Bertha Russell: Entre a Ambição e o Instinto Materno
Mãe obstinada, mulher estratégica e símbolo de uma era: a protagonista de The Gilded Age expõe feridas antigas sobre ambição, maternidade e poder feminino

Não ia voltar a falar de The Gilded Age tão perto da última coluna, mas é irresistível. Em tempos de girlbosses repensadas, é curioso observar como personagens femininas ambiciosas ainda causam desconforto. Na série, a figura de Bertha Russell é talvez a mais comentada e polarizadora — ao mesmo tempo admirada por sua força e criticada por sua frieza.
Vê-la em cena é como observar um jogo de xadrez social em tempo real. Mas o que torna Bertha tão fascinante não é apenas sua escalada implacável rumo ao topo da pirâmide novaiorquina — é a maneira como ela lida, com uma clareza quase cirúrgica, com as limitações impostas às mulheres do seu tempo. E, principalmente, como ela tenta quebrar essas amarras não só por si, mas pela filha Gladys — ainda que às custas da liberdade da própria menina.

Bertha, interpretada com precisão por Carrie Coon, carrega no olhar uma urgência que vai além da vaidade ou do desejo de reconhecimento: é sobrevivência pura. Coon já disse, em entrevistas, que não a vê como uma vilã, mas como uma mulher que entendeu as regras do jogo e fez o que era necessário para garantir que sua família não apenas sobrevivesse, mas ascendesse.
2025 é, sem dúvida, o ano da atriz. Após sua emocionante atuação em The White Lotus, onde interpretou uma mulher do século XXI lidando com desafios contemporâneos, é notável vê-la agora em The Gilded Age enfrentando problemas que ecoam os da Bertha do século XIX. Essa justaposição diz muito sobre seu talento e versatilidade. Sua personagem em The Gilded Age é, de fato, inspirada em Alva Vanderbilt, uma das figuras mais influentes e controversas de seu tempo, conhecida por sua rara obstinação ao desafiar os clubes fechados da elite nova-iorquina.

Como Bertha, Alva teve uma filha — Consuelo Vanderbilt — que serviu como moeda de troca em seus planos sociais. O casamento arranjado de Consuelo com o duque de Marlborough é um dos episódios mais emblemáticos das alianças entre o dinheiro americano e os títulos de nobreza europeus — e também uma ferida que jamais cicatrizou por completo na relação entre mãe e filha.
Em The Gilded Age, vemos esse espelhamento na relação entre Bertha e Gladys. A jovem, interpretada por Taissa Farmiga, vive à sombra de uma mãe que diz querer o melhor para ela — mas cujas decisões frequentemente anulam seus desejos. A ideia de que o afeto materno pode vir envenenado por projeções, ambições e até por uma espécie de pânico geracional (“não quero que você passe o que eu passei”) é uma tensão que muitas mulheres reconhecem.

Bertha ama Gladys — disso não há dúvida —, mas ela também a instrumentaliza. O desejo de ver a filha “bem casada” não é apenas um capricho social: é uma estratégia de longo prazo, quase militar. Gladys é a próxima jogada no tabuleiro de Bertha, e talvez também sua maior vulnerabilidade.
Nessa nova temporada, a tensão entre as duas promete ganhar ainda mais camadas. Spoilers à parte, o que se anuncia é uma Gladys mais consciente, querendo se libertar da redoma dourada criada pela mãe. Bertha, por sua vez, começará a sentir o peso das próprias escolhas — e talvez a perceber que, ao projetar suas frustrações e sonhos na filha, corre o risco de perder a pessoa que mais ama.

É um dilema antigo, mas que nunca sai de moda: até onde vai o zelo materno e onde começa o controle sufocante? Bertha encarna a figura da “mãe arquiteta de destinos”, uma mulher que molda o futuro dos filhos com mãos firmes — e muitas vezes sem perguntar o que eles querem. Se isso a torna detestável? Talvez. Mas também a torna compreensível.
Em sociedades que limitaram por tanto tempo as possibilidades femininas à maternidade e ao casamento, muitas mães canalizaram seu desejo de conquista para os filhos — especialmente as filhas. A luta de Bertha, nesse sentido, é profundamente feminina e profundamente trágica.

O sucesso da série — criado por Julian Fellowes, o mesmo de Downton Abbey — reside em parte nessa complexidade. Não se trata apenas de figurinos deslumbrantes e escadarias monumentais. A série acerta ao mostrar como os conflitos sociais, de classe e de gênero se desenrolavam no âmbito doméstico, nos jantares, nos silêncios entre sogras e noras, nos casamentos negociados.
Se Downton Abbey nos levou às paisagens bucólicas do interior inglês, onde a tradição ainda reinava, The Gilded Age mergulha numa Nova York em ebulição, onde as regras estavam sendo escritas em tempo real. E se em Downton conhecemos Cora Levinson — americana rica que se casa com um aristocrata britânico —, aqui vemos algo anterior: o momento em que mulheres como Bertha pavimentaram esse caminho.

Cora, aliás, é herdeira direta do tipo de mulher que Bertha representa. Filha de um magnata americano e criada para se inserir na elite britânica, ela também teve uma relação marcada por expectativa e desconforto com a própria mãe — a sofisticada e mandona Martha Levinson, interpretada por Shirley MacLaine. A dinâmica entre elas é mais cômica, mas carrega a mesma carga: mães que vivem por (e através de) suas filhas, e filhas que oscilam entre a gratidão e a necessidade urgente de independência.
Talvez o que torne Bertha Russell tão inesquecível seja justamente essa contradição: ela é feroz, mas ferida. Pragmática, mas movida por fantasias de grandeza. É uma mulher que se recusa a aceitar as portas fechadas da aristocracia tradicional, mas que, ao mesmo tempo, busca desesperadamente ser aceita por elas. Sua praticidade é sua arma — e sua prisão.

Ela não tem tempo para ilusões românticas ou ideais de maternidade suave. Como tantas outras mulheres antes e depois dela, está tentando sobreviver num mundo feito por e para homens — e isso a transforma em figura incômoda, até hoje. Bertha Russell não quer apenas pertencer — ela quer dominar. E o preço disso pode ser o afeto da filha, a admiração do marido, a simpatia do público.
Mas, como bem sabemos, mulheres que ousam demais nunca foram unanimidade. No fundo, The Gilded Age nos lembra que por trás de cada vestido bordado e jantar de gala, havia uma guerra silenciosa sendo travada. E que mães e filhas, mesmo quando se amam profundamente, nem sempre falam a mesma língua.
Na dúvida, Bertha fala a língua do poder.
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