Uma elaboração sobre consentimento feminino pelo olhar de Katherine Angel
Trecho de "Amanhã o Sexo Será Bom Novamente", livro sobre sexualidade e poder que problematiza, inclusive, discursos bem-intencionados na era do #MeToo
Em 2017, as alegações contra Harvey Weinstein romperam a barragem. Na sequência, a hashtag #MeToo — um slogan criado por Tarana Burke, em 2006, com o intuito de chamar a atenção para casos de violência sexual contra jovens mulheres não brancas — se espalhou nas mídias sociais, incentivando mulheres a contar suas histórias de abuso sexual.
Nos meses seguintes, sucedeu-se uma ampla cobertura midiática, tratando, em grande parte, de casos de abuso de poder no ambiente de trabalho. E, nesse contexto, falar abertamente das experiências individuais foi visto como um benefício evidente e necessário. Gostei da cobertura, mas também tive medo dela. Eu me vi obrigada, de vez em quando, a correr para desligar o noticiário e interromper o incansável desfile de relatos sombrios.
No auge do #MeToo, às vezes, parecia que nós, mulheres, éramos convocadas a contar nossas histórias. O acúmulo delas on-line, no Facebook, no Twitter, bem como aquelas contadas pessoalmente, criou uma sensação de pressão e de expectativa. “Quando você vai contar a sua?” Foi difícil não perceber o apetite coletivo por esses depoimentos, um apetite expresso na linguagem da preocupação e da revolta, uma linguagem que combina com a crença de que falar a verdade é um valor fundacional, axiomático para o feminismo.
O #MeToo não apenas atribuiu valor ao discurso das mulheres, mas também correu o risco de convertê-lo numa obrigação, numa exibição mandatória dos poderes feministas de autorrealização pessoal, de determinação ao recusar a vergonha e de força ao reagir à indignidade. Além de satisfazer uma fome lasciva por histórias de abuso e de humilhação de mulheres — mesmo que o tenha feito de forma seletiva.
Quando pedimos às mulheres que falem, e por que pedimos? A quem serve essa fala? Quem é chamada a falar, para início de conversa — e quais as vozes que são ouvidas? Ainda que qualquer alegação de violência sexual vinda de uma mulher tenda a se deparar com uma resistência poderosa, os relatos de mulheres ricas e brancas foram privilegiados, em detrimento, por exemplo, dos relatos de jovens negras cujas famílias tinham lutado por justiça durante décadas, nos casos envolvendo o músico e abusador sexual R. Kelly.
Estudos mostram que quando mulheres negras denunciam crimes de violência sexual, as chances de acreditarem nelas são menores do que quando a denúncia é feita por uma mulher branca * (além disso, apontam que meninas negras são consideradas mais adultas e sexualmente conscientes do que as brancas) e que as condenações por estupro relacionadas a vítimas brancas levam a decisões mais severas do que em casos relacionados a mulheres negras.** Nem toda fala é igual. E, ainda assim, não é só em retrospecto que as mulheres são encorajadas a falar — é, também, prospectivamente, de olho no futuro, de modo protetivo: um discurso claro é um ingrediente necessário para prevenir males futuros, não só para tratar dos que já se passaram. Nos últimos anos, surgiram dois requisitos para o bom sexo: consentimento e autoconhecimento. No domínio do sexo, pelo menos naquele em que o consentimento reina de modo supremo, as mulheres devem falar com clareza e devem falar com clareza o que querem. Portanto, devem, também, saber o que querem.
No que eu chamo de cultura do consentimento — a retórica amplamente difundida de que o consentimento é o locus para transformar os males de nossa cultura sexual —, o discurso das mulheres em torno do desejo é a um só tempo exigido e idealizado, promovido como um marcador de política progressista. “Saiba o que você quer e descubra o que seu parceiro quer”, incitava um artigo, prometendo que “o bom sexo acontece quando esses dois propósitos se encontram”.
“Converse”, exortava uma educadora sexual em “A nova era do consentimento”, na Rádio BBC 4, em setembro do mesmo ano, referindo-se à conversa direta e honesta sobre sexo: diga-se você quer e, caso queira, o que exatamente quer. Converse antes de entrar no quarto, diziam; converse no bar, no táxi a caminho de casa, qualquer constrangimento vai ser compensado depois.
[Em uma revista feminina] a jornalista escreveu “consentimento entusiástico se faz necessário para que ambas as partes apreciem a experiência” – um ponto de vista recorrente, ao qual o acadêmico Joseph J. Fischel se referiu nos seguintes termos: “consentimento entusiástico, a partir do qual podemos discernir o desejo, não é apenas o padrão para o prazer sexual, mas quase seu garantidor”.
Nessa visão, o discurso das mulheres carrega um fardo pesado: o de garantir o prazer; de melhorar as relações sexuais e de resolver o problema da violência. O consentimento, como diz Fischel em Screw Consent [Dane-se o consentimento], confere uma “magia moral ao sexo”. Essa retórica não é de todo nova; o ativismo feminista tem ressaltado com vigor o consentimento, em especial desde os anos 1990, provocando muita interpretação precipitada ao longo do processo.
Rachel Kramer Bussel escreveu, em 2008, que “como mulheres, é nossa obrigação, diante de nós mesmas e de nossos parceiros, sermos mais francas quando pedimos o que queremos fazer na cama. Devemos, também, compartilhar aquilo que não queremos. Nenhum dos parceiros pode se dar ao luxo de ser passivo e apenas esperar para ver até onde a outra pessoa irá.”
Que devemos dizer o que queremos e de fato saber o que queremos se tornou um truísmo com o qual é difícil discordar, caso se leve a sério a autonomia e o prazer feminino no sexo. E esse ordenamento de que as mulheres devem conhecer seu desejo e expressá-lo é visto como libertador em essência, uma vez que enfatiza a capacidade das mulheres de sentir (e seu direito ao) prazer sexual.
O pensamento progressista há muito vem escalando a sexualidade e o prazer com substitutos da emancipação e da liberação. Era exatamente isso que o filósofo Michel Foucault criticava em 1976, em História da Sexualidade – A vontade de saber, quando escreveu “amanhã o sexo será bom novamente”.
Ele estava parafraseando, com sarcasmo, a postura dos liberais sexuais da contracultura dos anos 1960 e 1970 — todos aqueles que acreditavam que, a fim de se libertar das garras moralizantes do passado, de um passado vitoriano repressor, devíamos, enfim, falar a verdade sobre a sexualidade. Foucault, por sua vez, desconfiava do “ardor em conjurar o presente e aclamar um futuro” e argumentava que os antiquados vitorianos eram, na verdade, bastante verborrágicos quando se tratava de sexo, ainda que essa verborragia se manifestasse na denominação de patologias, de anormalidades e de aberrações.
“O sexo foi e ainda é proibido e regulado de inúmeras formas, e a sexualidade das mulheres em particular costuma ser muitíssimo controlada e policiada.”
Foucault não apenas reavaliou a clássica visão dos vitorianos como pudicos, reprimidos e comprometidos com o silêncio; ele se opôs, também, a certos truísmos, como a afirmação de que falar de sexo leva à liberação e de que silêncio é sinônimo de repressão. “Não acreditar que”, escreveu ele, “dizendo-se sim ao sexo se está dizendo não ao poder”.
O sexo foi e ainda é proibido e regulado de inúmeras formas, e a sexualidade das mulheres em particular costuma ser muitíssimo controlada e policiada. Porém, vale a pena se debruçar sobre o argumento de Foucault.
Estamos, mais uma vez, diante de um momento com um amanhã — um amanhã logo ali no horizonte, perto o suficiente para ser tocado — no qual o sexo vai ser bom novamente; um momento no qual conjuramos o presente e apelamos ao futuro, armadas com as ferramentas necessárias para desfazer a repressão do passado, as ferramentas do consentimento e da pesquisa sexual. Contudo, falar e dizer a verdade não são práticas emancipatórias em essência, e nem falar ou se calar é por si só libertador ou opressor.
Além disso, a repressão pode se dar por meio dos mecanismos da fala, através do que Foucault chamou de “incitação ao discurso”. O consentimento e sua presunção de clareza absoluta colocam o fardo da boa interação sexual no comportamento das mulheres — no que elas querem e no que elas são capazes de saber e de dizer acerca de suas vontades; na habilidade de incorporar uma persona sexualmente confiante a fim de garantir que o sexo não seja coercivo, mas, sim, mutuamente prazeroso.
Deus proteja aquela que não se conhece e não verbaliza esse conhecimento [contém ironia]. Isso, como veremos, é bem perigoso.
*Rebecca Epstein, Jamilia L. Blake e Thalia González, “Girlhood Interrupted: The Erasure of
Black Girls’ Childhood”, The Centre on Poverty and Inequality, Georgetown Law.
**Gary D. LaFree, “The Effect of Sexual Stratification by Race on Official Reactions to Rape”