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Por Revolução das Mulheres Comuns
A editora é mãe da Catarina, "boadrasta" do Bruno e par do Rodolfo. Ela aprende sempre com o que chama de revolução das mulheres comuns. Compartilha suas histórias e as histórias de gente interessante
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O seu marido não. Nem o meu. Mas o dela, talvez

Não sei como te explicar que você deveria se importar com a vida de outras mulheres. Só que falar sobre armas é falar sobre isso

Por Lia Rizzo
Atualizado em 18 jan 2019, 10h45 - Publicado em 17 jan 2019, 13h48

Não faz muito tempo, uma pessoa querida de meu convívio ligou pedindo para conversar. Do outro lado da linha, encheu o peito de coragem e o abriu. Esta pessoa, a quem chamarei de Eva, contou ter sido abusada pelo pai na infância, desde criança até o início da adolescência. A mãe, uma mulher muito trabalhadora e correta, nunca desconfiou.

Eva demorou a entender o que se passava quando os abusos começaram, sentia raiva e tristeza, mas tinha medo. Em algum momento daqueles anos, ela se fortaleceu e resolveu que contaria para a mãe. Descobriu então que o pai guardava uma arma em casa. E aquela ameaça silenciosa avalizou o que o ele dizia ao fim de cada abuso. “O medo virou pavor. Aquela era a prova de que ele podia mesmo matar minha mãe, meu resto de família. Ele tinha aquela arma em casa.”.

Deixa eu avisar logo de cara. Não tenho propriedade (ou intenção) para analisar os meandros do decreto que flexibiliza a posse de armas assinado pelo novo presidente no início desta semana. E também não sei como te explicar que você deveria se importar com a vida de outras mulheres. Mas falar sobre armas é falar sobre isso.

Aqui em CLAUDIA acompanhamos as estatísticas de violência contra a mulher e feminicídio antes mesmo de crimes desta natureza ganharem alcunha e penalidades próprias. Aqueles assassinatos de mulheres que acontecem justamente pelo fato delas serem mulheres, sem chance de defesa e em que o algoz é um homem. Um homem, conforme as estatísticas também, que quase sempre é próximo, do seu convívio e não raro ataca dentro da própria casa. Nos mesmos moldes ocorrem a maioria dos abusos sexuais contra crianças, adolescentes e adultos. Gente que, como Eva, está indefesa na condição de vulnerável – que até a lei trata desta forma quando falamos em menores de idade – e pela covardia habitual da abordagem.

Erica Paes, ex-lutadora de MMA e das principais ativistas no enfrentamento da violência contra mulher, é especialista em autodefesa para mulheres. Criou, a partir de sua experiência como vítima de agressão doméstica e duas tentativas de estupro, o programa Eu Sei Me Defender. Erica ensina gratuitamente suas técnicas de artes marciais adaptadas depois de estudos minuciosos dos modos de agir e abordar dos agressores; seja pelos relatos das alunas que recebe ou pelos casos que se tornam notícia. Via de regra, ela conta, a abordagem tem características de premeditação. A vítima está sempre em situação de desvantagem e é comumente atacada por trás, minimizando a chance de reação.

Carregar uma arma, então, parece uma chance para essas mulheres? 

Esta resposta tem muito mais a ver com desarmar homens do que com carregar armas. É bastante improvável que em uma situação de ataque alguém se lembre, tenha força ou sangue frio para sacar e engatilhar a arma. Mulher ou homem. Logo, o esforço que se faz necessário e que funcionaria muito provavelmente como uma das soluções para frear o crescimento epidemiológico dos índices de crimes contra mulheres seria dificultar algo que já era muito frouxo. Hoje, a chance de sobrevivência a um ataque feminicida está diretamente ligada ao instrumento que foi usado. A consumação de um estupro ou abuso sexual, também.

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Dos 25 países em que mais se matam mulheres, 14 estão na América Latina e o Brasil é um deles. Somente em São Paulo, 17% dos feminicídios no último ano foram cometidos com arma de fogo. Este é também o meio mais usado contra mulheres até 30 anos, como mostrou pesquisa recente conduzida pela promotora Valéria Scarance, do Ministério Público de São Paulo. Quando comentei esses dados em um grupo de colegas, me surpreendi ao escutar de uma delas que acreditava que eles refletiam a realidade de periferias somente. E que, provavelmente, os algozes já seriam homens violentos ou de índole duvidosa. Não tenho a menor dúvida  de que é na periferia que mais mulheres estão ameaçadas. E nem sobre a índole de um homem que maltrata e agride física ou emocionalmente uma mulher. A palavra “duvidosa” é branda demais inclusive. Porém, precisei descortinar o que talvez fosse um segredo para a moça que fez tais afirmações.

Como disse a promotora Valéria Scarance, o feminicida em regra é réu primário, possui bons antecedentes e não tem histórico de demonstrar socialmente sua agressividade. O mesmo vale para abusadores como o de Eva. O homem que a violentou é alguém de quem já ouvi comentários como “Sr. Fulano não faria mal a uma mosca” ou “não é lá muito amigo de trabalho, mas não é má pessoa”.  O que mais eles têm em comum? O fato de acreditarem que a esposa, ex-namorada ou companheira, filha ou colega são instrumento de posse. E de se valerem de qualquer meio que lhes confira poder adicional sobre essa propriedade, quando ela não obedece aos seus desmandos, se comporta de maneira supostamente inadequada ou decide que ele não cabe mais em sua vida.

Me pergunto, depois de debruçar em todas essas informações que compartilhei aqui, olhando para os países onde a posse de armas foi flexibilizada e os índices de criminalidade e morte de inocentes continuaram a crescer, enquanto a segurança pública não melhorou… quantos anos de violação Eva poderia ter evitado se o pai não tivesse a facilidade de carregar uma arma de fogo e tudo que ela simboliza? E não somente no imaginário de uma criança abusada, aliás. Quantas das 33 mulheres mortas nos primeiros 11 dias deste ano teriam sobrevivido?

Segurança pública é problema nosso, mas não nossa responsabilidade  

Vivo no privilégio de dormir sabendo que meu companheiro não atentaria contra a minha vida. Mas não sei se o dela, aquela moça ali ao lado ou que eu nem conheço, já não está planejando atacá-la nesta noite. Porque é dele que estamos falando e é para ele que fica mais fácil. Então durmo no privilégio, mas nem de longe durmo tranquila. Parafraseando Audre Lorde, não sei ser livre enquanto tantas mulheres são prisioneiras, ainda que as correntes delas sejam diferentes das minhas.

Tenho ainda muita dificuldade em compreender quem vê neste decreto e em qualquer outro que arme cidadãos, um sopro de esperança em dias menos violentos e assustadores. Apesar de segurança pública ser um problema para nós, não é nossa responsabilidade. Estão aí governo, impostos, autoridades que poderiam tentar converter a habilidade de oratória em planos e ações efetivas para que não tenhamos mais medo. E não estou falando por ser mulher. Tenho filha, enteado, marido, família, amigos, gente que amo profundamente e por quem temo. Os índices gerais de violência chocam e essas histórias parecem estar sempre mais próximas e reais para nós.

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Contudo, falo também por ser mulher. Porque é principalmente a nós (e a outras minorias, conforme pode ser lido no decreto, em especial no tocante a áreas rurais) que essa decisão desarma. E desalma.

 

 

 

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