombros. Comemos chocolate, ouvimos música, observamos os gatos se esticarem, testemunhamos as plantas florescerem e secarem.

E, diante das notícias de um mundo que padece, mais perto ou mais longe de nós, também sentimos compaixão, tristeza, raiva. Quando sentimos alegria por qualquer coisa alheia à destruição, com ela vem também a culpa. Como se sentimentos contraditórios não pudessem coexistir. Como se a alegria negasse a dor, como se fosse um ultraje que apenas atestaria a insensibilidade de quem a experimenta.

Outro dia, vi uma tirinha em que uma pessoa se informava sobre o absurdo da guerra e não sabia lidar com a realidade de que a vida seguia em meio ao absurdo. As pessoas continuavam passeando com seus cachorros, ela dizia, com dificuldade de compreender como não paramos tudo para cuidar do sofrimento do mundo.

Pensei, ao ler, que os cachorros merecem continuar a passear. Que quando desistirmos de cuidar de nossos cachorros, de nossas relações de vizinhança, de amizade, de afeto, então ficaria ainda mais fácil ceder à descrença, já que não nos restaria nada com que nos importar. Mas como é desafiador sustentar a complexidade de uma existência carregada de ambivalências, que não segue nenhuma cartilha. Eu diria que é tão difícil quanto necessário sentir alegria num mundo horrível. É isso que também nos humaniza e nos sensibiliza.

De outro lado, seria permitido sentir medo, se a pessoa não estiver sendo fisicamente esmagada pelo horror? Recentemente, a psiquiatra e escritora Natalia Timerman escreveu um texto dizendo que, para criticar os ataques cruéis de Israel a Palestina, algumas pessoas estão, por sua vez, atacando o povo judeu, numa triste escalada de antissemitismo diante da qual ela confessa sentir medo, pela primeira vez na vida, por ser judia.

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Natalia publicou há poucos meses um romance de inspiração autobiográfica, As Pequenas Chances, no qual o judaísmo e a sua busca pela história familiar judaica são grandes pilares, como têm sido tema de muitas de suas entrevistas e participações em debates públicos.

Embora tenha se posicionado em outras ocasiões a favor do cessar-fogo e tenha se solidarizado com o sofrimento do povo palestino, seu texto foi interpretado por algumas pessoas como uma defesa infeliz não apenas do povo judeu, mas, por extensão, do estado de Israel  — salto que só pode ser compreendido num mundo tão apressado em vigiar, julgar e punir.

Para algumas pessoas, Natalia sequer teria legitimidade para sentir medo ou, ao menos, não teria legitimidade para verbalizar seu medo quando outras pessoas estão sofrendo as consequências imediatas da guerra. Como se a quantidade de medo fosse limitada e, ao exibir o seu, Natalia estivesse subtraindo o direito de outras pessoas o sentirem. Como se a qualidade do medo estivesse ameaçada: se ela sente medo, que nome teria o que sentem as pessoas que estão sendo massacradas pelo conflito? Natalia Timerman não estava defendendo que seu medo fosse pauta de discussão na ONU. Ela estava apenas fazendo o que faz por ofício: escrever um texto, em português, para leitores do Brasil.

Não raro, e infelizmente, vemos acontecer tentativas de desqualificar ideias e opiniões porque não gostamos delas. Porque elas nos desagradam. Criticamos as guerras, mas agimos de modo semelhante, em menor grau, ao sermos tão intransigentes com as diferenças.

Se pudéssemos fazer um exercício radical de alteridade, talvez não estaríamos testemunhando, em menor e em maior escala, a tentativa de destruição do outro. Nós também somos o outro de alguém. Ou, como resumiu perfeitamente a escritora Toni Morrinson, em A Origem dos Outros, o “risco de sentir empatia pelo estrangeiro é a possibilidade de se tornar estrangeiro”.

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A forma com que Natalia Timerman foi atacada poderia ser chamada de linchamento, modus operandi comum ao nosso tempo. Diferentemente de discordâncias saudáveis, que podem enriquecer qualquer debate, o linchamento tenta invalidar o direito do outro de sentir e de expressar o que sente, quer seja alegria, quer seja medo.

Dependendo do ângulo, todo sentimento é inoportuno. Essa postura bélica tem se tornado a regra até mesmo entre pessoas que lamentam a guerra. Enquanto a violência for a resposta para todas as perguntas, que perspectiva de paz poderemos ter?

Pois em meio a tanta hostilidade, alguns exemplos me fazem ter um fiapo de esperança, se me for permitido sentir esperança. Um deles é quando vejo pessoas de Israel e da Palestina unidas pedindo a paz. Quando vejo manifestações judaicas, nas ruas, nas redes sociais, em diferentes lugares do mundo, pedindo que Israel pare os ataques imediatamente e que jamais tente legitimá-los em seu nome. Quando vejo pessoas palestinas pedindo a liberação dos reféns sequestrados pelo Hamas, grupo terrorista que não representa a totalidade de um povo tão injustiçado.

O exemplo mais radical de que é possível defender o pacifismo mesmo quando se está profundamente ferido são as notícias de familiares que perderam pessoas queridas e não pedem retaliação. Pedem paz: “(…) não quero nenhuma vingança em meu nome”, diz Michal Halev, que teve o filho Laor morto pelo Hamas. “Matar não é a resposta, a guerra não é a resposta. O terror só trará mais horror”.

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