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Arquivo CLAUDIA: Como a PEC das domésticas impacta a vida dos brasileiros

Entenda a lei que entra em vigor a partir de 7 de agosto. Com a aprovação, altera o padrão da trabalhadora que serve café, almoço e jantar. "É a ressignificação da doméstica"

Por Patrícia Zaidan Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 26 out 2016, 11h07 - Publicado em 6 ago 2014, 22h00
Arquivo CLAUDIA: Como a PEC das domésticas impacta a vida dos brasileiros

“Se as empregadas não existissem, o clima pesaria. A mulher teria cobrado do homem maior empenho em casa. Do contrário, não teria dado conta da rotina”
Foto: André Valentim

“Quem quer ser servido deve pagar. Quem serve tem seus deveres, mas também seus direitos. A luta entre as duas partes é antiga e cheia de truques e quase sempre termina empatada.”

Este texto, de janeiro de 1967, abre uma reportagem de CLAUDIA intitulada “Patroas e empregadas: uma delícia de guerra”. Muito atual, ele serve para começar a discussão sobre os impactos da atual lei das domésticas na vida dos brasileiros. Marco histórico – quase a segunda abolição da escravatura -, em vigor desde 2 de abril, ela deu caráter profissional às 6,5 milhões de mulheres que fazem a comida, a limpeza e dão colo às crianças. É o batalhão de retaguarda que assume a casa e a maternagem no lugar da patroa – para que ela possa sair por 10, 11, 12 horas como se não tivesse se ausentado. Alguém está carregando o piano em seu nome.

As domésticas são, na maior parte dos casos, o único recurso com o qual a mulher conta desde que decidiu, na década de 1960, entrar no mercado de trabalho. A empresa, o Estado e a maioria dos maridos pouco contribuem com o projeto de independência feminina e nem se preocupam em prover uma estrutura para que as mulheres continuem produzindo e enriquecendo a cultura e vida pública nacional. O desespero bateu em casa com a limitação da jornada da doméstica em 44 horas semanais (oito horas por dia, quatro no sábado) e os outros direitos que elas conquistaram. A guerra, de que falava a reportagem há 46 anos, se multiplicou em várias batalhas. Uma delas entre os casais. 

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No dia em que a Proposta de Emenda Constitucional, a PEC das Domésticas, foi aprovada no Senado – março de 2013 –, o marido da engenheira mineira Ana Míriam Malta, 39 anos, chegou alarmado: “E agora? O que é que você vai fazer sem empregada? Vai manter e pagar hora extra?” Ana Míriam ficou possessa: “Meus filhos também são seus, a casa é sua. Você sai de camisa limpa e passada e encontra o jantar pronto na volta. Pretende viver sem ela e, finalmente, pegar no pesado?”

Na discussão, que se estendeu por horas, a dupla tentou estabelecer quem iria se responsabilizar pelo quê – das compras no mercado à lida com as crianças, de 7 e 8 anos, e o cachorro. Nilcéa Freire, ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres e representante da Fundação Ford no Brasil, reflete: “Salvaguardadas todas as comemorações do reconhecimento do direito das domésticas, temos de lembrar que elas asseguraram o equilíbrio do casal e reduziram as tensões nas famílias da classe média. Se as empregadas não existissem, o clima pesaria. A mulher teria cobrado do homem maior empenho em casa. Do contrário, não teria dado conta da rotina”.

Rebecca Reichmann Tavares, representante da ONU Mulheres no Brasil, vai além: “Alguém consegue imaginar um dia de greve geral das domésticas? As cidades parariam”. Pela legislação aprovada, lembra Nilcéa, acabou o padrão da trabalhadora que serve café, almoço e jantar. “É a ressignificação da doméstica, e isso é ótimo. Todos vão se deparar com o tamanho da carga que as mulheres enfrentam.”

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Nos domínios da empresária carioca Carolina Simões Tavares, 50 anos, viúva, dois filhos, a notícia da PEC foi dada por Luzinette Rocha Braz, 58 anos: “Até que enfim fomos reconhecidas. A gente trabalha anos e sai com uma mão na frente e outra atrás. Isso vai mudar”. A patroa se assustou, respondeu a ela que não seria nada bom instalar um relógio de ponto na cozinha, descontar atrasos, faltas, o tempo gasto vendo TV à tarde. Carolina teve dúvidas sobre a necessidade de pagar adicional noturno, uma vez que Luzinette dorme no emprego, e sobre como controlar a pausa para o almoço. “A boa-fé acabou, a lei põe em xeque a confiança.” Para ela, essa é uma relação de intimidade, que não pode ser fria como numa empresa. “Em firmas, tem o vale-refeição, o funcionário paga uma parte. Aqui, come-se a mesma comida que comemos e não há contrapartida.” Mais tarde, temeu: “Se eu bater o pé, ela perderá a paciência com os meus filhos. A convivência vai ficar acirrada”.

No outro prato da balança, ela pôs a dependência que tem do staff doméstico, que se completa com um motorista e uma diarista. Concluiu que não há dinheiro que pague o arranjo que lhe permite sair cedo e passar o dia na direção de uma empresa de produtos químicos, que fica em Duque de Caxias (RJ). Quem levaria os meninos da escola para o futebol e de lá para o inglês e a natação? No país, nem sempre é possível contar com escolas que funcionam em período integral. Há cidades de porte médio sem um só colégio nesses moldes, de ensino fundamental ou médio. Em Minas Gerais, onde está uma das maiores redes de escolas particulares com o serviço, dos 4,6 mil estabelecimentos apenas 1,3 mil mantêm as crianças o dia todo. Creches públicas, então, são raridade.

“Elas deveriam estar na periferia e no centro, atendendo todas as mulheres que necessitam deixar os filhos em lugar seguro”, defende Nilcéa. “As prefeituras brasileiras, mesmo ajudadas pelo governo federal, fogem desse compromisso como o diabo da cruz.” A responsabilidade para com a família, diz, é assunto de Estado. Além de criatividade para fazer acordos de qualidade, que envolveriam a iniciativa privada, é preciso ter vontade política. Rebecca lembra que a ex-diretora executiva da ONU Mulheres Michelle Bachelet, quando presidiu o Chile, de 2006 a 2010, elevou as creches de 700 para 4,2 mil.

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As crianças ficam inseguras

Dora Gonçalves, 38 anos, doméstica há 22, conta que no seu trabalho as crianças dispararam o alarme: “Elas choraram, entenderam que eu iria abandoná-las. Minha patroa havia dito aos filhos que eu agora estava querendo muito dinheiro; que era injusta, tinha recebido amor e, em troca, fazia exigências. Então, expliquei que quem ama paga, não explora”. Fabiana Pedroso, 41 anos, três filhos, executiva de uma empresa de tecnologia da informação, em São Paulo, dá a sua versão sobre esse episódio: “Já me separei em dois casamentos e tenho em Dora a minha fiel escudeira há 15 anos. Com a lei, me vi desamparada, com medo de perdê-la”. As duas sentaram para conversar.

Dora disse a ela que se sente da família o suficiente para passar a madrugada ao lado de uma das crianças com febre, mas não o bastante para ter reconhecido, ali, seu desejo de estudar, casar, ter o próprio canto. Afetos à parte, o que Dora entrega à família é trabalho. E deve ser tratado como assunto profissional. “Escrevemos um contrato: ela sai para estudar na hora em que as crianças vão para a escola. Na volta, dá o jantar e vai embora”, diz Fabiana. Ao chefe, ela avisou que não ficará no escritório depois das 7 da noite. “Precisamos fazer a PEC das executivas com filhos. Não dá mais para assumir jornadas tão longas”, afirma. Faz todo o sentido. E já é realidade em muitos lugares.

A gaúcha Suzana Marcolino, 48 anos, especialista em recursos humanos, se lembra de como vivia na França, nos anos 1990, com uma criança pequena. “As empresas na Europa, em geral, têm jornadas flexíveis, as mães trabalham parte do tempo em casa ou saem às 17 horas para buscar os filhos na escola, que tem horário rígido para fechar.” Nilcéa prevê que, sem babá ou com menos horas de babá, os homens arcarão com essa tarefa, e isso repercutirá no trabalho. “Para as empresas, só o filho da mulher adoece e só a mãe vai à reunião do colégio.” Os homens, que nunca tiveram esses problemas, passam a ter. “O mundo corporativo vai acomodar a novidade.

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As empresas são corresponsáveis pela manutenção da vida, têm de dar seu quinhão”, provoca Nilcéa. Rebecca conta que 50 empresas no país já assinaram o pacto global proposto pela ONU para incorporar, nos negócios, valores e práticas ligados à equidade de gênero e ao crescimento profissional das mulheres. Do contrário, pode haver desperdício da força de trabalho feminina. Por ter de atender às demandas da casa, é comum a mulher, mesmo a mais competente, se submeter a salários menores, aceitar a informalidade ou abandonar o trabalho, o que, na opinião de Rebecca, “gera problemas econômicos”. Mas, no melhor dos cenários que a lei dasdomésticas promoverá, as mulheres acabarão fazendo uma revolução no mundo dos negócios com a humanização do jeito rude de trabalhar.

O comércio, que absorve a maior fatia da mão de obra feminina, fica ressabiado com esse discurso. “O setor não tem condição de arcar com mais nada; o empresariado já paga os impostos mais altos do mundo”, alega Fábio Pina, assessor econômico da Federação do Comércio de São Paulo. “Do 1,8 milhão de empresas do estado, 95% são pequenas ou micro. Não podem bancar jornadas diferenciadas para mulheres ou assumir a educação básica dos filhos. O governo não dá incentivo para isso”, diz.

Para Pina, quando a responsabilidade é de todo mundo, passa a ser de ninguém. “Essa lei pode se tornar mais um caso de medida que veio para melhorar, acaba complicando e termina sendo descumprida.” Será? A historiadora Mary Del Priore, que escreveu o livro O Castelo de Papel (Rocco), sobre a abolição dos escravos, entre outros episódios da história brasileira, acha que a lei atingirá de formas diferentes as regiões do país: “Onde há maior cidadania, sem problemas. Onde há menos educação e respeito, as empregadas serão contratadas irregularmente”. Ou, à maneira dos países mais desenvolvidos que importam mão de obra de povos da África e Ásia, vai-se buscar doméstica na nossa América do Sul mais empobrecida. “E, aí, ‘en la cocina, háblaron o portunhol¿'”, suspeita.

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Pulando poças d’água

No contrato entre Fabiana e Dora está estabelecida também a forma de comprovar horas extras. A sugestão foi da empregada: ela manda por e-mail duas fotos suas ao lado do relógio da sala, no início e no fim do período excedente. Vários detalhes da lei, porém, não puderam ser tratados porque esperam regulamentação, prometida para julho. Enquanto isso, não se sabe como pagar seguro-desemprego, auxílio-creche para filhos até 5 anos e seguro de acidente de trabalho. Há outras incógnitas, como a multa na demissão sem justa causa – será de 40%, como prevê a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ou de 5%, conforme projeto apresentado no Senado?

O INSS terá alíquota menor que a atual, de 12%? O FGTS será pago com o INSS? Pode abater parte disso no imposto de renda? Babás e cuidadores de idosos terão jornadas diferenciadas, como prevê mais um projeto recente? “Para não causar stress, o governo tinha de ter pensado antes em tudo isso”, pondera Roberta Rizzo, 47 anos, que abriu a Kanguruh, empresa de recursos humanos domésticos, no Rio de Janeiro, há 11 anos, quando seus gêmeos nasceram e “trouxeram para casa” uma equipe com babás, enfermeiras, uma folguista e uma diarista. O negócio virou franquia e se espalhou por 14 cidades do país.

Na publicação da lei, os telefones dela não pararam de tocar. Eram empregadas temendo o desemprego e patroas demitindo, confusas com os deveres. Roberta mostrava que fica mais caro mandar roupa para a lavanderia e comer fora. Com os gêmeos crescidos, já havia tentado viver sem doméstica de outubro de 2012 a janeiro de 2013 e notou o rombo no orçamento. Voltou atrás e agora conta com Maria Eva Gomes, 53 anos.

A empresária ainda atende muita mulher em pânico com a quebra da rotina. “Essa não é a briga pelos royalties do petróleo, num ringue distante. Está dentro de casa, é como achar um vazamento e ter de esperar 90 dias pelo encanador, pulando poças d’água. Pegou todos de surpresa”, diz. Tatau Godinho, secretária nacional de Avaliação e Autonomia Econômica, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, discorda que tenha havido surpresa: “Muitos dos avanços da PEC são realidade há muito tempo. Quem cumpre a lei já assinava a carteira, pagava décimo-terceiro e férias”. E as famílias vinham se adaptando a isso. Ela lembra que, na Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) de 2009, a porcentagem dedomésticas que dormiam no emprego – muitas em quartinhos insalubres, sem janela – era de 2,7%. Em 1995, de 12%.

Sociedade civilizada

Da PEC para cá, Roberta nota sinais de que o mercado tende à maior qualificação. “Ex-domésticas mais escolarizadas, que haviam migrado para o comércio, estão voltando. Com a valorização da profissão, pedagogas e técnicas de enfermagem já se oferecem para ser babá.” As novidades devem mexer nos hábitos culturais – o homem atingirá a maioridade no terreno doméstico, fará sua parte; meninos e meninas aprenderão a guardar roupas e a arrumar a cama – e também no consumo. Fabricantes de eletrodomésticos anunciaram em abril de 2013 que desenvolvem linhas de máquinas de lavar roupa e louça que não fazem barulho (porque serão mais usadas à noite) e com ciclos de operação mais curtos. Se todas as mudanças positivas vierem de fato, o fio do novelo que a lei puxou significará um enorme ganho para todas as mulheres. E, aí, teremos emergido do caos. 

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