Andrea Beltrão: “Aprendi que o mundo nem sempre é desenhado como a gente quer”
Atriz faz sucesso no palco como advogada que desafiou a ditadura e afirma que o teatro, o esporte e a vida necessitam de treino

Era o final de 1970. A atriz carioca Andrea Beltrão, com 7 anos, percebeu uma nuvem de gafanhotos rondando o apartamento onde morava com a avó, Cleonice, em Copacabana, no Rio de Janeiro. A menina era orientada a falar o mínimo sobre a família, alguns livros sumiram da estante e, num certo dia, os gafanhotos levaram o seu tio, o sociólogo Luiz Werneck Vianna (1938-2024).
“Foi uma época de sofrimento e eu detectava tudo isso”, lembra a artista, que sentiu saudades do irmão de sua mãe, a professora Marilena Vianna, que, depois de solto, buscou exílio no Chile.
Werneck Vianna voltou ao Brasil um ano depois e, nos encontros com a sobrinha adolescente, mesmo já decretada a anistia política, desviava das interrogações em torno do que vivenciou no auge da repressão. “Vamos em frente, garota, isso passou”, repetia.
Levou tempo para Andrea entender que aquele “vamos em frente” não carregava rancor ou ressentimento. Era um jeito de ele olhar para o futuro e se defender dos insetos que, disfarçados, continuavam à espreita. “Eu nunca soube de nada por ele, mas soube de tudo e continuei esperta”, conta. “Encapava os livros que lia no ônibus e evitava citar o meu sobrenome do meio, Vianna, para escapar de associações.”
Andrea Beltrão reflete sobre memória e legado familiar

Gafanhoto é o termo usado pela advogada pernambucana Mércia Albuquerque (1934-2002) em referência aos militares nos diários escritos entre 1973 e 1974, época da transição do governo de Emílio Garrastazu Médici (1905-1985) para o de Ernesto Geisel (1907-1996).
Mércia foi uma professora primária que, revoltada com o que testemunhou nas ruas do Recife em 1964, tirou da gaveta o diploma da faculdade de direito para combater injustiças. Em duas décadas, defendeu quase 500 presos políticos e ajudou centenas de mães a localizar filhos desaparecidos.
Assim como outra advogada, a paulistana Eunice Paiva (1929-2018), que teve sua luta contra a ditadura divulgada no filme Ainda Estou Aqui, Mércia é descoberta no teatro através do espetáculo Lady Tempestade.
No monólogo da dramaturga Silvia Gomez, dirigido por Yara de Novaes, Andrea Beltrão, de 61 anos, se divide entre a própria Mércia e A., uma mulher contemporânea que recebe em casa os cadernos da advogada e titubeia sobre o destino que dará aos relatos. A montagem passou pelo Rio de Janeiro, Porto Alegre, Uberlândia e, depois de lotar o Sesc Consolação por seis semanas, volta a São Paulo, no Teatro Faap, a partir do dia 8 deste mês.
A. é o alter ego de Andrea, intérprete consagrada em mais de 40 anos de carreira, um raro caso de equilíbrio entre prestígio e popularidade alcançado em expressivas peças de teatro, filmes, novelas e séries de televisão. Se A. hesita sobre o fim que dará aos diários de Mércia, a protagonista resistiu à provocação de Yara para levá-los ao palco.

Em 2023, a diretora, que também é atriz, tomou conhecimento do material ao rodar o longa Zé, do cineasta Rafael Conde, sobre o líder estudantil José Carlos Novaes da Mata Machado (1946-1973), vítima do regime militar. “É lindo como Andrea desconfia das coisas, não por impertinência, mas porque a dúvida gera a sua sabedoria como artista”, analisa Yara. “O processo dela é a junção exata do trabalho individual e coletivo.”
Entre 2016 e 2023, Andrea ficou envolvida com outro monólogo, Antígona, versão solo da tragédia grega escrita por Sófocles há 2.500 anos, que também enfocava uma mulher em confronto com os opressores. “Queria navegar por outros mares, quem sabe um tema mais solar”, justifica ela, que, além de estrelar a peça, publicou o livro Antígona – Ela Está entre Nós e protagonizou o filme Antígona 442 a.C., dirigido por seu marido, o cineasta Maurício Farias, no auge da pandemia.
Bastou ler os depoimentos de Mércia, entretanto, para entender que não se calaria diante da mensagem que tinha em mãos. “Moro em Copacabana, vi milhares de pessoas gritando pela ditadura e, quando optamos pelo silêncio, somos cúmplices dos retrocessos”, reflete.
Comovida, Andrea pisca os olhos como uma menina ao falar que provavelmente Werneck Vianna teria gostado se tivesse tido tempo de assistir à Lady Tempestade. Garante, porém, que não pensou no tio ao topar o projeto, assim como não foi por causa de seu irmão, Artur, que idealizou Antígona.
“Não podemos jogar responsabilidades tão altas no teatro”, declara. A personagem-título da tragédia desafia o tio Creonte, o Rei de Tebas, pelo direito de enterrar o irmão, Polinice, assassinado por desacatar o sistema. “Claro que depositei ali um sentimento profundo, mas meu irmão foi enterrado. Pratiquei vivamente o luto por ele.”
Luto, arte e amor: como Andrea Beltrão atravessou a perda do irmão

Andrea tinha 30 anos em janeiro de 1994, quando perdeu o irmão por causa de um aneurisma. Artur não ficou doente. Em um dia comum, tocou o telefone e chegou a notícia da morte do rapaz de 19 anos, que saiu de casa saudável e vibrante como qualquer jovem.
“Minha avó materna tinha partido cinco meses antes e, totalmente desorientada, levei esse novo soco”, lembra. “A morte do Artur me revelou que não existem garantias, o importante é o agora e tudo pode acabar a qualquer momento.”
Reconstituindo os cacos, Andrea reuniu forças para atravessar essa tempestade na televisão. A artista, popularizada no seriado Armação Ilimitada (1985-1988) e nas novelas Rainha da Sucata (1990), Pedra sobre Pedra (1992) e Mulheres de Areia (1993), começou a gravar mais uma trama, A Viagem. Em uma daquelas horas de descuido, se viu diante de uma felicidade que a ilumina há 31 anos e devolveu beleza ao seu complexo dia a dia.
Recém-chegado de uma temporada em Portugal, Maurício Farias, hoje com 64 anos, foi convocado para a equipe de direção do folhetim espírita que pode ser revisto nas tardes da Globo. Ele jamais havia cruzado com Andrea até o primeiro encontro no estúdio e, encantado com a sua capacidade de emprestar credibilidade a um texto que considerava frágil, se apaixonou pela atriz. “Andrea tem o raro talento de dar excelência a qualquer fala medíocre e eleva a uma pulsação intensa tudo o que faz na vida e na arte”, diz o marido.
Andrea Beltrão fala sobre dependência química, casamento e filhos

Maurício Farias invadiu como um sol a história de uma mulher que gosta do dia, do mar, dos esportes, mas que embaçou a vista com o excesso de nebulosidades da estrada. Em um desses tropeços, no começo da década de 1990, foi trazida de volta à sobriedade nas reuniões dos Narcóticos Anônimos e, quando quer ou precisa, comparece ainda hoje aos encontros da sociedade que apoia dependentes químicos e adictos.
“Se eu fosse capaz de beber de vez quando, o quanto quisesse, seria ótimo, mas não tenho essa autonomia e tomo minhas precauções”, confessa ela. “É um lugar onde vejo as pessoas mais incríveis e interessantes, as mais destruídas e reconstruídas.”
Em poucos meses, o casal já dividia um teto e foram chegando os filhos Chico, de 30 anos, Rosa, de 28, e José, de 25, que se juntaram a Antônio, de 35, do primeiro casamento de Farias, para formar a grande família que Andrea nunca teve. “Jamais fui a mãe neurótica que colocou medo neles e, mesmo tensa ao vê-los tomando ônibus ou saindo sozinhos à noite, me segurava porque sabia que o problema era meu.”
Todos cresceram, moram em suas casas e lidam com suas liberdades, o que enche Andrea de orgulho. Rosa trocou a gastronomia pelas letras e escreve sem parar, José segue os passos da mãe como ator e Antônio, assim como o pai e o avô, o cineasta Roberto Farias (1932-2018), trabalha com audiovisual.
A recente surpresa fica por conta de Chico, o primogênito, que, além de compositor e produtor musical, pode ser visto pilotando a trilha sonora de Lady Tempestade e com três ou quatro falas pontuais na representação do filho da personagem A. “O legal é que cada um dos nossos filhos tem características minhas e outras do Maurício”, observa. “Eles se livraram de alguns defeitos e se deram bem em certas qualidades, a maioria vindas do pai, claro (risos).
Para Andrea, Farias é um sujeito em permanente estado de paz consigo e com o mundo. “O que não significa que seja morno, pelo contrário, é um cara fervendo”, emenda. Quando ela, assumidamente intensa, começa a se exasperar, o marido trata de tranquilizá-la, garantindo que tudo dará certo. E, na maioria das vezes, dá mesmo.
“Talvez eu tenha uma proteção herdada da minha família, que sempre foi racional e pregou o diálogo como solução o tempo inteiro”, afirma Farias. “Em uma relação tão longa, cada um deve cuidar do outro sem deixar de cuidar de si e, se tenho esse perfil tranquilo, aprendi com Andrea muitas coisas, como que paz em demasia nem sempre é a melhor solução.”
Como ilustração da sensatez do companheiro, a atriz usa um exemplo profissional que o elimina do time de diretores intolerantes. “É comum, no meio de uma cena, um ator ter um acesso de riso que contamina o elenco, atrasa o cronograma e irrita a equipe de produção”, diz Andrea, que trabalhou com o marido por mais de uma década no seriado A Grande Família.
“O Maurício fala que é melhor deixar todos rirem o tempo que quiserem, e o atraso será compensado por um clima leve já que ninguém gosta de puxão de orelha no set.”
O filme Verônica (2009), a série Hebe (2019) e a novela Um Lugar ao Sol (2021) foram outros trabalhos marcantes do casal. A mais recente parceria é a versão filmada de Lady Tempestade, que deve ser lançada no streaming até dezembro.
Rodada em nove dias entre o fim de 2024 e o começo de 2025 nos mesmos moldes artesanais de Antígona 442 a.C., a fita teve como locações um apartamento no Leblon e o Teatro Poeira, em Botafogo, o centro cultural construído e mantido com recursos próprios por Andrea e a colega Marieta Severo há 20 anos.
“Ser sócia do teatro não facilita em nada quando coloco minha peça em cartaz, porque cubro as mesmas despesas que qualquer produtor que aluga o espaço”, diz. “O Poeira só nos traz alegrias e sem ele não seríamos tão felizes.”
Andrea Beltrão revela rotina com natação, terapia e disciplina aos 62 ano

Felicidade para Andrea é atravessar a rua de casa e entrar nas águas de Copacabana para dar as suas braçadas como se ainda fosse a aspirante a atleta que, no fim da década de 1970, sonhava em competir nas Olimpíadas de Moscou, em 1980. É na praia que a atriz pratica natação regularmente junto de uma equipe especializada de guarda-vidas. “Tenho muito respeito pelo mar e já vi grandes nadadores se afogarem”, comenta. “Jamais me arriscaria em mar aberto sozinha.”
O entusiasmo com o esporte que moldou a sua infância e adolescência voltou à rotina quando passou a acompanhar os pequenos Chico, Rosa e José nos treinos das piscinas do Clube de Regatas do Flamengo. “Graças ao esporte, eu descobri uma disciplina fundamental para a profissional que sempre decorou textos até de madrugada e acordou cedo para levar os filhos ao colégio ou a qualquer outra atividade.”
Por outro lado, o excesso de rigor consigo mesma, típico dos atletas, alimentou uma autoexigência excessiva a ponto de tumultuar sua vida e que só é controlada nas sessões de terapia que frequenta há 35 anos.
Andrea brinca que deu um descanso ao chicote com que costumava bater nas próprias costas, e a chegada aos 60 anos colaborou para essa libertação. “Tanto o teatro como o esporte necessitam de bastante treino para serem suportáveis e, nesta altura do meu campeonato, entendi que uma existência plena precisa de técnica para você viver sem perceber o trabalho que dá.”
Em setembro, Andrea completa 62 anos de uma biografia em que, acredita, tudo valeu a pena e reitera que jamais apagaria capítulo algum. Hoje, ela se acha melhor que aos 30 e usa o autoconhecimento para valorizar a liberdade como mulher e profissional.
A rescisão do contrato fixo com a Globo, logo depois do fim da novela No Rancho Fundo, em novembro passado, não causou maiores inseguranças na artista que passou 40 anos vinculada à emissora. “Se nada mais der certo, eu trabalho de vendedora de loja com a maior alegria”, afirma. “Aprendi com o meu pai, um homem que atravessou a vida na instabilidade e jamais deixou de ser feliz, que o mundo nem sempre é desenhado como a gente quer.”
Créditos
- Foto: bruna sussekind
- Styling: patricia zuffa
- Beleza: Hélder Rodrigues
- Direção de arte: kareen sayuri
- Mobiliário: recondicioNar
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