O corpo estendido no caixão. O padre invocando Maria. O cheiro forte de flor, aquele odor de cemitério e não de jardins. Aliás, funerárias trazem aromas de dor. Tudo meio ocre, seco, quase um vômito pisado. O calor em Botafogo era para lá do Senegal. Escorriam as lágrimas que se misturavam ao suor. Uma atmosfera contrita, solene. Mas por trás dos óculos escuros, dos laquês, dos terços de mão, eu vi um lampejo de sacanagem.
Na capela, percebi olhares trocados entre os homens e mulheres que foram velar a morta. Todo enterro de gente madura tem um frenesi no ar. Os vivos – ávidos por migalhas de oxigênio, cientes que estarão em pouco tempo horizontalmente naquela caixa, clamam por vida. É um soluço por mais tempo. Um pedido surdo por mais permanência. Um desejo de ficar.
E há um balé invisível nesta cerimônia do adeus. Pode ser um toque de mão, um abraço, um olhar. Na sala apertada de encomenda do corpo, começou um zunzunzum quando o Padre decretou amém.
As pessoas se dispersaram e o que era um velório se transformou em uma reunião social. Grupinhos tagarelavam sobre o passado vivido e, sem cerimônia, marcavam chopps e prometiam os invariáveis ”te ligo”, na gíria do carioca. Alguns foram além.
Apoiada a mão na parede, a mulher era encapsulada pelo amigo que a reencontrou anos depois naquela locação mórbida. Ambos, lascivos, esbanjavam disposição para amar. O cara, com uns 72 anos, ganhou uma sobrevida ao caçar a senhora que – do alto do seus quase 65 – estava acesa. Não houve como não sacar o climão. Tudo cintilava. Aliás, o amor entre gente mais velha é ainda mais literal do que entre os novinhos. Velho dá bandeira. Sua mais, ri amarelo, “penteia” a careca.
Ela, botocada, batom meio borrado, catou todos os poucos hormônios disponíveis e desenterrou o pique. Marcaram um almocinho na sequência do velório. Tenho certeza que depois da comida rolou um banquete. Eros encontrou Tânatos e fizeram um pacto. Não haveria choro nem vela.
E eu, voltando de táxi para Copacabana, fitei as esculturas fúnebres que decoravam os caixões no São João Batista. Uma delas sorriu para mim como quem diz: morta, eu? Tive a certeza, naquele momento, que entre o céu e a terra há mais mistérios do que eu supunha.