A nova versão de Persuasão preocupa puristas, mas é interessante
Filme estrelado por Dakota Johnson traz heroína clássica revisitada e atualizada
Persuasão foi o último livro oficial de Jane Austen, mas publicado apenas após a sua morte, em 1818. Ela já estava doente quando lançou Emma e, portanto, não teve tempo de revisar suas anotações como costumava fazer antes da publicação. Por essa razão, os especialistas costumam dizer que Persuasão é menos elaborado do que Mansfield Park ou Emma, dois livros nos quais ela ampliou o número de personagens e construção de tramas, mas sinalizava uma virada na narrativa da autora com decisões inovadoras.
Isso porque Jane elegeu uma protagonista madura, bem mais velha que o usual, mesmo que ela tivesse 27 anos. Pense que significava uns 40 para os dias de hoje. A escritora escolheu falar de uma “pessoa mais velha” como um presente para sua amada irmã, Cassandra. Segundo ela, seria uma homenagem “às mulheres que tinham perdido suas chances na vida, mas que nunca desistiram de uma segunda primavera”. Ou seja, o atemporal tema da busca do amor e da felicidade, não importa a idade. Os bastidores de como Jane Austen se inspirou e escreveu Persuasão foram a base do filme Miss Austen Regrets, uma pérola da BBC que é difícil de achar no streaming, que tem Olivia Williams no papel da escritora e Imogen Poots, Phylida Law, Tom Hiddleston e Hugh Bonneville em atuações maravilhosas.
Essa mocinha “diferente”, parte de uma “ousadia”, é Anne Elliot, uma das personagens mais interessantes do universo criativo de Austen. Anne tem a bondade característica das heroínas “austeanas”, porém é ressentida consigo mesma por ter sido persuadida a abrir mão do amor romântico em troca de uma união conveniente. No final das contas ficou “solteirona”, relegada a um papel de apoiadora de suas irmãs e de seu pai, todos egoístas e vaidosos. Tudo desmorona quando o destino recoloca o Capitão Frederick Wentworth em sua vida. Ele foi o homem que Anne desprezou, mas nunca deixou de amar.
Escrito por qualquer outro autor, essa ironia seria rasa, mas, nas páginas de Jane Austen, revisitamos a dor, o sofrimento e os vários aspectos que podem fazer o mesmo casal tão feliz ou infeliz, mesmo com as melhores das intenções. É um livro lindíssimo, romântico e emocionante.
No entanto, Hollywood não tinha os mesmos olhos. A força interna de Anne, assim como sua resignação de lidar com as consequências de suas escolhas, é o que conduz a história, mas a faz ser menos atraente do que Emma Woodhouse (bonita e rica), Marianne Dashwood (apaixonada e inconsequente) ou a favorita Elizabeth Bennett (mordaz e inteligente). Anne à primeira vista é como água: inodora e insipida. Mero engano…
Voamos mais de 200 anos depois para chegarmos à 2022 e entenderemos porque os puristas botaram as mãos na cabeça com a nova adaptação do livro Persuasão, para Netflix. O filme que está disponível na plataforma a partir de 15 de julho, traz Dakota Johnson no papel de Anne Elliot e as reclamações se multiplicam. Calma! Não me junto à elas. Dakota está próxima da idade de Anne Elliot, e é definitivamente mais bonita do que Jane Austen descreve a personagem. Mas o que ofendeu mais os fãs da obra foi transformar a personalidade da heroína em algo mais próximo de Elizabeth Bennett. As duas seriam amigas, jamais iguais. Anne é mais passiva e observadora, só sendo compelida a agir justamente porque a experiência a ajuda identificar que bateu o limite. Lizzie seria, me perdoem os mais apaixonados, mais inconsequente, até porque demorou a se apaixonar por Mr. Darcy, ao contrário de Anne que perderia Wentworth uma segunda vez. A parte mais emocionante da história é acompanhar o momento em que Anne rompe com os padrões e (literalmente) corre atrás de sua felicidade. Se na visão atual do filme da Netflix ela parece ter as respostas inteligentes nas horas certas, bom, é uma escolha que demanda coração e mentes abertas.
A decisão dessa mudança vem de uma diretora respeitada no teatro inglês, Carrie Cracknell, que faz sua estreia em filme com Persuasão. O elenco é mais inclusivo, mas aparenta simplificar o texto de Jane Austen, o que pode ser, efetivamente, uma armadilha. Por exemplo, quando Dakota/Anne, diz “agora somos piores do que amigos, somos ex” a gente sente falta da superioridade das escolhas das palavras originais. Jane escolheu dizer que “eram como estranhos; não, pior do que estranhos, pois nunca poderiam se conhecer. Era um distanciamento perpétuo”. Parece ser a mesma coisa, mas é mais bonito.
Adaptar clássicos sempre provocou polaridades, mas ouso pensar que os agarrados à tradição perdem uma perspectiva importante. A essência da história que Jane Austen queria passar sobrevive há mais de dois séculos justamente porque é forte, mas ainda assim precisa chegar ao coração dos mais jovens.
Com apenas 42 anos, Carrie Cracknell é uma diretora de grande prestígio. A inglesa ganhou admiração, prêmios e amigos com uma sólida carreira teatral, tanto em Londres como na Broadway e é a “it girl” do momento atrás das câmeras. Dirigiu atuações indicadas ao Tony de astros como Jake Gyllenhaal, Helen McCroy (Peaky Blinders), Andrew Scott (Fleabag) e Vanessa Kirby (The Crown), e foi a mais jovem Diretora Artística de uma companhia teatral no Reino Unido, quando assumiu o The Gate Theatre, em Londres, aos 26 anos. Hoje está no board do prestigiado Almeida Theatre. Ou seja, ela sabe o que está fazendo.
E se você não gostar, bom, terá que esperar. O projeto paralelo com Sara Snook (de Succession) ainda não tem previsão de lançamento. Persuasão hoje é uma história que fala mais com a mulher moderna, que passou por tempos de opressão, mas que tem uma chance de reencontrar seu papel e sua voz. Como disse, atemporal.