Amor em tempos digitais
Vínculos líquidos podem ser esconderijos fáceis para as cotidianas fugas dos encontros com os nossos próprios espelhos
“Relacionar-se é caminhar na neblina, sem certezas sobre nada.”
A frase escrita por Baumaun, renomado sociólogo e filósofo polonês, está em perfeita sintonia com os ensinamentos de Jacques Lacan, psicanalista francês que revolucionou os estudos freudianos após a segunda guerra mundial.
Para Lacan, “amar é dar aquilo que não se tem para quem não o quer”. A profundidade da fala de Lacan, inspirada em O Banquete, de Platão, nos diz muito e foi objeto de grandes publicações e estudos psicanalíticos e filosóficos.
Se amar é dar o que não se tem, é preciso estar em “falta” para expressar o amor. Na linha da psicanálise lacaniana, o sujeito que está em falta é aquele que renuncia às inconscientes zonas de conforto para se revelar ao Outro a partir dos laços da verdadeira intimidade, sem saber ao certo o que o Outro fará com essas revelações.
Criar intimidade e ser visto pode ser, por demais, angustiante. Não é fácil se despir das máscaras que sustentam jogos de poder inconscientes para permitir que o Outro saiba realmente quem somos.
Por outro lado, temos visto nos tempos de amores digitais que a oferta de pessoas disponíveis para preencher o vazio existencial que carregamos aparenta ser farta. Basta um clique em aplicativos ou curtidas em redes sociais para que se revelem pessoas a todo canto: belas, filtradas, divertidas. Ao primeiro clique, tudo parece fantástico.
O questionamento que fica é: em tempos digitais, temos observado, em nossas interações pessoais, pessoas dispostas a criar vínculos estáveis de intimidade sem cancelar, excluir ou apagar o Outro por não ser assim tão perfeito quanto aparentava ser ao primeiro clique?
Para essa resposta, voltemos à Bauman, que já tecia críticas ao denominado “amor líquido”, termo que cunhou para designar os relacionamentos descartáveis. Com tantas ofertas digitais de novas pessoas, investir em um único relacionamento estável pode parecer utopia para muitos. Ao primeiro sinal de desconforto, trocam-se os amores como trocam-se as roupas, sem que a verdadeira beleza que os relacionamentos interpessoais nos trazem seja revelada. Lembremos, relacionamento amoroso é material de estudo. Quais vêm sendo os nossos aprendizados nessa matéria da faculdade da vida? Nossas fontes de estudo para o autoconhecimento são as nossas interações pessoais. É exatamente por isso que os vínculos líquidos podem ser esconderijos fáceis para as cotidianas fugas dos encontros com os nossos próprios espelhos, afinal, nos vemos no Outro. E a qualidade do que estamos vendo, pode e deve ser questionada.
A partir de toda essa perspectiva, outros desdobramentos nos visitam. A hiperexposição nas redes sociais de vidas perfeitas, tantas vezes criadas para esconder angústias ocultas em realidades montadas para agradar ao Outro, são atrativos perfeitos para stalkers, que fantasiam e desejam possuir pessoas idealizadas.
Basta um clique para que o stalker saiba tudo sobre a vida da sua presa, o que pode levar a perseguições obsessivas para acompanhar a realidade virtual de alguém que talvez sequer seja como aparenta.
Lembramos, aqui, que perseguir alguém de forma reiterada é crime. Mas para além das violências às intimidades virtuais expostas, cabe – e sempre caberá – nos questionar se em tempos de amor virtual, estamos nos permitindo amar e ser livres.