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O trauma de tutti-frutti

Um dos maiores traumas da minha infância foi não ter ganhado um beijo de um menino apelidado de Tutti Frutti na pré-escola

Por Marcela Leal (colaborador)
Atualizado em 28 out 2016, 21h46 - Publicado em 17 ago 2015, 17h27

Eu tinha seis anos e estava brincando num balanço de pneu, quando começou um alvoroço estranho no parquinho: muitas meninas iam e voltavam de uma edícula que existia nos fundos da escola. O motivo do alvoroço era exatamente o tal do Tutti Frutti, que era o garanhãozinho da escola e também o mais bonito de todos: ele estava distribuindo beijos atrás da edícula. Eu não sabia ao certo como aquilo funcionava, mas a meninas iam até lá e voltavam falando: “O Tutti Frutti me beijou! E agora ele falou pra chamar fulana.” E a fulana ia, beijava e chamava a próxima. O problema era que ele não me chamava nunca, então me ofereci: “Fala pra ele que eu quero ir!”. Na verdade eu nem sabia se queria ir, mas já que tinha alguém distribuindo coisas de graça eu queria. E a menina foi, voltou e disse: “Ele falou que VOCÊ ele não quer beijar!”. Me deu um teto preto na hora, vi tudo escuro e dei uma desmaiadinha de leve só para o mico que eu achava que estava pagando ser menor. 

Como criança rancorosa que era, passei minha infância e pré-adolescência me vingando mentalmente e refazendo a cena com outros desfechos: tacava o balanço de pneu na cabeça do Tutti Frutti, baixava as calças dele e espremia o pipi dele, afogava o garoto na piscininha da escola, entrava no parquinho de mãos dadas com “Morango”(este sim um menino autêntico e muito mais gatinho que Tutti Frutti, que, por não ser nada, era a mistura de todas as frutas; uma gororoba frutífera indefinida) e esnobava Tutti.

Falei sobre isso uma vez em terapia e a psicóloga me orientou a fazer um trabalho de visualizar e falar com minha criança interior, dar conforto a ela e dizer que jamais a rejeitaria. Mas, quando fiz o trabalho, briguei com ela: “Escuta aqui, songamonga! Por que não foi lá e deu na cara daquele arrogante?”. Minha criança interior fugiu para as colinas e nunca mais apareceu, porém, percebi que, com o passar dos anos, meu índice de rejeição com os homens esteve dentro da normalidade, ou seja, aquela cena não me transformou numa psicótica.

Estes dias, eu e meu marido estávamos no supermercado quando uma família estranha passou por nós. A mulher estava descabelada, com a roupa amassada, suada, segurando um bebê e levando mais dois pequenos pelo braço e o marido era um senhor bastante obeso, com um ar de auxiliar de almoxarifado recém-demitido, careca e infeliz. Eles juntos pareciam a Família Dinossauro, só que sem rabo. De repente, a mulher grita com uma voz de pterodáctilo para o marido: “Seu imbecil! Você esqueceu o cartão do mercado em casa! Vamos perder o desconto, Tutti!”.

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Aquele nome fez soar um sino dentro da minha mente. Imaginei que aquele senhor era o meu Tutti, o salafrariozinho que me rejeitou na infância. Confesso que, mesmo depois de tantas imaginações mirabolantes de cenários de vingança, jamais teria sido tão criativamente cruel. A cena da vingança perfeita estava formada bem na minha frente, e eu com o Mister Morango ao meu lado, diga-se de passagem.

Obviamente, nunca soube se aquele era o Tutti e, na verdade, nem sei qual é o nome verdadeiro do Tutti (Se Deus é justo, deve ser Deusivãnio), mas fiquei feliz em encerrar o assunto na minha mente.

Dizem que tudo que acontece de ruim na nossa vida vem pra nos ensinar e assim nos proteger de algo pior, mesmo que não saibamos ao certo o que isso significa no momento que acontece: um dia, vamos entender. Por conta desse “trauma”, hoje acredito que o que é meu vem sem sofrimento, sem que a gente precise ir lá pedir pra beijar e ser rejeitado; pelo menos foi assim que o Mister Morango chegou, fácil. Eu entendi! Obrigada, Tutti Frutti!

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